Rússia declara guerra a... World of Tanks
Rússia absorve estúdio responsável por versão local de World of Tanks, e acusa Wargaming de apoiar a Ucrânia contra a invasão Rússia declara guerra a... World of Tanks

Embargada desde o início da invasão à Ucrânia, a Rússia tem que se virar como pode para continuar tendo acesso a tecnologias, produtos e serviços de outros países, que não podem mais vender diretamente para Moscou. A China é uma rota para componentes que serão usados na "operação militar especial" (além de supostamente a Turquia, que joga dos dois lados, e o Irã), mas outros produtos são mais difíceis de conseguir. Games, por exemplo.
O GOG e a Epic Games, por exemplo, cessaram operações na Rússia e na Bielorússia, país-aliado do Kremlin; o Steam ainda opera, mas bloqueou métodos de pagamentos locais e removeu vários títulos por lá; Sony, Microsoft, e Nintendo não vendem mais consoles, nem games digitais e físicos.
Os russos têm poucas opções, como a pirataria institucionalizada, ou aguardar a promessa de Vladimir Putin de um console nacional, provido pelo Estado. Boa parte das desenvolvedoras locais também picaram a mula, e uma delas foi a Wargaming, fundada em Minsk, capital da Bielorússia, em 1998. O estúdio responsável pela série World of (Tanks, Warplanes, Warships) hoje tem sede no Chipre, mas ainda contava com uma distribuidora local até o dia 26 de abril de 2025, quando ela foi absorvida pelo governo russo, e teve todos os bens confiscados.
A justificativa, segundo o Kremlin, é de que a Lesta Studio, a empresa em questão, e a Wargaming, praticaram "ações extremistas" contra o país, na prática, apoiam a Ucrânia contra a invasão do camarada Putin.
Rússia vs. Wargaming
Fundada em 1991, a Lesta Studio tem escritórios em São Petesburgo, Moscou, Minsk, e Tashkent, capital do Uzbequistão. Ela foi adquirida pela Wargaming em 2011 e desmembrada em 2022, quando esta se removeu dos países que invadiram a Ucrânia, por sua posição de oposição à guerra que, obviamente, seria entendida como um ato de traição. A empresa renunciou a todos os bens físicos, dados e outras propriedades locais, e não tinha a menor intenção de reavê-los no futuro.
Na mesma época, a desenvolvedora demitiu o diretor de criação Sergey Burkatovskiy quando este declarou apoio à invasão, em um momento quando centenas de profissionais ainda estavam alocados em Kyiv.
A Lesta ficou com uma licença e os dados dos games da série World of, mas daquele momento em diante, o desenvolvimento da Wargaming e da antiga subsidiária seguiriam rumos diferentes. No mesmo ano ela lançou três títulos, Mir Tankov (World of Tanks em russo), Mir Korabley (World of Warships), e o mobile Tanks Blitz, em parceria com o estúdio uzbeque East-Games LLC.

Mesmo separados, os devs da Lesta pensavam de forma muito similar aos da Wargaming (Crédito: Divulgação/Lesta Studio)
Tudo corria de forma tranquila, com a Lesta tocando os games na Rússia e a Wargaming administrando seus negócios no resto do mundo, sem nenhum tipo de interação entre as duas desde 2022, até o dia 17 de abril de 2025, quando o escritório do procurador-geral da Rússia, Igor Krasnov, emitiu uma ordem de confisco de todos os bens e propriedades do estúdio local, cumprida pela Corte Distrital de Tagansky.
A ordem também proíbe o CEO e dono da Lesta Studio, Malik Khatajaev, e o CEO e controlador majoritário da Wargaming, o bielorrusso Victor Kislyi, de fazerem negócios na Rússia. Nos documentos oficiais, divulgados pela agência de notícias estatal RIA Novosti, a procuradoria-geral acusa ambas companhias de fazerem parte de uma "associação que conduz atividades extremistas" contra a Rússia.
O que isso significa na prática? A desenvolvedora de World of Tanks é, desde o início da guerra em 2022, bem vocal em seu apoio à Ucrânia, tendo inclusive doado em 2023 mais de US$ 1 milhão (~R$ 5,66 milhões, cotação de 29/04/2025) para a compra de ambulâncias, ação citada pelo governo de Moscou como uma das causas para a ofensiva; outra "prova" apresentada foi a de soldados ucranianos jogando World of Tanks no fronte.
De certa forma, como Putin não tem como afetar diretamente a Wargaming a não ser proibindo o estúdio de retornar ao país, o governo desceu a foice e o martelo com toda a força na cabeça da Lesta Studio, que foi efetivamente absorvida pelo Estado e deixou de existir; tecnicamente a companhia não teria se posicionado contra o Kremlin nesses três anos, e só teria rodado por seu passado como subsidiária.
Ao mesmo tempo, a Rússia hoje entende como oposição quem não for vocalmente a favor da "operação militar especial", e não gosta nem mesmo de protestos com um papel em branco.
Em nota oficial à imprensa, a Wargaming disse que fez uma retirada estratégica da Rússia e Bielorússia em 2022, renunciou a seus bens e negócios em ambos países e os repassou (à Lesta Studio), a custo zero sem nenhum tipo de compromisso ou débito, e sem a perspectiva de recuperar os mesmos no futuro, ressaltando que "não possui nenhuma propriedade, nem interesses comerciais" em ambos territórios, o que indiretamente poderia servir para livrar a cara do estúdio russo.
Enquanto isso, a Lesta entrou com uma ação junto à justiça da Rússia contestando a decisão, como forma de reverter o procedimento e voltar a operar as versões locais de World of Tanks e World of Warships, mas sejamos sinceros, as chances do estúdio reverter a situação são efetivamente zero.
Assim, os fãs russos dos games da Wargaming, que estavam até então se virando com os derivados da Lesta, muito provavelmente recorrerão à pirataria para continuarem jogando, mas considerando a ação do Kremlin, os títulos do estúdio são hoje ilegais, por estarem associados a "ações extremistas" contra o governo. Isso poderia inclusive levar a prisões, apenas por locais quererem continuar curtindo seu joguinho de guerra favorito.
Da mesma forma, não duvido que em algum momento, o governo de Moscou anuncie, através da agora estatizada Lesta Studio, novos games onde será possível controlar unidades das Forças Armadas da Mãe Rússia, contra a Ucrânia e outros desafetos; claro, estes deverão entrar no mesmo balaio do sistema operacional, nuvem, console, e internet blindada nacionais, prometidos anos atrás.
Fonte: RIA Novosti (em russo)