Não sei se é permitido. Talvez eu esteja, à semelhança de Luís Montenegro, não a praticar um crime, mas a demonstrar "falta de ética". Porém, não resisto. Esta crónica de Miguel Sousa Tavares, publicada no Expresso, no passado dia 27, é tão, mas tão certeira... impossível não divulgar. Na verdade, copiei uma cópia, divulgada no Facebook.
Gostaria de acrescentar que não sou grande admiradora de Miguel Sousa Tavares, por, normalmente, tanto discordar dele. Depois de Trump ter ganho as eleições norte-americanas, porém, não podia concordar mais, pelo menos, sobre este assunto.
Os realces são da minha responsabilidade.
UM SÓ HOMEM (Miguel Sousa Tavares, Expresso, 27/03/2025)
«No dia 20 de Janeiro, depois de ter assistido à tomada de posse de Donald J. Trump como Presidente dos Estados Unidos, prometi a mim mesmo que não iria seguir obcecadamente cada passo da sua administração nem me deixaria deprimir pelo que aí vinha. A vida tem motivos muito mais interessantes do que acompanhar o desvario político, mental e humano do homem mais poderoso do mundo. Sim, Trump é Presidente dos Estados Unidos e os Estados Unidos detêm a maior capacidade militar e nuclear do mundo. Quer isto dizer que, em querendo, podem dar ordens ao mundo inteiro e ditar o destino de todos. Mas o meu, não.
Enganei-me: o meu também. Não consegui manter a minha promessa pela simples razão de que tudo o que está a acontecer na América ultrapassou em pior a minha imaginação, e como eu vivo neste tempo e neste mundo em que está um bandido à solta na Casa Branca e um grupo de marginais a acolitá-lo, não é possível, como cantava o Adriano Correia de Oliveira, viver serenamente. Não é possível, por mais que se queira — até como forma de resistência —, abstrair das malfeitorias diárias do Presidente dos Estados Unidos.
Se a agenda foi cumprida, o Conselheiro de Segurança Nacional de Trump, Mike Waltz, acompanhado de altas patentes militares, está esta sexta-feira na Gronelândia para avaliar in loco as potencialidades militares de um território a que Trump disse que, por razões de segurança, ia deitar a mão, “de uma maneira ou de outra”, comprado ou invadido. Na comitiva vai também a “vice-primeira dama”, a mulher do idiota J. D. Vance, e um filho, viajando em missão turística para ela mostrar à criancinha a conquista que o pai e o seu amigo Presidente vão fazer para os Estados Unidos. A Gronelândia, recorde-se, pertence à Dinamarca e a Dinamarca pertence à NATO, a organização militar de defesa comum liderada pelos Estados Unidos. Isto parece inacreditável, mas somos forçados a acreditar depois de termos visto, apenas nos primeiros 60 dias de governo, Trump reivindicar, além da Gronelândia, o canal do Panamá, a Faixa de Gaza, as riquezas minerais e as centrais nucleares ucranianas, e mesmo o Canadá, a quem convidou a tornar-se o 51º estado da União!
Por falar em NATO, ficámos também a saber que Trump não garante que os Estados Unidos respeitem o artigo 5º do Tratado, o “um por todos, todos por um”, que é o fundamento da organização. Mas como poderia garanti-lo se ele próprio fala abertamente em tomar posse de territórios, ou mesmo de países, seus aliados na NATO? A sua regra é simples: se é do seu interesse, da sua segurança ou do seu aprovisionamento estratégico, os Estados Unidos têm o direito de fazerem o que quiserem. Ao mesmo tempo que ele, Trump, ordena aos aliados europeus que desatem a gastar fortunas em armamento comprado aos Estados Unidos e delicia-se a receber, em audiências de vassalagem, os grandes da Europa, Keir Starmer e Macron, ou o seu pau-mandado Mark Rutte, secretário-geral da NATO, que lhe foi dizer que as suas ordens serão obedecidas e que a organização atlântica está pronta a marchar “under your comand, Sir”.
