Os protestos na Sérvia

Num período de crescimento de nacional-populismo (como se o nacionalismo fosse de outro tipo) e do aumento de influência de líderes autoritários (para sermos brandos com os Órbans deste mundo), vale a pena olha para o que está neste momento a acontecer na Sérvia. Para quem não tem acompanhado, tudo começou a 1 de Novembro do ano passado quando a pala que encima(va) a fachada da estação de Novi Sad (a segunda maior cidade do país) caiu, matando 15 pessoas. Esta pala tinha sido renovada a partir de 2021, com uma pausa em 2022 para "inauguração" antes das eleições e reabertura final a 5 de Julho (também do ano passado). Nem 4 meses depois, a pala renovada caiu. A renovação da pala tinha sido conduzida ao abrigo da Iniciativa da Nova Rota da Seda (penso ser essa a tradução da Belt and Road Initiative chinesa) e integrada na actualização e melhoramento da linha de caminho de ferro entre Budapeste e Belgrado, que passava por Novi Sad e que integraria linhas de alta velocidade. Desde o início que as obras tinham sido alvo de acusações de favoritismo e corrupção, mas na Sérvia actual do Presidente Aleksandar Vučić, isso é quase o dia a dia e não chama muito a atenção. Aleksandar Vučić (lê-se Vutchitch se escrito à portuguesa) é um político que chegou ao poder quase de mansinho. Num país que celebra os grandes líderes e que seguiria um líder carismático num cavalo branco até a um abismo, Vučić é uma pessoa algo apagada, que fala de forma muito suave e, mesmo quando irritado, não parece passar do registo de professor primário a corrigir uma criança. Veio do Partido Radical (que se pode descrever como de extrema-direita) e foi seguindo suavemente para o Partido Progressista da Sérvia (SNS), que se poderá colocar na direita, mas mais normal. Tem vindo a perseguir políticas de abertura económica do país, privatizando muitas das empresas estatais e tem promovendo a livre iniciativa, seguindo de certa forma a cartilha do liberalismo económico. Em termos sociais é mais pragmático, mantendo ligações a movimentos conservadores mas também demonstrando abertura a grupos anteriormente marginalizados (a sua Primeira Ministra anterior e actual presidente do parlamento, Ana Brnabić, é lésbica assuimida). É essencialmente um político extremamente hábil. É também um político autoritário, que quando chegou ao poder prosseguiu os hábitos que tinha de quando era Ministro da Informação nos tempos de Slobodan Milošević e em que suprimia meios de comunicação social e tentava controlar a informação que chegava à população. A isto acresce o controlo que tem tido sobre o aparelho político, trazendo alguns políticos da oposição para o governo ou cargos importantes enquanto suprime outros. O seu período no poder tem sido visto como caracterizado por uma deriva autoritária, onde vai acumulando cada vez mais poder em si mesmo e mantém um grupo de políticos ao seu redor que dele dependem para manter as suas posições - mesmo quando são teroricamente da oposição. Como em todos os sistemas deste tipo, a única forma de manter tal rede de poder é com compadrios e corrupção. A corrupção é desde há décadas quase um facto diário na vida sérvia. Empregos são conseguidos e mantidos graças a cunhas, despachar processos administrativos requerem no mínimo uma boa dose de charme para com os funcionários e frequentemente acabam em pagamentos em dinheiro ou géneros, até um simples procedimento hospitalar poderá depender de o paciente trazer alguns dos materiais para ele necessário. Na vida económica, como se pode imaginar, isto amplia-se. E terá sido o caso com a reconstrução da pala da estação de Novi Sad. Após a queda da pala e da morte das 15 pessoas, começaram a surgir alguns protestos, os quais foram fortemente reprimidos pelas forças policiais e deram origem a actos de vandalismo. O governo começou uma campanha de propaganda contra os protestos, apodando-os de "anti-sérvios", um epíteto que é quase do mais ofensivo que se pode usar num país onde os carros num cortejos de casamento têm sempre abundância de bandeiras sérvias. Só que a 22 de Novembro, estudantes e alguns professores da Faculdade de Drama da Universidade de Novi Sad decidiram organizar uma vigília nas iemdiações da faculdade para homenagear as pessoas que morreram no desastre. Durante a vigília (que seguiu os trâmites da lei) foram atacados por um grupo não-identificado mas largamente considerado como ligado ao governo. Depois disto, os restantes estudantes da universidade decidiram juntar-se aos estudantes de Drama e ocuparam pacificamente a universidade, colocando tendas, organizando a logística e apoiados por pais e pela população local, que lhes trazia comida, bebida e outras coisas que precisassem. Também começaram a organizar um bloqueio do trânsito da cidade por períodos de 15 minutos todas as sexta-feiras às 11:52, a hora do colapso da pala. Aos poucos, a população da cidade começou a juntar-se aos estudantes em sinal de apoio. Num destes bloqueios, um condutor investiu o carro contra

Fev 20, 2025 - 16:16
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Os protestos na Sérvia

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Num período de crescimento de nacional-populismo (como se o nacionalismo fosse de outro tipo) e do aumento de influência de líderes autoritários (para sermos brandos com os Órbans deste mundo), vale a pena olha para o que está neste momento a acontecer na Sérvia.

