Proteccionista mas com rasgos de coragem. Lisboa deixa-nos brincar como devíamos?

O Jardim do Príncipe Real vai ter um novo espaço para brincar, mais aberto e aliciante. Pretexto para olharmos para como a cidade está a construir o nosso lado lúdico.

Mai 4, 2025 - 12:44
 0
Proteccionista mas com rasgos de coragem. Lisboa deixa-nos brincar como devíamos?
Proteccionista mas com rasgos de coragem. Lisboa deixa-nos brincar como devíamos?

Uma coisa é o perigo, outra é o risco. E há quem defenda que, na Grande Lisboa, ainda se fazem "muitos parques tipo jaulinha", "de catálogo", "KFC [Kit Fence Carpet, isto é, conjunto vedação-tapete]", presos ao modelo conservador do "baloiço-escorrega-mola". Além de ser "pouco estimulante" para as crianças, de não as incentivar a experimentar o novo e a arriscar, com consequências para o seu desenvolvimento, "é completamente fora das tendências", critica Helena Menezes, consultora e formadora nesta área, que acompanha há mais de 30 anos, aconselhando autarquias e arquitectos paisagistas.

Lisboa tem mais de 200 parques infantis distribuídos pelas 24 freguesias. Muitos estão a ser reabilitados, mas por vezes faz-se "mais do mesmo" em vez de inovar, nota a investigadora Luana Nascimento, arquitecta da Junta de Freguesia da Misericórdia, responsável pela requalificação em curso do espaço de brincar do Jardim do Príncipe Real. Não é sempre, claro (vejam-se os casos do Parque Urbano Gonçalo Ribeiro Telles, na Praça de Espanha, ou do Parque Ribeirinho Oriente, no Braço de Prata), mas poderia arriscar-se mais, consideram as especialistas ouvidas pela Time Out. E por que razão isso não acontece? Por um lado, embora a legislação neste campo seja exigente, "muitos técnicos e decisores têm medo de que haja acidentes, de ter de assumir responsabilidades", o que os faz adoptar uma atitude defensiva, considera Helena Menezes. Por outro, há desconhecimento sobre a legislação nacional e as normas europeias. "Muitos acham que é obrigatório um parque ter vedação ou solo de borracha, porque o seu conhecimento vem de um discurso comercial", afirma. Sobre o solo, "a areia e o areão são mais eficazes na prevenção de lesões", afirma. Já quanto às vedações, são até "um obstáculo à vigilância dos pais, uma barreira ao brincar e um elemento anti-inclusão", complementa a arquitecta Luana Nascimento. Além de que nem um nem outro são obrigatórios por lei. Reforçando tudo isto, "há muitos pais superprotectores", complementa a arquitecta Catarina Bettencourt, da City Care, que faz consultoria e manutenção para entidades públicas e privadas nesta área.

Praia de Carcavelos
DR/City CarePraia de Carcavelos

Para Helena Menezes, porém, os técnicos e decisores "terem medo dos pais é uma grande desculpa para não fazerem melhor". "Pôr uma vedação à volta [condição central na lei de 2009, mas que desapareceu com a alteração de 2015, com o DL 203/2015], não pensar na questão das sombras, colocar equipamentos só a pensar numa determinada faixa etária e pouco estimulantes para as outras, e criar, além de tudo isso, um lugar em que os pais estão de pé, de braços cruzados, à espera de poderem ir embora, não é o ideal", ilustra a formadora. Em vez disso, o espaço lúdico tem de ser "uma continuidade do espaço urbano", onde diferentes gerações se relacionam e brincam, de forma livre.

Mesmo o nome "parque infantil", comummente utilizado, talvez não faça sentido. "Qual é a pessoa que não gosta de andar de baloiço, mesmo que seja adulta? Não pode um pai ou uma mãe subir para o escorrega com o filho?", questiona Luana Nascimento. Este é tópico possivelmente colado à legislação de 2009, na qual se previa a colocação de placas, à entrada dos parques, limitando o seu uso a certas idades (muitas existem ainda hoje, até numa tentativa de evitar a vandalização destes locais). "Só que já estamos em 2025", lembra a arquitecta. 

Jardim Carlos Consiglieri, em Benfica
Francisco Romão PereiraJardim Carlos Consiglieri, em Benfica

Há ainda a questão (não menor) dos custos, apontada Milva Maggioni, co-fundadora da Play Planet, que desenha e constrói espaços de jogo e recreio de Portugal à Austrália. "Os concursos [públicos] são muitas vezes ganhos pelo valor mais baixo e não pelo projecto em si. Por isso, quando se fala num produto mais premium ou num pavimento inovador, por exemplo, torna-se difícil competir. Ganham os mais baratos. Também por isso não há uma preocupação com a durabilidade, pensa-se mais no imediato... E em termos de desenho, de criatividade, também é mais fácil optar pelo que estão habituados a fazer do que pela mudança", resume. Resultado? "Perdemos todos, porque acabamos por ter muito pouca qualidade nos parques infantis. Poderia ser muito melhor", defende a responsável, que teve mão nos parques do Alvito, em Monsanto, do Largo da Memória, na Ajuda, ou no Parque da Fantasia, da Amadora. 

