Entre o horror e o paraíso há uma linha chamada liberdade

Em muitas das viagens que faço, seja em lazer ou em trabalho, no que não tem nada de inovador e acontecerá como muitos dos que por aqui e noutros lados me seguem, procuro conciliar as duas vertentes. Por força da memória de um avô que não cheguei a conhecer, que foi despachado para o Tarrafal depois do golpe do 28 de Maio, a seguir deportado para Moçambique, e que hoje tem um largo no Barreiro com o seu nome, e de outros familiares e amigos que conheceram a agrura da prisão ou passaram pela António Maria Cardoso, no tempo da outra senhora, e que após o 25 de Abril de 1974 foram parar a Caxias, no PREC, ou estiveram à beira de um pelotão de fuzilamento em S. Paulo (Luanda), aprendi a dar o valor devido à liberdade que usufruo. Em quaisquer circunstâncias. Não só à física; também à de expressão e de manifestação. Talvez por isso também pague hoje o preço devido por essa liberdade, de que jamais abdicarei, para mim e para os outros, ainda que alguns sejam mais aparentados com vermes do que com humanos. Ainda no meu tempo de faculdade fui algumas vezes jogar umas partidas de futebol a Caxias, dinamizadas por amigo e colega desse período. E embora fosse bem acolhido pelo pessoal de serviço e os presos, para quem a nossa visita era sempre motivo de satisfação e de mais umas horas fora das celas enquanto decorriam os torneios de futebol, tive sempre uma sensação estranha: quando entrava sabia que algumas horas depois iria sair, de volta à minha vida, enquanto outros ali permaneceriam expiando as suas penas. Pagando a sua dívida, em muitos casos, por um erro não raro indesejado. De muitos ouvi histórias, apesar de nunca me preocupar em querer saber a razão de ali estarem. Eram homens, gente, como nós e que naqueles breves momentos apenas queriam jogar futebol, participar, conviver, falar com quem vinha de fora. Mais tarde, já exercendo a profissão que ainda hoje tenho, continuei, contrariado a entrar em prisões. Vi as suficientes, em várias partes do mundo, para lhes ter um verdadeiro horror. Não há prisões boas, nem menos más. Há prisões. E há a liberdade. E homens livres. Algumas impressionaram-me sobremaneira. De duas, que visitei depois de reconvertidas em museus, conhecendo as suas histórias, jamais esquecerei: a infame “Hanói Hilton”, no Vietname, onde estive em 1995, e a sinistra Tuol Sleng, mais conhecida por S-21, em Phnom Phen, que há meia-dúzia de anos visitei no Cambodja e de que aqui um dia deixei registo. Pensava ter conhecido a história das piores. A semana passada entrei numa que vai directamente para o top 3 pelas piores razões. Trata-se da antiga prisão de Phu Quoc, um local paradisíaco, a sul do Vietname, no golfo da Tailândia e muito perto do Cambodja. O nome por que ficou conhecida diz quase tudo: “Inferno na Terra” (“Hell on Earth”). Nas suas imediações ficam algumas das praias mais fabulosas do mundo, como Khem e Sao, mas ali a tortura, que tanto era exercida sobre criminosos comuns como sobre presos políticos, não conhecia limites. A antiga prisão de Phu Quoc foi construída pelos franceses em 1949. Conhecida como Cang Cay Dua POW Prison Camp, passaria à história como “Coconut Tree Prison”. No tempo dos franceses era considerada a maior prisão da Indochina, chegando a ocupar uma área de 40 hectares e albergando durante esse tempo cerca de 14 mil prisioneiros. Na sequência dos Acordos de Genebra seria encerrada, em 1954, para logo no ano seguinte ser reaberta, até 1957. Não ficaria por aqui. O regime de Thieu reabriu-a em 1967 com o nome de “Vietnam-Phu Quoc Communist POW Prison Camp” e voltou a utilizá-la para albergar, torturar e matar prisioneiros políticos. Gente como quem me lê que pensava de uma maneira diferente. Foi ali que vi as “tiger cages”. Não vale a pena descrever-vos o que então senti. Não vos quero incomodar durante o luto papal. Remeto-vos, por isso, para um pequeno filme que me poupará as palavras neste Dia 25 de Abril, 51 anos depois de 1974. Aqui deixo-vos agora as fotos que ali tirei. E também a foto de uma praia do outro lado do inferno. É preciso que todos e cada um de nós tenha sempre presente que o horror se encontra muitas vezes paredes-meias com o paraíso. E que há uma linha muito ténue que os separa. Eu chamo-a de liberdade. E em cada dia que passa tenho medo de deixar de a ver. Saibamos valorizar a liberdade que temos. Sejamos dela merecedores. Sejamos gente. Sem pieguices.

