Como é trabalhar num teatro nacional fechado para obras?

No centro da cidade, o Teatro Nacional D. Maria II e o São Carlos estão fechados para obras. Mas, lá dentro, encontramos quem não os deixam parar – das equipas técnicas as de cena.

Abr 6, 2025 - 10:47
 0
Como é trabalhar num teatro nacional fechado para obras?
Como é trabalhar num teatro nacional fechado para obras?

Este artigo foi originalmente publicado na revista Time Out Lisboa, edição 672 — Inverno 2025

Um teatro não pode viver sem público. E vice-versa. Um palco está para uma plateia, como uma plateia está para um palco e, por isso, nenhum dos dois pode existir sem o outro. Se não houver quem se apresente assim que a cortina subir, também não haverá quem se sente do lado oposto, à espera que comece o primeiro acto. Então, quando um teatro é obrigado a fechar portas para sofrer obras de requalificação, continua vivo? Ou, nem que seja temporariamente, acaba por morrer? Não, porque para morrer teríamos de considerar que um teatro vive apenas dos artistas e das pessoas que os vão ver. Não, porque lá dentro, atrás de portas (e das cortinas) fechadas, há um conjunto de trabalhadores que todos os dias faz com que seja possível apresentar peças, espectáculos de dança, óperas e concertos, mesmo que não seja ali. São quem costuma estar nos bastidores, nos escritórios, nas salas de ensaio. São quem costura, quem trata do som e da iluminação, quem dispõe as cadeiras e estantes de partitura. São as equipas técnicas e de cena. 

É quarta-feira de manhã e passa pouco das dez quando chegamos ao edifício da Tobis. Depois do Teatro Nacional D. Maria II fechar para obras em 2023, as equipas de todos os departamentos passaram a trabalhar no antigo estúdio de cinema, na Quinta das Conchas, que já era utilizado para ensaios. Na sala do guarda-roupa, encontramos Paula Miranda, de 54 anos, e Carla Rodrigues, de 52, com alguns papéis à sua frente, em cima da mesa. São informações que servirão de inspiração para os figurinos de Auto das Anfitriãs (que se estreou em Março na nova Sala Estúdio Valentim de Barros). Paula e Carla começaram a trabalhar no Teatro Nacional em 1999 e 1994, respectivamente, e são as duas auxiliares de camarim. As suas funções passam por zelar pelo guarda-roupa e, por isso, passam muito tempo nos camarins – recolhem as peças, verificam se é preciso fazer arranjos ou pô-las a lavar ou secar e estão sempre a postos para quaisquer mudanças rápidas dos actores. “Às vezes, rasga-se uma coisa e é necessário que o actor volte a entrar em cena, então vai com agrafos ou com fita-cola. Outras vezes, dá tempo para pegar numa agulha e linha e coser”, explica Paula.

Em digressão  

Antes do edifício no Rossio fechar, nem ela nem Carla costumavam acompanhar as digressões das peças. Mas quando a programação desse ano se ancorou na Odisseia Nacional, projecto que levou a mais de 90 municípios espectáculos, programas de participação, formação e para a comunidade escolar, Carla também começou a viajar. “Andei dois anos com eles na estrada. Ficávamos uma semana em cada sítio e às vezes voltava, outras vezes seguia [para a próxima região] porque não tinha ninguém para me substituir”, recorda. Em 2024, tornou-se óbvia tanto para Pedro Penim, director artístico, como para Rui Catarino, do conselho de administração, a importância de manter a Odisseia Nacional na programação permanente do TNDMII, de forma a levar propostas artísticas e culturais a vários pontos do país. E assim foi, por 38 municípios.

Equipas técnicas D. Maria II
Rita ChantrePaula Miranda e Carla Rodrigues do Teatro Nacional D. Maria II

Não muito longe do D. Maria II, outro teatro nacional está prestes a ser alvo de obras de requalificação – o São Carlos. Fechou ao público no Verão de 2024 e, como tem vindo a acontecer desde o passado mês de Setembro, a agenda de concertos e óperas tornou-se itinerante, à semelhança do TNDMII, mas numa escala mais reduzida. Os espectáculos continuam também a ser apresentados em Lisboa, em espaços como o CCB ou o Teatro Camões (este último sob a mesma administração do TNSC – a Opart). E é precisamente no Teatro Camões que nos encontramos, uma semana depois de irmos à Tobis. Desta vez, a assistir a um ensaio de Requiem da Guerra, a uns dias da sua apresentação na sala do Parque das Nações. Estamos na plateia e, por isso, à medida que o maestro vai conduzindo a Orquestra Sinfónica Portuguesa, o coro do TNSC e o coro da Escola de Música do Colégio Moderno, não há maneira de conseguir ver Bernardo Azevedo Gomes, o director de cena de 64 anos, que comanda as operações nos bastidores. Bernardo trabalha no São Carlos desde 1993 e, desde o primeiro dia de ensaios à última apresentação do espectáculo, a sua responsabilidade é que tudo corra conforme o previsto, especialmente quando se trata de óperas. Falamos de mudanças de cenário, entrada de actores ou entrada de luzes. “As coisas têm de fluir de uma maneira natural, sem as pessoas se aperceberem que, por trás do palco, existe toda uma máquina montada que está ao serviço do público”, diz.