Para quem não tem acompanhado, tudo começou a 1 de Novembro do ano passado quando a pala que encima(va) a fachada da estação de Novi Sad (a segunda maior cidade do país) caiu, matando 15 pessoas. Esta pala tinha sido renovada a partir de 2021, com uma pausa em 2022 para "inauguração" antes das eleições e reabertura final a 5 de Julho (também do ano passado). Nem 4 meses depois, a pala renovada caiu.

A renovação da pala tinha sido conduzida ao abrigo da Iniciativa da Nova Rota da Seda (penso ser essa a tradução da Belt and Road Initiative chinesa) e integrada na actualização e melhoramento da linha de caminho de ferro entre Budapeste e Belgrado, que passava por Novi Sad e que integraria linhas de alta velocidade. Desde o início que as obras tinham sido alvo de acusações de favoritismo e corrupção, mas na Sérvia actual do Presidente Aleksandar Vučić, isso é quase o dia a dia e não chama muito a atenção.

Aleksandar Vučić (lê-se Vutchitch se escrito à portuguesa) é um político que chegou ao poder quase de mansinho. Num país que celebra os grandes líderes e que seguiria um líder carismático num cavalo branco até a um abismo, Vučić é uma pessoa algo apagada, que fala de forma muito suave e, mesmo quando irritado, não parece passar do registo de professor primário a corrigir uma criança. Veio do Partido Radical (que se pode descrever como de extrema-direita) e foi seguindo suavemente para o Partido Progressista da Sérvia (SNS), que se poderá colocar na direita, mas mais normal. Tem vindo a perseguir políticas de abertura económica do país, privatizando muitas das empresas estatais e tem promovendo a livre iniciativa, seguindo de certa forma a cartilha do liberalismo económico. Em termos sociais é mais pragmático, mantendo ligações a movimentos conservadores mas também demonstrando abertura a grupos anteriormente marginalizados (a sua Primeira Ministra anterior e actual presidente do parlamento, Ana Brnabić, é lésbica assuimida). É essencialmente um político extremamente hábil.

É também um político autoritário, que quando chegou ao poder prosseguiu os hábitos que tinha de quando era Ministro da Informação nos tempos de Slobodan Milošević e em que suprimia meios de comunicação social e tentava controlar a informação que chegava à população. A isto acresce o controlo que tem tido sobre o aparelho político, trazendo alguns políticos da oposição para o governo ou cargos importantes enquanto suprime outros. O seu período no poder tem sido visto como caracterizado por uma deriva autoritária, onde vai acumulando cada vez mais poder em si mesmo e mantém um grupo de políticos ao seu redor que dele dependem para manter as suas posições - mesmo quando são teroricamente da oposição.

Como em todos os sistemas deste tipo, a única forma de manter tal rede de poder é com compadrios e corrupção. A corrupção é desde há décadas quase um facto diário na vida sérvia. Empregos são conseguidos e mantidos graças a cunhas, despachar processos administrativos requerem no mínimo uma boa dose de charme para com os funcionários e frequentemente acabam em pagamentos em dinheiro ou géneros, até um simples procedimento hospitalar poderá depender de o paciente trazer alguns dos materiais para ele necessário. Na vida económica, como se pode imaginar, isto amplia-se. E terá sido o caso com a reconstrução da pala da estação de Novi Sad.

Após a queda da pala e da morte das 15 pessoas, começaram a surgir alguns protestos, os quais foram fortemente reprimidos pelas forças policiais e deram origem a actos de vandalismo. O governo começou uma campanha de propaganda contra os protestos, apodando-os de "anti-sérvios", um epíteto que é quase do mais ofensivo que se pode usar num país onde os carros num cortejos de casamento têm sempre abundância de bandeiras sérvias. Só que a 22 de Novembro, estudantes e alguns professores da Faculdade de Drama da Universidade de Novi Sad decidiram organizar uma vigília nas iemdiações da faculdade para homenagear as pessoas que morreram no desastre. Durante a vigília (que seguiu os trâmites da lei) foram atacados por um grupo não-identificado mas largamente considerado como ligado ao governo.

