Neon Genesis Evangelion, 30 anos depois
Lançado originalmente em 1995, Neon Genesis Evangelion mudou para sempre os quadrinhos e a animação, e influenciou gerações de criadores Neon Genesis Evangelion, 30 anos depois

Neon Genesis Evangelion está completando 30 anos em 2025. Exibido originalmente entre 1995 e 1996 no Japão, a série surgiu como uma variação do gênero mecha (franquia Mobile Suite Gundam e similares), que acabou mudando as mídias anime e mangá, e influenciando diversos criadores de animação, quadrinhos, TV e cinema, em todo o mundo.
Os temas e personagens de Evangelion hoje são basicamente modelos e arquétipos, a produção do finado estúdio Gainax (suas obras hoje pertencem ao Studio Khara) permitiram a produtores serem mais ambiciosos em séries, mas também trouxe alguns pontos negativos, curiosamente similares aos problemas que a indústria norte-americana de HQs enfrentava na época.

Neon Genesis Evangelion é um dos animes e mangás mais influentes das últimas décadas (Crédito: Reprodução/Khara/Kadokawa Shoten/JBGroup/Editora JBC)
O anime antes e depois de Neon Genesis Evangelion
Justiça seja feita, o mangá e o anime nunca foram mídias heterogêneas, criadas para apenas um público específico. Desde os primórdios existem obras infantis, para público jovem (garotos e garotas), adultos, de ficção histórica, etc. A Gainax era mais um de vários estúdios, fundado em 1984 por Hideaki Anno e Yoshiyuki Sadamoto, entre vários outros.
Entre suas obras pré-EVA, podemos citar filme Royal Space Force: The Wings of Honnêamise, os OVAs (direto para vídeo) Appleseed, Gunbuster, e o impagável meta-anime Otaku no Video, e sua primeira série para a TV, Nadia: the Secret of Blue Water, a qual muita gente JURA que a Disney copiou com Atlantis: O Reino Perdido, de forma similar às "coincidências" entre O Rei Leão e Kimba, o Leão Branco, de Osamu Tezuka.
A mídia anime estava em apuros na época, devido à crise econômica do Japão causada por uma bolha especulativa do fim dos anos 1980, que estourou em 1992 e fez o país estagnar. Com a grana curta, estúdios menores investiam em projetos de retorno rápido, como obras para crianças ou, no caso da Gainax, foco em OVAs voltados aos fãs mais hardcore, os otakus.
O bom retorno de Nadia, que rendeu posteriormente um filme, aliado a elogios da crítica, compeliram Anno e Sadamoto a investirem em uma nova série para a TV, mas com um escopo voltado para o público jovem de nicho ao invés do geral; Evangelion não é senão uma sátira, uma desconstrução do gênero mecha, consagrado pela marca Gundam, que atriairia audiência trabalhando com temas mais controversos.
E poucos causariam mais burburinho do que misturar robôs gigantes com a temática judaico-cristã, mas EVA não se resume a uma salada bíblica.

Shinji Ikari é o arquétipo do herói relutante (Crédito: Reprodução/Khara/Tatsunoko Production/TV Tokyo/Crunchyroll/Sony/Netflix)
Um dos segredos por trás da força de Evangelion é o quão passional foram todos os envolvidos no projeto, principalmente Hideaki Anno, que dirigiu a série, e Yoshiyuki Sadamoto, que foi o designer da produção e ficou a cargo do mangá, lançado paralelamente. Mesmo sendo apoiado pela Tatsunoko (Speed Racer, Gatchaman), a Gainax manteve para si o controle criativo total da obra, o que lhes permitiu serem mais ambiciosos e ousados.
Temas como abandono e abuso psicológico não eram comuns na época, como o que Shinji, o protagonista, sofre nas mãos de Gendou Ikari, comandante da NERV. Uma das primeiras cutucadas em tropes da série Gundam mira na do "protagonista predestinado": como você acha que um garoto comum de 14 anos realmente reagiria ao receber uma ordem do pai, que ele não via há uma década, para entrar em um robô gigante, e enfrentar um monstro do qual ele havia se safado por pouco, momentos antes?
Muita gente critica Shinji como o personagem principal que não se impõe, não tem agência, que culpa todo mundo por seus problemas, mas ele é o herói relutante, e um reflexo da juventude japonesa da época, sujeita às imposições dos pais e da sociedade para um futuro conformista, e pré-determinado, o qual ele se recusa a aceitar.
O maior controle da Gainax sobre Evangelion influenciou autores a serem mais experimentais, e mostrou que projetos mais de nicho podem, sim, serem lucrativos. Makoto Shinkai (Your Name) costuma citar a obra como motivação para que ele fosse mais ambicioso e perfeccionista. Ao mesmo tempo, criadores puderam usar o anime como exemplo de que maior controle na mão deles ainda reverteria cifras volumosas a estúdios e distribuidoras.
Tecnicamente, Evangelion foi o primeiro exemplo de série de apenas 24 episódios que se tornou um blockbuster, mostrando que um mangá não precisa ser de longa duração para justificar uma versão animada quer se estenderá por anos a fio, como Dragon Ball Z. De fato, temporadas maias curtas hoje são a norma, e mesmo séries contínuas podem ter hiatos de meses ou anos, antes de serem retomadas.