Equipas Técnicas São Carlos
Rita ChantreJerónimo Fonseca do Teatro Nacional de São Carlos

Como, aos poucos, a programação começa a percorrer cada vez mais cidades do país, o director de cena acredita que, eventualmente, a dinâmica do seu trabalho também vá mudar. “Vamos começar a sentir [mudanças] daqui para a frente, porque o São Carlos vai efectivamente sair para sítios onde nunca esteve. E agora temos uma programação que, a esse nível, é bastante mais desafiante.” Quer seja no que toca ao período para montar o espectáculo, que será o menos tempo possível, já que ir para fora de Lisboa implica mais custos, quer seja na adaptação aos novos espaços.

Equipas Técnicas São Carlos
Rita ChantreBernardo Azevedo do Teatro Nacional de São Carlos

Por outro lado, o encarregado da orquestra, Jerónimo Fonseca, de 64 anos, sente que já muito mudou desde que o teatro fechou para obras – “Além de termos de nos deslocar, há situações em que temos de levar novamente certos instrumentos, porque há ensaios noutros lados. Tendo ensaios noutros lados, temos de planificar, com os camiões e os carregadores, por isso fica um pouco mais complicado.” Jerónimo está no São Carlos há quase 25 anos e, como parte da direcção de coro e orquestra, tem de visitar as salas de espectáculos a priori para perceber quais são as dimensões do palco ou do fosso e saber onde irá colocar as cadeiras, os instrumentos e as estantes de partitura, o que também depende do número de músicos. “Pode ser uma orquestra grande e temos de reduzir ‘x’ pessoas. Normalmente cordas, que os sopros nunca se reduzem”, sublinhando que é necessário existir equilíbrio, o que nem sempre é possível.

Velhos e novos palcos

Neste sentido, Joana Camacho, de 40 anos, acredita que é importante ter processos de trabalho “bem oleados”, de maneira a que as equipas se adaptem rapidamente a diferentes espaços. A directora técnica, com 20 anos de casa, gere cinco sectores (maquinaria, iluminação, som e vídeo, contra-regra e adereços) e realça que toda a preparação e logística que é necessária para apresentar fora do São Carlos tem de ter em conta o facto de, por vezes, as salas não estarem preparadas para receber concertos ou óperas. Como a Biblioteca de Mafra: “Não tem luz, nem palco, ou seja temos de levar tudo. Na altura, levámos desde os estrados às escadas para o coro, levámos a iluminação, e as colunas de som para fazer o anúncio de sala e a apresentação.” E mesmo depois de meses de trabalho, há que estar sempre preparado para imprevistos. “Temos de contar com alguma margem de erro, porque há sempre muita imprevisibilidade nos espaços. Por mais que se façam visitas técnicas para antecipar alguns problemas, há sempre questões que só se vêem no local”, explica.

Equipas Técnicas São Carlos
Rita ChantreJoana Camacho do Teatro Nacional de São Carlos

No D. Maria II, estas questões também têm de ser cada vez mais tidas em conta por parte da direcção de cena. Catarina Mendes, de 41 anos, e Andreia Mayer, de 29 anos, organizam todas as actividades que fazem parte do calendário. Acabam assim por ser a ponte entre as equipas artísticas e as restantes equipas do teatro, ao trabalhar de perto com os criativos. Com a saída do edifício histórico no Rossio, notaram, desde logo, mudanças. Em especial, quando têm de sair para fora de Lisboa, o que tem acontecido regularmente desde 2023 – “Sair de Lisboa e do Porto, muitas vezes, é a confirmação que há muitos sítios mal equipados, com equipas subdimensionadas e não há os recursos que temos aqui. Há pessoas a trabalhar literalmente por amor”, lamenta Catarina, que faz parte da equipa do TNDMII há dez anos. “E às vezes não é só isso”, acrescenta Andreia, que conta com cinco anos de casa. “O próprio edifício está decadente. Em Elvas, por exemplo, chovia dentro de todo o teatro, do átrio ao palco.” Noutros sítios, chegou a não haver sequer uma lâmpada.

