Gaza: Meu sobrinho pergunta se só comerá carne no paraíso. Eu não sei o que responder

O aspecto mais difícil da fome em Gaza é ter que explicá-la para crianças pequenas. Quando, em 2 de março, soubemos que todas as passagens para Gaza estavam fechadas, achamos que duraria no máximo duas semanas. Queríamos muito um ramadã normal, em que pudéssemos convidar os parentes sobreviventes para o iftar e não nos preocupar […] O post Gaza: Meu sobrinho pergunta se só comerá carne no paraíso. Eu não sei o que responder apareceu primeiro em O Cafezinho.

Mai 11, 2025 - 08:47
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Gaza: Meu sobrinho pergunta se só comerá carne no paraíso. Eu não sei o que responder

O aspecto mais difícil da fome em Gaza é ter que explicá-la para crianças pequenas.

Quando, em 2 de março, soubemos que todas as passagens para Gaza estavam fechadas, achamos que duraria no máximo duas semanas. Queríamos muito um ramadã normal, em que pudéssemos convidar os parentes sobreviventes para o iftar e não nos preocupar com o que haveria para quebrar o jejum.

Mas não foi assim. Passamos o mês sagrado quebrando o jejum com comida enlatada.

Minha família, como a maioria em Gaza, não havia feito estoque de alimentos ou itens essenciais, pois ninguém esperava o fechamento das passagens, a fome ou sequer a volta da guerra.

Nos dias após o fechamento, alimentos e produtos básicos desapareceram dos mercados, e os preços dispararam. Um quilo de qualquer vegetal chegou a US\$ 8 ou mais, o açúcar a US\$ 22 e a fórmula infantil a US\$ 11. Um saco de farinha, que custava US\$ 8, passou para US\$ 50 e, em dois meses, alcançou US\$ 300.

A maioria das famílias em Gaza não conseguiu pagar esses preços. Como resultado, muitas, incluindo a minha, começaram a reduzir o número de refeições para apenas café da manhã e jantar, diminuindo também as porções: meio pão pela manhã e um pão inteiro à noite. Homens, mulheres, idosos e crianças passaram a esperar por horas em frente a padarias e cozinhas comunitárias, em vergonha e tristeza, apenas para conseguir alguns pães ou um pequeno prato de comida. Para algumas famílias, essa era a única refeição do dia.

Todos os moradores do centro de Gaza, onde vivo, passaram a depender de apenas três padarias: duas em Nuseirat e uma em Deir el-Balah.

As filas nessas padarias bloqueavam ruas e paralisavam o trânsito local. Todos os dias, pessoas desmaiavam ou sofriam sufocamento por causa da aglomeração. No fim, apenas alguns dos que esperavam desde cedo conseguiam pão.

Meu pai costumava ir antes do amanhecer para garantir um lugar na fila, em vez de gastar o pouco de farinha que nos restava. Mas ele já encontrava dezenas que haviam dormido na porta da padaria. Ficava até o meio-dia, quando meu irmão assumia seu lugar. No final, muitas vezes voltavam de mãos vazias.

Em 31 de março, o Programa Mundial de Alimentos anunciou o fechamento de todas as suas padarias, inclusive as três que acessávamos, por falta de farinha e gás para os fornos. Isso marcou o início da verdadeira fome.

Logo, as cozinhas comunitárias também começaram a fechar por falta de alimentos. Dezenas fecharam na última semana. As pessoas ficaram ainda mais desesperadas, recorrendo a grupos locais no Facebook ou Telegram para pedir que alguém vendesse um saco de farinha a um preço acessível.

Vivemos em um bairro “sortudo”, onde a cozinha comunitária ainda funciona.

Minha sobrinha Dana, de oito anos, enfrenta a fila todos os dias com os amigos, como se fosse uma brincadeira. Se consegue uma única concha de comida, volta correndo para casa, orgulhosa. Se não consegue antes de a comida acabar, volta chorando, dizendo como o mundo é injusto.

Durante o ramadã, um menino, deslocado com a família para a escola al-Mufti perto da nossa casa, caiu no caldeirão de comida quente da cozinha comunitária. Sofreu queimaduras graves e morreu.

Os sinais da fome se tornaram visíveis cerca de um mês e meio após o fechamento das passagens. Dormimos de estômago vazio, perdemos peso rapidamente, temos rostos pálidos e corpos fracos. Subir escadas agora exige o dobro do esforço.

Ficamos doentes com facilidade e a recuperação demora mais. Meus sobrinhos Musab, de 18 meses, e Mohammed, de dois anos, ficaram um mês doentes, com febre alta e sintomas gripais, pois não havia comida ou remédios suficientes.

Minha mãe teve grave perda de visão após complicações de uma cirurgia ocular em fevereiro. A desnutrição e a falta de colírios agravaram seu quadro.

Eu mesma não estou bem. Doei sangue ao hospital al-Awda em Nuseirat dias antes do fechamento da fronteira, o que afetou muito minha saúde. Sofro de fraqueza extrema, perda de peso e dificuldade de concentração. Quando procurei o médico, ele recomendou parar com alimentos enlatados e comer mais frutas e carne. Sabia que era impossível, mas o que mais poderia dizer?

Talvez a parte mais difícil seja explicar a fome para crianças pequenas. Meus sobrinhos pedem alimentos que simplesmente não temos. Tentamos convencê-los de que não estamos escondendo comida, mas que não existe nada para dar.

Khaled, de cinco anos, pede carne todos os dias enquanto vê fotos de comida no celular da mãe. Olha as imagens e pergunta se seu pai, martirizado, pode comer tudo isso no paraíso. Depois quer saber quando chegará sua vez de se juntar ao pai e comer com ele.

Não sabemos o que responder. Dizemos para ele ter paciência, pois ela será recompensada.

Sinto-me impotente ao ver todos os dias cenas de fome e desespero. Pergunto-me como o mundo consegue ficar em silêncio ao ver corpos infantis enfraquecidos e doentes morrendo lentamente.

A ocupação usa todos os meios para nos matar: bombas, fome ou doenças. Fomos reduzidos a mendigar por um pedaço de pão. O mundo inteiro assiste e finge que nada pode fazer.

Autor: Hala Al-Khatib
Biografia: Hala Al-Khatib é escritora de Gaza e estudante de literatura inglesa.
Data: 10 de maio de 2025
Fonte: Al Jazeera

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