Ao longo de 30 anos, Evangelion rendeu todo tipo de debates sobre religião, psicologia, e sociedade (Crédito: Reprodução/Khara/Tatsunoko Production/TV Tokyo/Crunchyroll/Sony/Netflix)
Assim como Star Wars foi originalmente concebida por George Lucas como um drama familiar com uma guerra galática como pano de fundo, Neon Genesis Evangelion usa a ameaça dos anjos como desculpa para discorrer sobre temas que todo adolescente enfrenta, como rejeição, inadequação, dúvida, a necessidade de encontrar algo, ou alguém, em quem se apoiar, e outros ligados à saúde mental. O card do último episódio traz a mensagem "take care of yourself", escancarando a motivação real da obra.
Isso não se restringe ao Shinji, claro. Asuka Langley, o arquétipo da trope da tsundere, e Rei Ayanami, que age mais como uma figura materna (por razões que se tornam óbvias no decorrer da série), têm seus momentos de dúvida e também de afeição pelo protagonista, é uma série para jovens, afinal.
Segundo Hideaki Anno, o elenco principal foi desenvolvido tendo como base sua própria personalidade, ao terem dificuldades em lidar com problemas pessoais e internos, como o trio principal, ou com traumas do passado, como Misato Katsuragi e Ryoji Kaji.
Evangelion também movimentou o público a dar mais atenção às vozes e o trabalho de interpretação, e também ao interesse ocidental de apreciar animes com áudio original e legendas; o elenco japonês é hoje considerado estelar entre dubladores japoneses, com atores como Megumi Ogata (Shinji), Megumi Hayashibara (Rei), e Tomokazu Seki (Toji Suzuhara), entre outros; vale também mencionar que Misato conta com a voz de Kotono Mitsuishi, a eterna Usagi/Serena Tsukino, a.k.a. Sailor Moon.
Da mesma forma, o excelente trabalho de dublagem de Evangelion levou a adaptações buscando seguir o mesmo padrão de qualidade, e com o tempo, o prestígio do público por dubladores profissionais no ocidente também cresceu.
Influência e legado
Neon Genesis Evangelion inspirou autores de diversas formas, a mais óbvia levou a uma explosão do gênero mecha, e de animes com temáticas mais introspectivas. Há quem acuse o anime de tornar a mídia, e o mangá por tabela, "sérios demais", como uma forma de distanciamento dos criadores da pecha de "desenho/quadrinhos é para crianças", algo que também já estava acontecendo nos Estados Unidos.
Geralmente atribuído às várias Graphic Novels da época de Frank Miller (Batman: O Cavaleiro das Trevas, Ronin, Sin City) e Alan Moore (Watchmen, V de Vingança, Batman: A Piada Mortal), o movimento por uma maior seriedade em HQs e animações teve outras influências, como os trabalhos mais recentes de Ralph Bakshi (Fritz the Cat, Fire and Ice), e até mesmo de uma providencial mãozinha do Japão, com publicações localizadas como Lobo Solitário (que influenciou Miller), e longas animados como Akira e Ninja Scroll.
No ocidente, esse fenômeno em busca de histórias com temas mais adultos, focando muitas vezes em violência, sexualização, ou mudanças gratuitas em personagens estabelecidos (Wolverine tendo o adamantium removido de seus ossos, ou o Lanterna Verde Hal Jordan virando o vilão Parallax), se uniu a uma bolha especulativa que visava a impressão descontrolada de revistas, o que levou a uma quebradeira geral de editoras, culminando com a falência da Marvel Comics.
A diferença, o anime e o mangá eram mídias dividias em vários nichos desde muito antes, e embora o interesse por parte do público tenha se voltado por um tempo a obras com temas mais adultos, isso não impediu que outras cobrindo vários gêneros, em especial os shōnen (para garotos) e shōjo (para garotas) continuassem tendo boas vendas e audiência.
Claro, Evangelion rendeu muito dinheiro à Gainax, o anime original se desdobrou em diversas mídias derivadas, de spin-offs e continuações no cinema; à tetralogia Rebuild of Evangelion, que atualizou a narrativa e introduziu novos personagens, além de render uma infinidade de outros produtos, de games a merchandising.
O estúdio em si lançou várias outras obras de sucesso variável, como FLCL e Gurren Lagan, enquanto Hideaki Anno produziu releituras para a tela grande (um tanto controversas) de algumas das maiores franquias japonesas, com Shin Godzilla, Shin Ultraman, e Shin Kamen Rider.
Infelizmente, anos de má-gestão levaram à falência da Gainax em 2024, e hoje suas obras são controladas pelo Studio Khara, fundado originalmente em 2006 por Hideaki Anno, para produzir separadamente os filmes de Rebuild of Evangelion.
Neon Genesis Evangelion não é uma obra perfeita, hoje é vista como um anime cheio de clichês (na época era tudo novidade), mas não dá para negar que ela é uma das obras mais influentes do Japão das últimas décadas. Algumas referências, como RahXephon e Martian Successor Nadesico são óbvias, enquanto outras são mais sutis, como as homenagens em obras norte-americanas como Rick and Morty, Gravity Falls, Steven Universo, Regular Show, My Little Pony: Friendship is Magic, e o filme Kong: A Ilha da Caveira.
Fora do anime, Evangelion serviu como um dos principais catalizadores que permitiram ao anime e o mangá, e culturas e costumes conectados, como o cosplay, saírem do nicho e se tornarem mídias de massa populares no mundo todo. Muito provavelmente você não estaria lendo este texto, ou qualquer outro do Meio Bit voltado à mídia japonesa, se não fosse por Shinji, Rei, Asuka e cia.
E claro, por Hideaki Anno.
Para saber mais:
- A série original Neon Genesis Evangelion, e os especiais Death & Rebirth e The End of Evangelion, estão disponíveis na Netflix;
- A tetralogia Rebuid of Evangelion está disponível no Amazon Prime Video;
- A versão Collector's Edition do mangá de Neon Genesis Evangelion foi publicada no Brasil pela Editora JBC, em 7 volumes.