Entretanto, ameaça os palestinianos com o “inferno”, como se fosse novidade para eles, e bombardeia os hutis no Iémen para se substituir ao “parasitismo europeu”, como lhe chamou Pete Hegseth, um atrasado mental vindo da Fox News directamente para chefiar o Pentágono. A devoção de Trump por Israel é tanta, o seu desejo de tudo dar ao seu amigo Netanyahu é tamanho, que a polícia de emigração está a expulsar do país estudantes que participaram em manifestações contra o massacre em Gaza, mesmo que sejam residentes legais nos Estados Unidos, e a impedir de entrar no país quem se manifestou pela Palestina: agora, para entrar nos Estados Unidos é preciso nunca ter posto em causa as acções de Israel e sair é arriscar não poder voltar a entrar. Uma após outra, as principais universidades do país vêem o governo federal cortar-lhes os fundos sempre que alguém, no governo de Trump se lembra de ter lá visto manifestações pró-Palestina: Harvard ainda resiste, Columbia já ajoelhou, pronta a alinhar com o desejo de Trump de “banir esta insanidade antiamericana de uma vez por todas”. De caminho — coisa verdadeiramente inédita — encarregou a ministra da Educação de extinguir o respectivo Ministério, declarando que “agora é que vamos ter educação a sério!”. O pretexto é a invocada “esquerdização” do ensino e das universidades, das suas políticas de integração agora proibidas ou o desperdício de dinheiros públicos em aprendizagens inúteis ou antipatrióticas. Mas, na verdade, esta fúria contra o saber que está a paralisar a investigação nas universidades e a aterrorizar todos fundamenta-se numa coisa que é própria da ignorância arrogante de Donald Trump: o ódio à inteligência e ao conhecimento, que, para ele como para os seus apoiantes do MAGA, representa apenas a justa revolta do povo contra as elites intelectuais e académicas. O programa de Trump não é o de aproveitar e tirar partido do melhor dos Estados Unidos — a excelência de um ensino universitário que deu ao país dezenas de Prémios Nobel e o colocou na vanguarda do conhecimento científico e tecnológico. O seu programa e o seu génio político é ter sabido interpretar a nova luta de classes, que não é entre quem tem e quem não tem, como imaginou Marx, mas entre quem sabe e quem odeia os que sabem.
Mas, bem entendido, a grande ameaça de Trump à democracia americana e ao Estado de Direito na América e no mundo é o seu profundo desprezo por princípios que temos como universais nas nações civilizadas. Trump comporta-se como um Nero reencarnado, cego de vaidade e embriagado com o desfrute de um poder sem limites. O exemplo extremo disto foi a deportação para a Guatemala, e para uma prisão tida como a mais desumana do mundo, de uma centena de imigrantes venezuelanos que alguém decretou subitamente serem membros de um grupo de criminosos. Sem julgamento, sem instrução e sem defesa, foram expulsos dos Estados Unidos e enfiados numa prisão guatemalteca, sem prazo definido de detenção. Assim, o Presidente americano, sem qualquer interferência da Justiça, arroga-se o poder de acusar, julgar, condenar, decretar e executar a sentença, mesmo em país alheio: juiz de instrução, juiz de julgamento e juiz de execução de penas. E quando um juiz verdadeiro quer saber porque não foi obedecida a sua ordem de suspender a expulsão dos venezuelanos, Trump ameaça afastar esse e todos os juízes federais que contrariem judicialmente os seus desejos, e começou a perseguir, com as suas já célebres notas executivas, até as sociedades de advogados que representaram ou onde trabalhou alguém que o tenha investigado no passado. Trata-se daquilo a que agora chamam o “brokenism”, a política de partir tudo, mesmo a Constituição dos Estados Unidos e os direitos e garantias individuais, em nome da revolução conhecida como Projecto 25 — a tomada de poder por um homem e uma facção ao seu serviço no mais poderoso país do planeta. E, sobre tudo isto, alia a um desejo de vingança sobre quem não lhe reconheceu a vitória eleitoral em 2020, uma crueldade assustadora. O Presidente que se dispõe a fazer propaganda a favor do homem mais rico do mundo, transformando a Casa Branca num stand de automóveis Tesla, é o mesmo que da noite para o dia extinguiu a USAID, mandando para o desemprego todos os seus funcionários e condenando milhões de pessoas à fome, à doença e à miséria, em África e na Ásia pobre, e que corta todas as verbas para a investigação de vacinas para doenças como a malária.
Como é que chegámos aqui? Como é que a “land of the free”, uma nação de referência do mundo democrático, num instante se está a transformar num fascismo unipessoal? Como é que chegámos aqui? Chegámos pelo voto popular, pela escolha da maioria dos americanos. Porque hoje já não é necessário derrubar as democracias por golpe militar: derrubam-se nas urnas por voto popular manipulado e planeado por golpistas silenciosos nas redes sociais.»