‘Tarifaço’ é novo desafio para o consumo interno da China, que patina há duas décadas; entenda
Desde 2007, gigante asiático tenta tornar o consumo da população um importante motor para o crescimento econômico — o que ainda não aconteceu. Especialistas afirmam que processo é lento, e desafios nos últimos anos impediram avanços nesse sentido. O presidente dos EUA, Donald Trump, e presidente da China, Xi Jinping, durante a cúpula dos líderes do G20 em Osaka, Japão, 29 de junho de 2019. REUTERS/Kevin Lamarque/Foto de arquivo A guerra tarifária entre os Estados Unidos e a China representa um novo obstáculo para o consumo interno do gigante asiático. Na mais recente escalada do atrito, os norte-americanos anunciaram taxas de 145% sobre a importação de produtos chineses — que respondem com tarifas de 84%. Desde 2007, a China adota uma série de políticas para incentivar o consumo da população. O objetivo é tornar o mercado interno um importante motor de crescimento econômico, justamente para evitar choques externos. Os planos, no entanto, não tiveram muito sucesso até agora. Dados oficiais mostram que o consumo total dos lares representa menos de 40% do Produto Interno Bruto (PIB) do país, cerca de 20 pontos percentuais (p.p.) abaixo da média mundial. Para especialistas ouvidos pelo g1, o "tarifaço" promovido por Donald Trump — que resultou na recente escalada de taxas entre os países — deverá dificultar ainda mais o cenário, indo na contramão do que busca Pequim, que já vinha enfrentando baixos índices após da pandemia de Covid-19. Entenda nesta reportagem: O que é a política de consumo interno da China? Quais as medidas mais recentes adotadas? Por que o "tarifaço" pode prejudicar o avanço do consumo? Produção excedente buscará outros mercados — incluindo o Brasil EUA: tarifas sobre produtos da China agora são de 145% O que é a política de consumo interno da China? Há quase duas décadas, a China aumentou os esforços para incentivar que a população consuma no país, seja com a compra de carros, imóveis, eletrodomésticos ou a contratação de serviços. Roberto Dumas, professor de economia chinesa do Insper, destaca que essa tentativa começou em 2007 e ganhou ainda mais força no ano seguinte, diante da explosão de uma crise financeira que teve início dos EUA e atingiu todo o mundo. "Depois da crise de 2008, Hu Jintao [então presidente da China] falou: 'Precisamos melhorar e mudar o nosso modelo de crescimento econômico para não ficarmos muito dependentes do mundo externo'", lembra Dumas. Desde então, o objetivo do país é tornar o consumo interno a principal força motriz do crescimento econômico, reduzindo a dependência das exportações. O professor destaca, no entanto, que se trata de um processo lento e que o gigante asiático ainda não obteve sucesso nessa empreitada. "Isso não significa que o chinês não consome. Ele consome muito, mas produz muito mais", acrescenta Dumas. "Por isso, a China tem esse superávit nas contas externas [ou seja, recebe mais com exportações do que gasta com importações]." Quais as medidas mais recentes adotadas? Em março, a China revelou seu mais novo plano para aquecer o consumo interno. As medidas incluem o aumento da renda das famílias e a criação de um subsídio para cuidados infantis. Durante o anúncio, o governo chinês afirmou que as ações visam "impulsionar vigorosamente o consumo, expandir a demanda interna em diversas frentes e reduzir encargos". Em linhas gerais, o conjunto de medidas propõe: o aumento de renda e aplicação de reformas habitacionais; medidas para estabilizar o mercado de ações — com detalhes ainda a serem divulgados; um sistema de subsídios para cuidados infantis; promoção de emprego flexível e ampliação de serviços como clínicas pediátricas noturnas; funcionamento de serviços de cuidados infantis comunitários; ampliação de direitos dos trabalhadores, incluindo ampliação de férias anuais remuneradas e a criação de feriados curtos; aumento dos subsídios a pensões básicas para residentes urbanos e rurais; e a expansão do turismo, com afrouxamento na restrição a vistos para visitar o país. O plano também surge após o impacto recente causado pela pandemia de Covid-19 e pela crise imobiliária que atingiu o país, fatores que reduziram o ímpeto das famílias ao consumo. A professora Carolina Moehlecke, coordenadora do mestrado de Relações Internacionais da FGV, explica que