Com menu impecável, Telma Shiraishi quer valorizar força dos imigrantes japoneses

A chef do Aizomê cria um menu nipo-brasileiro feito a partir de muita pesquisa, sem deixar de lado os complexos sabores dessa gastronomia cheia de riquezas

Mar 23, 2025 - 13:15
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Com menu impecável, Telma Shiraishi quer valorizar força dos imigrantes japoneses

Telma Shiraishi gosta de dividir sua trajetória em fases. Mas, para compreender essa história, é preciso voltar ao passado. Da mesma forma como a culinária japonesa faz o resgate das tradições para se manter viva, é assim também que a chef do Aizomê, restaurante em São Paulo fundado em 2007, leva a vida.

Apreciadora das tradições, a exemplo de uma que dá nome ao estabelecimento (‘aizome’ é uma técnica milenar de tingimento de tecidos com índigo), Telma foi criada para ter uma insaciável vontade de se desenvolver em todos os âmbitos.

Aizomê Revista CLAUDIA
Responsável por divulgar o pirarucu de manejo sustentável, Telma o prepara com missô de banana- da-terra, receita encontrada em suas pesquisasBruno Geraldi/CLAUDIA

“Eu tenho uma crença muito forte de que a gente vem à vida para aprender”  Telma Shiraishi

“Não é você fazer o que gosta, é você gostar do que faz, se dedicar. Eu tenho uma crença muito forte de que a gente vem à vida para aprender”, afirma a chef durante as fotos para este editorial, que traz receitas nipo-brasileiras, todas inspiradas nas adaptações feitas por imigrantes japoneses ao longo dos anos.

A BUSCA

Na primeira fase do restaurante, Telma muniu-se de uma incansável vontade de trabalhar, aprender, pesquisar e, principalmente, se provar. “No Brasil não acham que sou brasileira, e no Japão sabem que não sou japonesa. Por um bom tempo, isso foi uma crise de identidade forte”, conta ela, que começou o negócio ao lado do sócio Shin Koike e, algum tempo depois, passou a administrá-lo sozinha.

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O tartare de atum é feito com as raspas do peixe, representando o conceito de Mottainai, filosofia contrária ao desperdício. No lugar do shoyu, é usado o tucupiBruno Geraldi/CLAUDIA
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A disciplina para ser a melhor naquilo que fizesse foi um ensinamento que Telma recebeu desde o berço. Neta de imigrantes japoneses, ela cresceu em um espaço que mesclava as duas culturas. A mais velha de sua geração, assim como seus pais, Telma nasceu na capital paulista e foi criada em Paraibuna (SP), num ambiente rodeado por “mesas enormes”.

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A chef Telma Shiraishi comanda duas unidades do Aizomê em São Paulo: no bairro Jardins (na foto) e uma na Japan HouseBruno Geraldi/CLAUDIA

Na hora da refeição, sua família se deliciava com uma fusão do melhor dos dois mundos: onigiri com churrasco e feijoada com gohan. Quando ia para a casa da avó paterna, em Atibaia, recorda-se de ficar fascinada pelos apetrechos de cozinha. Com os utensílios, a avó fazia missô, conservas e temperava o arroz em tinas enormes de madeira.

“Eu ficava a assistindo trabalhar, às vezes ela varava a noite cozinhando para as festas de família. Me lembro de uma vez em que ela estava muito emocionada, mostrando para minha mãe que tinha conseguido folhas de alga nori. Naquela época, era muito difícil conseguir produtos importados”, recorda.

A chef explica que, na falta de algas, o jeito era fazer omeletes bem fininhas para poder enrolar o sushi, ou então, colocar folhas de mostarda ou de couve com sal e espremer, para poder enrolar o arroz. “Eu não tinha referências, só sei que sempre gostei muito de comer.”

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Robalo com aguachile de tomate com shiokoji, esferas de shoyu e azeite de shissôBruno Geraldi/CLAUDIA

Da avó materna veio a inspiração artística. Telma gostava de observar suas coleções de livros e revistas literárias em japonês. “Ela tinha uma língua muito afiada, dizem que era espirituosa. Mas daquela conversa em japonês, eu entendia muito pouco.”

Telma conta que, quando as pessoas descobrem que ela não fala o japonês fluentemente, apenas o jargão culinário, costumam se surpreender. Foi no comando do Aizomê, a partir de seu interesse por resgatar sua cultura, que a chef se debruçou nos estudos.

Seus pais aprenderam a língua em casa, vinda do convívio, e acabaram não passando para a próxima geração: “Foi por causa do trauma, do preconceito com os imigrantes, que sofreram muito quando chegaram aqui, e que só piorou com a Segunda Guerra Mundial”, explica. A chef recorda ainda das histórias sobre seus avós, que chegaram a ser interrogados e até presos à época, além de serem obrigados a esconderem livros e objetos que fizessem referência ao Japão, juntamente da proibição da língua.