Abr 25, 2025 - 12:44
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Entre o horror e o paraíso há uma linha chamada liberdade

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Em muitas das viagens que faço, seja em lazer ou em trabalho, no que não tem nada de inovador e acontecerá como muitos dos que por aqui e noutros lados me seguem, procuro conciliar as duas vertentes.

Por força da memória de um avô que não cheguei a conhecer, que foi despachado para o Tarrafal depois do golpe do 28 de Maio, a seguir deportado para Moçambique, e que hoje tem um largo no Barreiro com o seu nome, e de outros familiares e amigos que conheceram a agrura da prisão ou passaram pela António Maria Cardoso, no tempo da outra senhora, e que após o 25 de Abril de 1974 foram parar a Caxias, no PREC, ou estiveram à beira de um pelotão de fuzilamento em S. Paulo (Luanda), aprendi a dar o valor devido à liberdade que usufruo. Em quaisquer circunstâncias. Não só à física; também à de expressão e de manifestação. Talvez por isso também pague hoje o preço devido por essa liberdade, de que jamais abdicarei, para mim e para os outros, ainda que alguns sejam mais aparentados com vermes do que com humanos.

Ainda no meu tempo de faculdade fui algumas vezes jogar umas partidas de futebol a Caxias, dinamizadas por amigo e colega desse período.

E embora fosse bem acolhido pelo pessoal de serviço e os presos, para quem a nossa visita era sempre motivo de satisfação e de mais umas horas fora das celas enquanto decorriam os torneios de futebol, tive sempre uma sensação estranha: quando entrava sabia que algumas horas depois iria sair, de volta à minha vida, enquanto outros ali permaneceriam expiando as suas penas. Pagando a sua dívida, em muitos casos, por um erro não raro indesejado.

De muitos ouvi histórias, apesar de nunca me preocupar em querer saber a razão de ali estarem.

Eram homens, gente, como nós e que naqueles breves momentos apenas queriam jogar futebol, participar, conviver, falar com quem vinha de fora.

Mais tarde, já exercendo a profissão que ainda hoje tenho, continuei, contrariado a entrar em prisões. Vi as suficientes, em várias partes do mundo, para lhes ter um verdadeiro horror. Não há prisões boas, nem menos más. Há prisões. E há a liberdade. E homens livres.

Algumas impressionaram-me sobremaneira.

De duas, que visitei depois de reconvertidas em museus, conhecendo as suas histórias, jamais esquecerei: a infame “Hanói Hilton”, no Vietname, onde estive em 1995, e a sinistra Tuol Sleng, mais conhecida por S-21, em Phnom Phen, que há meia-dúzia de anos visitei no Cambodja e de que aqui um dia deixei registo.

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Pensava ter conhecido a história das piores. A semana passada entrei numa que vai directamente para o top 3 pelas piores razões.

Trata-se da antiga prisão de Phu Quoc, um local paradisíaco, a sul do Vietname, no golfo da Tailândia e muito perto do Cambodja. O nome por que ficou conhecida diz quase tudo: Inferno na Terra” (“Hell on Earth”).

Nas suas imediações ficam algumas das praias mais fabulosas do mundo, como Khem e Sao, mas ali a tortura, que tanto era exercida sobre criminosos comuns como sobre presos políticos, não conhecia limites.

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A antiga prisão de Phu Quoc foi construída pelos franceses em 1949. Conhecida como Cang Cay Dua POW Prison Camp, passaria à história como “Coconut Tree Prison”.

No tempo dos franceses era considerada a maior prisão da Indochina, chegando a ocupar uma área de 40 hectares e albergando durante esse tempo cerca de 14 mil prisioneiros.

Na sequência dos Acordos de Genebra seria encerrada, em 1954, para logo no ano seguinte ser reaberta, até 1957. Não ficaria por aqui. O regime de Thieu reabriu-a em 1967 com o nome de “Vietnam-Phu Quoc Communist POW Prison Camp” e voltou a utilizá-la para albergar, torturar e matar prisioneiros políticos. Gente como quem me lê que pensava de uma maneira diferente.

Foi ali que vi as “tiger cages”. Não vale a pena descrever-vos o que então senti. Não vos quero incomodar durante o luto papal.

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Remeto-vos, por isso, para um pequeno filme que me poupará as palavras neste Dia 25 de Abril, 51 anos depois de 1974.

Aqui deixo-vos agora as fotos que ali tirei. E também a foto de uma praia do outro lado do inferno.

É preciso que todos e cada um de nós tenha sempre presente que o horror se encontra muitas vezes paredes-meias com o paraíso. E que há uma linha muito ténue que os separa. Eu chamo-a de liberdade. E em cada dia que passa tenho medo de deixar de a ver.

Saibamos valorizar a liberdade que temos. Sejamos dela merecedores. Sejamos gente. Sem pieguices.

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