Depois disto, os restantes estudantes da universidade decidiram juntar-se aos estudantes de Drama e ocuparam pacificamente a universidade, colocando tendas, organizando a logística e apoiados por pais e pela população local, que lhes trazia comida, bebida e outras coisas que precisassem. Também começaram a organizar um bloqueio do trânsito da cidade por períodos de 15 minutos todas as sexta-feiras às 11:52, a hora do colapso da pala. Aos poucos, a população da cidade começou a juntar-se aos estudantes em sinal de apoio. Num destes bloqueios, um condutor investiu o carro contra os estudantes (após vários políticos do SNS terem defendido tais acções), atraindo condenação da população apesar de ser defendido pelo próprio Vučić.

Com o tempo, estes protestos foram-se estendendo a outras cidades sérvias e culminaram no protesto a 22 de Dezembro do qual tirei a fotografia que encima o post. Este protesto teve lugar na Praça Slavija, uma das mais emblemáticas de Belgrado e, crucialmente, não na Praça da República (Trg Republike) que fica perto do Parlamento e do Palácio Presidencial, e está associado aos protestos contra Milošević. Uma das principais características destes protestos é que são liderados pelos estudantes, mas sem uma única figura que esteja à frente deles, os represente ou seja porta-voz. Todas as decisões dos estudantes são tomadas em assembleias de estudantes e quando algum comunica as mesmas à imprensa, é quase sempre alguém diferente de quem o tenha feito no passado. Ao tomarem esta decisão consciente, os estudantes resguardam-se contra situações passadas onde os líderes eram seduzidos e corrompidos e o movimento acabava por morrer devido a isso. Sem líderes para atacar ou seduzir, Vučić fica sem alvo concreto, tendo de se recorrer à cassete dos autoritários, que os protestos são patrocinados "pelo Ocidente", por são anti-sérvios, e que os estudantes querem causar a queda do regime.

O problema é que os estudantes têm exigências mais simples. Priemiro que nada, recusam-se a reunir com Vučić, argumentando que ele é o presidente e, como tal, não tem poder real no país de acordo com a constituição (em teoria é uma figura semelhante à do Presidente da República Portuguesa), antes querem discutir com o governo, coisa que se complicou por Vučić ter forçado a demissão do primeiro-ministro Miloš Vučević (quer era presidente da câmara de Novi Sad quando as obras na estação começaram). Querem também total transparência no inquérito ao colapso da pala, algo a que Vučić tem resistido por, de acordo com os protestantes, isso levar a que se conhecesse a escala da corrupção no país e implicar múltiplas pessoas em posições de poder. Outras exigências que os estudantes anunciaram foram a anulação dos processos contra estudantes e demais cidadãos detidos em protestos; a prisão de quem atacou violentamente os protestos; e o aumento do orçamento das faculdades em 20%.

Estas exigências demonstram também uma outra faceta dos protestos estudantis: não falam pelo país, antes e apenas por si mesmos. Não fazem exigências políticas para as quais não consideram ter legitimidade, apenas exigem algo que consideram ser senso comum (transparência no inquérito, processos legais a quem de facto comete crimes) e a algo que lhes diz respeito: as suas próprias faculdades. Esta é mais uma das razões porque recebem tanto apoio da população. Não só não sel alvoram em líderes do país, mas pedem apenas condições para poder estudar condignamente e poder posteriormente ajudar a Sérvia, em vez de ir para o estrangeiro em busca de vida melhor. Nas declarações da população, o apoio aos estudantes recebe frequentemente o comentário "apoio-os porque são os nossos filhos e querem uma vida melhor".

Vučić, nisto tudo, está preso e parece tentar ir oferecendo uma migalhas aos protestantes - recentemente anunciando a prisão de uma administradora de uma clínica de testes clínicos por práticas de corrupção - e esperar que arrefeçam para ele voltar ao normal. Neste momento não é claro que isso venha a acontecer.

Dê por onde der, estes protestos têm demonstrado que há formas de resistir às derivas autoritárias e corruptas dos países. A opção que os estudantes sérvios têm demonstrado baseia-se em certos pilares: 1) união; 2) protestos completamente pacíficos; 3) ausência de líderes ou figuras; 4) manter as exigências circunscritas ao razoável e lógico. Num mundo onde nos perguntamos constantemente "onde irá este mundo parar" relativamente aos jovens actuais (como se a pergunta não fosse feita desde sempre por todas as gerações), este tipo de protestos demonstra que, pelo menos num país e para já, o mundo talvez tenha possibilidade de ir parar a um lugar melhor. Haja vontade.

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Imagem com um dos símbolos do protesto. O texto é traduzível como "As vossas mãos estão ensanguentadas". Penso que não é preciso explicação.