Equipas técnicas do D.Maria II
Rita ChantreJoão Pratas do Teatro Nacional D. Maria II

Contudo, também há bons exemplos. Miranda do Corvo é um deles, continua Andreia. E não é só nestes espaços que se levantam maiores desafios, também os há em espaços não convencionais. Zénite, peça apresentada por Sílvio Vieira (da companhia outro) e co-produzida pelo TNDMII, é um desses casos. O espectáculo tomou como palco uma antiga propriedade na Bobadela, no vale do rio Trancão. Um lugar completamente inabitável que teve de ser provido das condições necessárias para poder servir de espaço de apresentação, o que só foi possível, em parte, devido à equipa de direcção de cena. “Levámos para lá muito mobiliário, material de apoio, primeiros socorros, micro-ondas e frigorífico – tentámos dar as melhores condições. E, nesse sentido, a equipa de manutenção foi crucial, porque esteve por detrás de todas as intervenções de segurança que o espaço teve. Tudo para tornar o espaço seguro e minimamente limpo”, diz Catarina, que trabalhou neste projecto.

Apresentar, embalar e seguir 

No edifício-mãe, Catarina e Andreia tinham tudo o que era preciso. Com o aumento da programação fora de portas, as idas e vindas ao armazém no Cacém (que o TNDMII já usava antes do fecho do teatro para guardar cenários, figurinos, adereços, equipamento, entre outras coisas) tornaram-se parte da rotina. Lá, guardam-se peças inteiras que, como têm de viajar de região em região, já são criadas de forma a serem o mais móveis possível. Até porque ao passo que no Rossio havia apenas duas salas onde apresentar espectáculos, agora há várias e, por isso, podem acontecer três ou quatro peças em simultâneo.

Equipas técnicas do D.Maria II
Rita ChantreEquipa do Teatro Nacional D. Maria II na Tobis

“Já estivemos em vários sítios em que nos deram a chave e não tinha lá ninguém. Era meter o cenário todo, que era mais pequeno, um PA [sistema de som] e um sistema de luz mais pequeno numa carrinha com um ou dois técnicos. Som, vídeo, luz, tudo. Era ir, fazer naquele sítio e depois ‘bota na carrinha outra vez’. Por Carrazeda de Ansiães, Paredes de Coura…”, descreve João Pratas, de 36 anos, que está há cerca de oito anos no Teatro Nacional e é coordenador de som e audiovisual. Para o coordenador do sector de iluminação, Feliciano Branco, de 43 anos, que está no teatro há quase duas décadas, a alocação do equipamento, que se encontra na sua maioria no armazém, é a parte mais desafiante – “Tenho de conseguir distribuir o equipamento por todos os espaços. E há sempre coisas que vão surgindo ou coisas que estamos a contar que estão lá e não estão. Então há uma grande logística.” 

Equipas técnicas do D.Maria II
Rita ChantreSector de costura e guarda-roupa do Teatro Nacional D. Maria II

No que toca ao guarda-roupa, houve até coisas que tiveram de ser deixadas no Teatro Nacional D. Maria II ou que na Tobis não arranjaram espaço. “Algumas eram grandes demais, nem saíam pela porta fora, e nós queríamos mantê-las. Outras trouxemos para cá, mas como é óbvio, o espaço é pequeno para termos tanta coisa”, conta-nos a mestra de guarda-roupa Aldina Jesus, de 50 anos. Já cá trabalha há 12 e, por vezes, está encarregue de desenhar figurinos de peças como o Sopro, de Tiago Rodrigues, ou o Reparations Baby!, de Marco Mendonça, que se estreia em Junho. “As coisas que não podíamos trazer doámos a vários teatros, porque são peças boas que podem fazer falta”, acrescenta.

No São Carlos, está neste momento a ser feita a inventariação e mudança dos adereços, figurinos e equipamentos para o antigo Tribunal da Boa Hora, espaço que as equipas do teatro, bem como a orquestra e o coro, começarão a ocupar a partir do final de Janeiro. No mesmo dia em que passamos pelo Teatro Camões de manhã, à tarde, no Chiado, encontramos João Lopes, de 65 anos. Está no São Carlos desde 1977 e, nas últimas semanas, é na sala dos adereços que passa mais tempo. Nas inúmeras estantes e armários que ocupam este espaço, guardaram-se milhares de objectos, garante. João sabe do que fala, já que o chefe do sector de contra-regra é uma das pessoas que trabalha mais de perto com os adereços.

