‘Sonhar com Leões’: uma comédia sobre a eutanásia como “forma de resistência à dor”
O cineasta luso-grego Paolo Marinou-Blanco criou um filme de comédia sobre a eutanásia. ‘Sonhar com Leões’ juntou três países em torno do assunto e convida-nos a rir sobre assuntos sérios a partir desta quinta-feira.


É um dos temas que mais debate gera na sociedade civil. De um lado os que clamam pelo valor da vida humana, muitas vezes embalados pelo medo ou por motivações religiosas, do outro os que gritam pela liberdade individual de escolher morrer com dignidade, nos seus próprios termos, e também com medo, mas de deixarem de ser quem são. Sonhar com Leões é a história de Gilda, uma mulher com cancro terminal que quer morrer sem dor, mas não consegue. Após tentar e falhar por várias vezes, inscreve-se numa empresa clandestina chamada Joy Transition International, que promete ensinar a morrer sem dor, onde conhece Amadeu, um jovem que tem uma relação demasiado próxima com a morte. Sonhar com Leões estreia a 8 de Maio nos cinemas portugueses.
Gilda (Denise Fraga) é uma brasileira a viver em Portugal, professora reformada e uma mulher abençoada por sentido de humor acutilante e sarcástico. Mas tem apenas um ano de vida e os médicos prevêem que fique paralisada antes de morrer. Como a eutanásia é ilegal em Portugal, Gilda tenta uma fuga para a frente nos workshops da tal empresa – que se vão revelando grotestos e absurdos –, que por sua vez é liderada por Eva (Sandra Faleiro), uma mulher ambiciosa que lucra com o desespero alheio. Mas, no grupo de inscritos, Gilda conhece o introvertido jovem Amadeu (João Nunes Monteiro), que lhe conta também ter pouco tempo de vida, devido a um tumor que lhe tira todas as horas de sono. Juntos embarcam numa jornada em busca de uma morte indolor, num enredo igualmente cómico e comovente, que chega a envolver um assalto a uma clínica veterinária. Sonhar com Leões é escrito e realizado pelo luso-grego Paolo Marinou-Blanco, numa produção que juntou Portugal, Espanha e Brasil.
"A comédia é um acto de coragem"
Nem sempre estamos a fim de levar murros no estômago no cinema. Como espectador, Paolo Marinou-Blanco confessa à Time Out que às vezes é assim. “Se tentas realmente pegar na minha cabeça e esfregá-la em algo que seja muito difícil, eu vou resistir”. Talvez porque lhe bastaram os murros que a vida lhe tem dado e que acabaram por fazer nascer esta história, que trata de um assunto sério com muito humor à mistura. Até porque, confessa, nunca vê “só o lado dramático, do quer que seja”.
A morte do pai tem inspirado as suas criações, como aconteceu em Goodnight Irene (2008), a sua primeira longa-metragem, e agora em Sonhar com Leões. “O que aconteceu é que o meu pai estava acamado, não podia falar e só queria ir-se embora. Ainda não temos eutanásia, mas na altura nem sequer havia a possibilidade de pedir a um médico, assim, por baixo da mesa. Nada”, recorda. Mas se em Goodnight Irene o cineasta se focou nos seus próprios sentimentos em relação à morte do pai, neste novo filme reconsiderou a morte do pai “através da perspectiva dele” e nas questões relacionadas com o direito à eutanásia. E, neste caso, defende, “a comédia é um acto de coragem”. “Não acho que a vida tenda naturalmente para a comédia e, portanto, se nós conseguimos inserir comédia, ou tragicomédia, é uma forma de resistência à dor”.
Para concretizar a sua ideia, recorda, precisava de uma protagonista muito particular para interpretar Gilda. Primeiro, procurava uma actriz que não fosse portuguesa, uma vez que o cineasta não queria “que a personagem tivesse um apoio”, ou seja, que estivesse deslocada sem especial apoio de familiares, porque “a solidão e também torna tudo mais difícil”. E depois precisava de alguém que tivesse facilidade de quebrar a quarta parede. A certa altura, durante a pandemia, Denise e o marido, o realizador Luiz Villaça, fizeram uma série de vídeos para o YouTube chamada Horas em Casa. "O que Denise fazia era sempre um fio da navalha entre o drama e a comédia. O talento era incrível”, lembra Paolo Marinou-Blanco, sublinhando que “o tom já estava construído de alguma maneira, de como a Gilda falaria com o público”, diz, referindo-se às cenas em que a sua personagem fala directamente para a câmara. A escolha estava feita e não precisou de mais provas de talento. A parceria resultou tão bem que já têm planos para um novo projecto.
Quem também usou a expressão “fio da navalha” numa conversa com a Time Out foi a actriz Sandra Faleiro, que teve de navegar entre o humor e a tragédia para vestir a pele de Eva: “É uma zona de que eu gosto muito. Estamos a trabalhar no fio da navalha. O grande desafio foi não cair no boneco e haver ali uma verdade qualquer. Acho que ela é bastante perversa. Dá vontade de rir até com os nervos, com a sua perversidade e a crueldade”.
Sobre a direcção de actores do realizador, Sandra Faleiro explica que “é bastante rigoroso e sabe muito bem aquilo que quer”. Um elogio que encontra eco na opinião de João Nunes Monteiro, com quem a Time Out também trocou umas impressões. “O Paolo é um estudioso do detalhe”, descreve o actor, que se sentiu bastante apoiado na busca pelo tom de Amadeu. “Era importante que o Amadeu fosse linear e passámos bastante tempo à procura de um tom para ele, uma forma de estar e de falar, quase um estado de adormecimento, que eu acho que era importante para aquela personagem”, recorda. Por outro lado, para João Nunes Monteiro, o tom do filme acaba por ser uma “óptima forma” de falar sobre a eutanásia. “Este caminho através da comédia e do riso pode ser uma forma de aproximar as pessoas [...] e também despontar compaixão para a situação que está a ser vista”, defende.
A inspiração para o título do filme veio da obra O Velho e o Mar, de Ernest Hemingway, onde a única imagem que o Velho tem de alguma sensação positiva é a de uma família de leões a brincar na costa africana, como explica Paolo Marinou-Blanco: "Uma imagem de paz, de serenidade, de bem-estar, de ausência, de luta. E, para mim, esse é o estado ao qual a Gilda gostaria de chegar. E o Amadeu também, de certa forma".
O elenco de Sonhar com Leões conta ainda com Joana Ribeiro, Alexander Tuji, Victoria Guerra, António Durães, Dinarte de Freitas, Isabel Simões, Assun Planas ou Roberto Bomtempo. Mais para a frente, o filme terá uma versão minissérie, dividida em três episódios, possivelmente com mais cenas que foram cortadas no filme. E entre os projectos em mãos, Paolo Marinou-Blanco está a trabalhar noutra tragicomédia, uma sátira sobre lares de idosos e a crise de habitação em Portugal.
Sonhar com Leões. Estreia a 8 de Maio nos cinemas