a medida é adotada principalmente como uma forma de aliviar o bolso das famílias. "Esse fortalecimento da renda passa por questões até mesmo de expansão do bem-estar social, com redução de custos de educação infantil, por exemplo. (...) Isso faz com que a renda disponível das pessoas aumente e elas possam consumir mais", diz. LEIA MAIS Tarifas dos EUA contra a China somam 145%, esclarece Casa Branca China aposta em megapacote econômico para PIB chegar aos 5% 'Tarifaço' pode aumentar vinda de produtos chineses para o Brasil e impactar indústria José Luiz Pimenta, especialista em comércio internacional e diretor da BMJ Consultoria, destaca que o empenho da China em melhorar o consumo também tem p


Desde 2007, gigante asiático tenta tornar o consumo da população um importante motor para o crescimento econômico — o que ainda não aconteceu. Especialistas afirmam que processo é lento, e desafios nos últimos anos impediram avanços nesse sentido. O presidente dos EUA, Donald Trump, e presidente da China, Xi Jinping, durante a cúpula dos líderes do G20 em Osaka, Japão, 29 de junho de 2019. REUTERS/Kevin Lamarque/Foto de arquivo A guerra tarifária entre os Estados Unidos e a China representa um novo obstáculo para o consumo interno do gigante asiático. Na mais recente escalada do atrito, os norte-americanos anunciaram taxas de 145% sobre a importação de produtos chineses — que respondem com tarifas de 84%. Desde 2007, a China adota uma série de políticas para incentivar o consumo da população. O objetivo é tornar o mercado interno um importante motor de crescimento econômico, justamente para evitar choques externos. Os planos, no entanto, não tiveram muito sucesso até agora. Dados oficiais mostram que o consumo total dos lares representa menos de 40% do Produto Interno Bruto (PIB) do país, cerca de 20 pontos percentuais (p.p.) abaixo da média mundial. Para especialistas ouvidos pelo g1, o "tarifaço" promovido por Donald Trump — que resultou na recente escalada de taxas entre os países — deverá dificultar ainda mais o cenário, indo na contramão do que busca Pequim, que já vinha enfrentando baixos índices após da pandemia de Covid-19. Entenda nesta reportagem: O que é a política de consumo interno da China? Quais as medidas mais recentes adotadas? Por que o "tarifaço" pode prejudicar o avanço do consumo? Produção excedente buscará outros mercados — incluindo o Brasil EUA: tarifas sobre produtos da China agora são de 145% O que é a política de consumo interno da China? Há quase duas décadas, a China aumentou os esforços para incentivar que a população consuma no país, seja com a compra de carros, imóveis, eletrodomésticos ou a contratação de serviços. Roberto Dumas, professor de economia chinesa do Insper, destaca que essa tentativa começou em 2007 e ganhou ainda mais força no ano seguinte, diante da explosão de uma crise financeira que teve início dos EUA e atingiu todo o mundo. "Depois da crise de 2008, Hu Jintao [então presidente da China] falou: 'Precisamos melhorar e mudar o nosso modelo de crescimento econômico para não ficarmos muito dependentes do mundo externo'", lembra Dumas. Desde então, o objetivo do país é tornar o consumo interno a principal força motriz do crescimento econômico, reduzindo a dependência das exportações. O professor destaca, no entanto, que se trata de um processo lento e que o gigante asiático ainda não obteve sucesso nessa empreitada. "Isso não significa que o chinês não consome. Ele consome muito, mas produz muito mais", acrescenta Dumas. "Por isso, a China tem esse superávit nas contas externas [ou seja, recebe mais com exportações do que gasta com importações]." Quais as medidas mais recentes adotadas? Em março, a China revelou seu mais novo plano para aquecer o consumo interno. As medidas incluem o aumento da renda das famílias e a criação de um subsídio para cuidados infantis. Durante o anúncio, o governo chinês afirmou que as ações visam "impulsionar vigorosamente o consumo, expandir a demanda interna em diversas frentes e reduzir encargos". Em linhas gerais, o conjunto de medidas propõe: o aumento de renda e aplicação de reformas habitacionais; medidas para estabilizar o mercado de ações — com detalhes ainda a serem divulgados; um sistema de subsídios para cuidados infantis; promoção de emprego flexível e ampliação de serviços como clínicas pediátricas noturnas; funcionamento de