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O magret de pato com tarê é feito com tucupi amarelo e kimpira (acompanhamento feito de raízes) de pupunhaBruno Geraldi/CLAUDIA
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“Quando percebi o que precisaria para ter um restaurante de culinária japonesa, vi que era muito mais do que aprender as técnicas. Tive que estudar história, geografia, tradições e filosofia”, conta a chef, que cita ainda ter se aprofundado no xintoísmo (crença conectada à natureza) e no budismo. “Foi aí que muita coisa se encaixou na minha cabeça.”

Nessa fase, com a saída do sócio, Telma precisou se provar num espaço tradicional. “Como é que uma mulher que nem é japonesa, não tem formação na área, vai manter um restaurante que, desde o início, era tradicionalmente baseado nas técnicas tradicionais? Foi quando eu precisei me provar mesmo.”

O PURISMO

Nos quase 20 anos de Aizomê, a casa recebeu inúmeras premiações, assim como sua chef. A mais ilustre delas foi em 2019, quando Telma recebeu o título de Embaixadora da Boa Vontade para Difusão da Culinária Japonesa pelo Governo Japonês, sendo a primeira mulher brasileira a tê-lo.

“O Aizomê teve uma fase em que eu era muito purista nas técnicas e nos ingredientes”, conta ela, que nessa época recebeu ainda o convite para assinar o cardápio do Consulado Geral do Japão.

Mas foi só quando recebeu o título que Telma sentiu que, finalmente, trouxe o sentimento de orgulho para seus pais. “Existia uma expectativa para que eu fosse médica”, conta a chef, que chegou a cursar medicina na USP.

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Com a necessidade de estagiar em hospitais, viu que não se identificava com a profissão, e chegou até a insistir na área e fazer um curso de ciências moleculares. Quando finalmente se rendeu à vontade de dar vazão ao lado artístico, estudou moda e trabalhou com o estilista Fause Haten. Ao tornar-se mãe, ficou por alguns anos em casa, se dedicando à maternidade.

“Quando minhas filhas atingiram uma certa independência, pensei em trabalhar com eventos”, relembra sobre a trajetória como personal chef. Contudo, ela, que nunca havia sonhado em ter um restaurante, acabou recebendo uma oportunidade de abrir o estabelecimento onde está até hoje.

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O mapará, peixe amazônico, é feito com o método kabayaki, que é muito utilizado com enguias. No lugar da pimenta sansho, o efeito dormente é dado pelo jambuBruno Geraldi/CLAUDIA

Apesar das incontáveis conquistas, aquele sentimento distante, da expectativa de seus pais, ficou dentro dela. “Durante um bom tempo, carreguei o sentimento de não ter sido a médica que eles queriam. Mas quando fui como convidada de honra, e pude levar meus pais, aí eles entenderam”, conta sobre o título recebido.

“Acho que foi um momento de muito orgulho para eles. Eu pude falar: ‘não fui médica, mas conquistei essa chance de, graças ao legado deles, poder resgatar e contar a história da família’.”

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COZINHA NIPO-BRASILEIRA

Hoje, a maior vontade da chef é contar a história dos imigrantes através de suas criações na cozinha. Com suas pesquisas, Telma passou a se questionar por que essa adaptação das receitas, numa época de muito sacrifício e trabalho, não era valorizada. “E também contar minha história, porque foi na cozinha que eu resolvi essa crise de identidade.”

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Para encerrar a refeição de forma tradicional, são servidos arroz, sopa e conservas. No caso, é o pinhão (ingrediente presente em sua infância) gohan, o tonjiru caipira (com carne de porco, legumes e coentro) e o tsukemono (com maxixe, hanaumê de hibisco e picles feito com fubá)Bruno Geraldi/CLAUDIA

“Os princípios japoneses têm muito mais a ver com você valorizar o que está no seu entorno” Telma Shiraishi

O menu apresentado neste editorial não são fusões inventadas pela chef, mas sim adaptações criadas, a partir da necessidade, por imigrantes japoneses residentes das mais diferentes regiões do Brasil, como Tomé-Açu, no Pará. Entram nessas receitas preparos com ingredientes característicos dessa imigração, caso do tomate Momotaro (que aparece no robalo) e da maçã Fuji (na sobremesa).

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A Fuji Tarte, criada pelo chef confeiteiro Rafael Aoki, é uma versão de tarte tatin feita com maçãs Fuji, acompanhada por tuille de especiarias brasileiras, caramelo de missô e sorvete de iogurteBruno Geraldi/CLAUDIA

O contrário acontece também, com ingredientes locais nas receitas japonesas, como tucupi, banana e hibisco. “Como eu iria querer fazer uma culinária purista se estou do outro lado do mundo? Os princípios japoneses têm muito mais a ver com você valorizar o que está no seu entorno”, defende a chef, que, por exemplo, nunca utilizou salmão em suas receitas.

“O principal de você falar que é uma culinária nipo-brasileira é você criar conexão com essas histórias, e poder ter algo que você só pode ter no Brasil.” Por aqui, já ansiamos pelas próximas fases de Telma e seu Aizomê.

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