Puxar os limites

As normas europeias, chama a atenção Catarina Bettencourt, sublinham "a importância do risco para o desenvolvimento motor, social e intelectual", pelo que "se há uma protecção exagerada durante a infância, não é surpreendente que existam cada vez mais jovens de 18 anos com ataques de ansiedade". Porque "os medos são vividos mais tarde", explica. Por outras palavras, a regulamentação surgiu para evitar acidentes graves, mas não para criar "crianças totós", recuperando a expressão de Carlos Neto, um dos grandes defensores nacionais da brincadeira livre.

Como diz a arquitecta da City Care, "a areia ou a borracha estão lá para evitar traumatismos cranianos, mas vão sempre existir braços e pernas partidas e isso não é culpa de quem construiu os parques. Só que sempre que há um acidente num parque infantil as entidades são muito culpabilizadas. No interior das escolas, então, não há risco nenhum", descreve, dando exemplos de parques em Espanha com pêndulos de três metros de altura ou dos arrojados espaços de recreio da Alemanha e dos países nórdicos. Ainda sobre este tópico, Helena Menezes acrescenta: "As crianças têm de sentir que há estímulo. A única coisa é que os riscos não podem estar relacionados com pregos soltos ou com medidas mal feitas, que permitam entalar uma mão, por exemplo."

Parque Urbano Gonçalo Ribeiro Telles
Francisco Romão PereiraParque Urbano Gonçalo Ribeiro Telles

Se os espaços de jogo e de recreio são lugares para escorregar, trepar e pendurar a cabeça para baixo, também são terrenos de socialização, aspecto que pode parecer básico, mas que está em esquecimento na sociedade do digital. "Hoje há muitos filhos únicos e se eles não estão no espaço público estão em casa isolados, muitas vezes agarrados às tecnologias. E as relações, como sabemos, são fundamentais para a saúde mental", sublinha Helena Menezes.

Já na questão da educação física, há que apostar em "variedades de materiais, de texturas, de cheiros, misturar elementos naturais, fazer as crianças correrem em solos instáveis", defende a formadora. "Se é tudo lisinho, em borracha, se os degraus são todos certinhos com as mesmas distâncias, como é que uma criança vai aprender a mexer-se? Vai ser alguém sem noção do corpo, que cai com facilidade ou que vai contra os móveis em casa". Ou então, vai aborrecer-se, supõe Milva Maggioni, da Play Planet: "Uma torre com um escorrega que seja só para subir e descer esgota-se muito rápido. As crianças começam em pouco tempo a subir pelo escorrega, ao contrário, e a levar nas orelhas dos pais. Às vezes parece que nos esquecemos de que já fomos crianças. É que, se não houver espaço para a imaginação, há aborrecimento."

O novo parque do Príncipe Real

Na tentativa de evitar que crianças, jovens e adultos encontrem nos espaços de brincar lugares de tédio, mas também de responder aos desejos da população, a arquitecta Luana Nascimento consultou durante dois meses os frequentadores do Jardim do Príncipe Real. "Algumas crianças falaram que queriam lagoas e casas nas árvores. Há coisas que nem sempre são possíveis de concretizar... Mas também é verdade que 88% das crianças queriam um baloiço, uma coisa simples", conta. 

Jardim do Príncipe Real
Manuel MansoJardim do Príncipe Real

Com as obras de requalificação em curso (deverão estar concluídas no início do Verão), o parque deteriorado e pouco estimulante para algumas idades vai desaparecer. "A ausência de desafio é um problema", constata a investigadora. O que também vai desaparecer é a vedação que o contornava, ficando a segurança garantida por baias metálicas junto à estrada, onde circulam os automóveis. "Queremos o retorno ao convívio, aos jogos, à brincadeira livre. E tirar a cerca é essencial para abrir o parque à praça, sendo que a praça também vai abraçar o parque", descreve a arquitecta paisagista. "O meu interesse é trazer as pessoas para a rua. As crianças têm de sair de um espaço destes enriquecidas de coisas que não conseguem fazer em casa ou na escola." 

Para o Príncipe Real virão, por isso, equipamentos mais altos, com diferentes níveis e, portanto, inclusivos. "Incluir", como sublinha a investigadora, "não é colocar equipamentos para cadeiras de rodas, é fazer com que o espaço seja acessível a todos, independentemente da sua condição física ou psicológica". Junto à copa das árvores, estarão "estruturas de três metros de altura, que darão para seis, sete ou oito crianças se divertirem ao mesmo tempo", promovendo a socialização, mas também a entreajuda. Cá em baixo, nos novos bancos, estarão os pais, avós, irmãos e amigos, quem quiser. Idealmente sem pressa para ir embora e com vontade de vez em quando trepar ou dar uma cambalhota. Por que não?