Teatro Nacional de São Carlos
Rita ChantreSala principal do Teatro Nacional de São Carlos

“O encenador chega aqui e diz ‘quero isto e isto e quero mudar de cor’. Nós fazemos a selecção dos adereços que ele escolheu, vemos o que é preciso mudar e arranjar e levamos para a cenografia, onde fazem aquilo que eu disser. Quando o material está pronto, conforme o encenador quer, eu chego lá acima à cenografia e transporto os adereços para o palco”, explica. Mas além disto, também acompanha os ensaios e as óperas, já que nos bastidores tem de estar pronto para mudanças de cena ou entrega de adereços aos actores. Hoje, nesta sala, já foi quase tudo embalado para seguir para a nova casa temporária. “Isto estava cheíssimo de adereços. E custa-me… Mas tem que ser, temos de esvaziar isto. Tenho pena, mas a vida é assim”, lamenta.

Teatro Nacional de São Carlos
Rita ChantreOficina de cenografia do Teatro Nacional de São Carlos

Tal como João, outros trabalhadores espalham-se pelo São Carlos a arrumar e embalar objectos ou a tratar de coisas que precisam de ser finalizadas antes de terem de abandonar o edifício. As obras ainda não começaram, mas os preparativos estão à vista. Na sala principal, filas de cadeiras foram arrancadas do chão, bem como tecidos das paredes. Por todos os pisos, há marcas e números escritos nas paredes ou então buracos. Algumas salas estão mais vazias, ao passo que outras ainda estão cheias de caixas e adereços de antigas peças, como acontece na oficina de cenografia, que será a futura sala de ensaios da orquestra. Já no estúdio de bailado, onde se encontram adereços da ópera L’elisir d’amore, está a decorrer um ensaio. 

Estes teatros ainda vivem 

E por isso não, um teatro não morre quando tem de fechar as suas portas ao público. Há tanto por lá a acontecer, mesmo que seja nos bastidores. Já para não falar do que acontece também do lado de fora. Por todo o país, a programação do Teatro Nacional D. Maria II tem vindo a abrir cada vez mais caminho para uma maior democratização da cultura e a apostar em projectos a pensar na comunidade. O Boca Aberta é um deles. Carolina Villaverde Rosado, de 31 anos, que faz parte da direcção de relações externas e frente de casa, é uma das responsáveis pelo projecto, pensado para criar relações e experiências criativas para crianças. “Em 2024, o projecto mudou, porque em 2023 fomos só apresentar os espectáculos às escolas. Foi muito difícil criar relação com os municípios. Por isso, o que para nós fez sentido foi pensarmos num projecto a três anos, de continuidade e com menos municípios. A continuidade no projecto é essencial para criarmos relações e raízes no local”, tendo este sido um dos departamentos que cresceu em termos de pessoal desde o início da Odisseia Nacional.

Equipas Técnicas São Carlos
Rita ChantreJoão Lopes do Teatro Nacional de São Carlos

Por seu lado, o São Carlos está apenas agora a iniciar uma jornada que o levará para ainda mais lugares, além dos pontos principais do país. É mais um teatro nacional que leva consigo a vontade de descentralizar e alargar a acção. O chefe do sector de iluminação José Diogo, de 42 anos, espera que a aposta neste tipo de programação leve a um maior reconhecimento do trabalho do São Carlos. “Espero que o público aprecie aquilo que fazemos aqui e o tipo de espectáculo que temos. São espectáculos grandiosos, com uma componente artística muito grande, que mexe com músicos, coralistas, cantores e actores.”

No final do primeiro trimestre de 2026, espera-se que reabra o Teatro Nacional D. Maria II, com melhores condições para o público, mas principalmente para as equipas técnicas, de cena e artísticas. Até porque as saudades já apertam, garantem Catarina Mendes, João Pratas ou Andreia Mayer. Querem voltar a casa, querem ter tudo à mão, um espaço grande para trabalhar e, acima de tudo, estar a uma viagem de elevador dos colegas de outros sectores.

Equipas Técnicas São Carlos
Rita ChantreJosé Diogo do Teatro Nacional de São Carlos

Já o São Carlos prevê-se que reabra no final de 2026 ou início de 2027. Esperam-se também melhores condições para todos os que lá trabalham e para todos os que gostam de ir assistir a uma ópera. Até lá, o trabalho continua, mesmo que nem todos venham a regressar. É o caso de João Lopes. “Mais tarde, quem sabe, hei-de vir cá com uma bengalita ver como está o São Carlos”, diz, orgulhoso pelos anos que passou no Chiado.