Ler é Bom, Vai! Sa Wala: Tudo por Nada

Poltrona Nerd ~ Desde seu surgimento, a editora Pipoca & Nanquim tem se consolidado como uma das grandes responsáveis por apresentar… The post Ler é Bom, Vai! Sa Wala: Tudo por Nada appeared first on Poltrona Nerd.

Mai 4, 2025 - 15:00
 0
Ler é Bom, Vai! Sa Wala: Tudo por Nada

Poltrona Nerd ~

Desde seu surgimento, a editora Pipoca & Nanquim tem se consolidado como uma das grandes responsáveis por apresentar ao leitor brasileiro obras que desafiam convenções e expandem os limites do que esperamos de um quadrinho. Com um catálogo repleto de autores cultuados e promissores, o selo se notabilizou por garimpar talentos muitas vezes ignorados pelas grandes editoras. Um dos casos mais marcantes foi o da sul-coreana Keum Suk Gendry-Kim, que não apenas conquistou corações e mentes com suas histórias profundamente humanas, como também foi celebrada no Brasil com uma passagem emocionante pela CCXP. Agora, a editora se lança em mais um ato de ousadia editorial ao nos apresentar a quadrinista filipina Renren Galeno, cujo trabalho em Sa Wala: Tudo por Nada é, simplesmente, arrebatador.

Ler é Bom, Vai! Sa Wala: Tudo por Nada

Definir Sa Wala é uma tarefa intrincada — não por obscuridade, mas pela riqueza de camadas e significados que a obra propõe. A princípio, temos um enredo quase fabulesco: um galo que escapa do fogo em uma fazenda na zona rural filipina e cruza o caminho de Anding, um taxista pressionado pelas dívidas, pela miséria e pelas demandas de sua família. No entanto, sob essa superfície de simplicidade alegórica, Galeno costura uma narrativa que é, ao mesmo tempo, realista e simbólica, marcada por uma violência latente que fala tanto do contexto social das Filipinas quanto de sua relação com o instinto, com a tradição e com os espectros do desespero. Não se trata apenas de um drama rural ou de uma história de redenção — trata-se de uma jornada rumo ao colapso, à ruína emocional, à bestialização do homem.

A figura do galo — símbolo de masculinidade, virilidade e combate em diversas culturas — aqui ganha contornos quase demoníacos. O animal, com um olhar vazio, penetrante e inquietante, torna-se metáfora viva da decadência e da obsessão. Ao decidir colocá-lo para competir em rinhas — legalizadas nas Filipinas e profundamente enraizadas em seu imaginário social —, Anding parece não apenas tomar uma decisão prática em nome da sobrevivência, mas realizar um pacto. O galo, que se torna um campeão invicto, é tanto uma bênção quanto uma maldição. Suas vitórias sucessivas alimentam financeiramente a família, mas também corroem lentamente a sanidade de seu dono e a estabilidade do lar. O que Sa Wala constrói é, em essência, uma narrativa trágica clássica, em que o herói (ou anti-herói) se vê seduzido por uma força que o excede — e que o destruirá.

Visualmente, a HQ é de um vigor surpreendente. Renren Galeno estreia com um trabalho de fôlego e domínio gráfico espantoso para uma autora iniciante. Seu traço é expressivo, denso, cheio de rugosidades e texturas que potencializam a crueza da narrativa. Os enquadramentos são estrategicamente pensados para transmitir angústia, confinamento e, por vezes, alucinação. Há uma composição cuidadosa entre luz e sombra, em que o preto não é apenas ausência de cor, mas presença narrativa. Os momentos de violência — e não são poucos — não são espetacularizados, mas tratados com uma visceralidade desconfortável, que obriga o leitor a confrontar não apenas a cena, mas seus próprios limites de empatia.

Além da crítica à prática das rinhas de galo — que, embora culturalmente aceita nas Filipinas, é apresentada aqui com evidente tom questionador —, Sa Wala nos oferece um retrato sensível e brutal de uma sociedade marcada pela desigualdade, pela desesperança e pela naturalização da barbárie como mecanismo de sobrevivência. Anding, enquanto personagem, é o retrato de um homem comum empurrado ao abismo por um sistema que lhe oferece poucas saídas. Seu envolvimento emocional com o galo — ora visto como filho, ora como demônio — revela uma complexa teia de culpa, orgulho, superstição e autoengano.

O título da obra, Sa Wala, que pode ser traduzido como “para o nada” ou “em vão”, já antecipa a fatalidade de seu enredo. Tudo, absolutamente tudo, caminha para o vazio: os sacrifícios, as vitórias, os amores, os laços familiares e até mesmo os sonhos mais modestos. Ao final da leitura, resta ao leitor a mesma sensação que parece habitar o olhar do galo desde a primeira página: a de que há algo profundamente errado no modo como vivemos, e de que nem sempre a luta é o caminho para a salvação — muitas vezes, ela é o prelúdio da ruína.

Sa Wala: Tudo por Nada é, enfim, uma HQ arrebatadora. Um soco no estômago com uma beleza plástica e literária incomum, uma estreia marcante de uma autora que, espero, ainda nos trará muitas obras tão desafiadoras quanto esta. A Pipoca & Nanquim, mais uma vez, acerta em cheio ao apostar em nomes que ampliam o horizonte da produção de quadrinhos internacionais — e nós, leitores, só temos a agradecer.

The post Ler é Bom, Vai! Sa Wala: Tudo por Nada appeared first on Poltrona Nerd.