serviços de cuidados infantis comunitários; ampliação de direitos dos trabalhadores, incluindo ampliação de férias anuais remuneradas e a criação de feriados curtos; aumento dos subsídios a pensões básicas para residentes urbanos e rurais; e a expansão do turismo, com afrouxamento na restrição a vistos para visitar o país. O plano também surge após o impacto recente causado pela pandemia de Covid-19 e pela crise imobiliária que atingiu o país, fatores que reduziram o ímpeto das famílias ao consumo. A professora Carolina Moehlecke, coordenadora do mestrado de Relações Internacionais da FGV, explica que a medida é adotada principalmente como uma forma de aliviar o bolso das famílias. "Esse fortalecimento da renda passa por questões até mesmo de expansão do bem-estar social, com redução de custos de educação infantil, por exemplo. (...) Isso faz com que a renda disponível das pessoas aumente e elas possam consumir mais", diz. LEIA MAIS Tarifas dos EUA contra a China somam 145%, esclarece Casa Branca China aposta em megapacote econômico para PIB chegar aos 5% 'Tarifaço' pode aumentar vinda de produtos chineses para o Brasil e impactar indústria José Luiz Pimenta, especialista em comércio internacional e diretor da BMJ Consultoria, destaca que o empenho da China em melhorar o consumo também tem passado pelo fortalecimento da classe média. "Por conta de uma dependência muito forte das exportações, o país passou por turbulências. E o que a China tem feito agora é tentar diminuir isso, focando, sobretudo, no crescimento da classe média e no consumo interno", diz. "A grande estratégia da China é focar cada vez mais nesse consumo — e estamos falando de um mercado consumidor de mais de um bilhão de pessoas — para tentar depender cada vez menos de exportações do cenário global para poder crescer", acrescenta Pimenta. Por que o 'tarifaço' pode prejudicar o avanço do consumo? Os especialistas ouvidos pelo g1 afirmam que as tarifas devem, pelo menos no curto prazo, ser uma pedra no sapato para a China em seus planos para alavancar o consumo interno. "Temos que pensar que todos os consumidores são também produtores de alguma forma. Se você trabalha em uma empresa que exporta para os EUA e vá enfrentar tarifas acima de 100% sobre o seu produto, a sua empresa vai, em tese, vender menos", diz Moehlecke, da FGV. "Isso vai impactar na renda da empresa, vai refletir no seu salário e você vai ter menos renda disponível para consumir", exemplifica. A especialista lembra que a China já busca outros mercados para exportação, o que poderia amenizar esse tipo de prejuízo. Ela reforça, porém, que os receios de uma recessão também podem prejudicar as companhias e, consequentemente, os salários no país. Dumas, do Insper, acredita que o impacto será negativo já no curto prazo. "Se a gente esperava um crescimento de 5% para o país, vamos esperar um crescimento de até 4% este ano." O professor defende que a China adote políticas mais eficientes de incentivo ao consumo, com foco principalmente no aumento salarial e em um maior processo de urbanização. Pimenta, da BMJ Consultoria, acredita que o "tarifaço" trará mais problemas para o mercado consumidor norte-americano, devido ao potencial inflacionário da medida. "A China vai tentar substituir o que ela importava dos EUA por outros países, o que já vinha sendo feito. Isso abre, inclusive, oportunidades para o Brasil." Produção excedente buscará outros mercados — incluindo o Brasil Dumas destaca que as movimentações da China diante do tarifaço de Trump também poderão prejudicar a indústria brasileira. "A potencial sobra de produtos chineses [que não será absorvida no mercado interno] aumenta a preocupação do país em encontrar, em outros mercados, destinos para esses itens. São produtos que vão para o Brasil, a Indonésia e a Malásia", diz. O g1 já mostrou, nos primeiros movimentos do tarifaço, que uma escalada da guerra comercial aumentaria a presença de produtos chineses no mundo todo. No Brasil, por exemplo, a China respondeu por 24,2% das importações do país em 2024. Por um lado, uma maior entrada de itens chineses por aqui poderia se refletir, no curto prazo, na diminuição de preços aos consumidores. Por outro, o movimento preocupa a indústria nacional, que será obrigada a baixar preços para se manter competitiva — em um cenário que pode afetar lucros e, possivelmente, vagas de emprego.