Dias de Batávia (4)
Quando há dias cheguei ao hotel que durante esta semana me acolheu, logo percebi que estava numa zona central e movimentada. Torres com uma arquitectura inovadora, denotando a sua ocupação por empresas petrolíferas, instituições bancárias e financeiras internacionais, passeios amplos, vastas zonas arborizadas, prédios residenciais com jardins tratados e entradas imponentes, algumas moradias de luxo nas artérias adjacentes, muita segurança nos acessos às habitações, aos edifícios de escritórios, aos hotéis e vários centros comerciais. Muitos homens circulando com fatos de bom corte em passo estugado. Profissionais liberais, talvez, diplomatas, empresários ou quadros superiores de multinacionais. Mulheres bonitas, arranjadas e impecavelmente vestidas, as que não seguiam de hijab e chador. É impossível ser insensível à beleza, à graça, à classe. As que vi de burca pareceram-me todas ricas e de outras paragens do mundo árabe. Percebi estar numa zona nobre da grande metrópole. Não escolhi o hotel, mas fiquei satisfeito por estar alojado num belíssimo quarto com todas as comodidades de uma das minhas cadeias preferidas e já conhecida de outras andanças. O preço do quarto era irrisório para a qualidade do hotel e por comparação com os 300 e 400 euros que já me pediram nalguns lugarejos lusos por quartos minúsculos, decorados com incrível mau gosto e camas péssimas. Viajar é para mim uma obrigação. Se aos dezoito anos o fiz de comboio ou à boleia pela Europa fora, com um saco-cama, amealhando em campos de trabalho o que gastaria na semana seguinte, coisa de que nunca me arrependi, a partir de determinada altura passei a poder fazê-lo com outras condições de conforto e segurança. Viajar devia ser para todos, mesmos para aqueles que são mais sedentários ou possuem menos recursos. Devia dar abatimentos no IRS fazendo-se prova da viagem e da sua utilidade. Pelos horizontes que abre, por aquilo que é capaz de nos fazer reflectir, a viagem obriga-nos a comparar, instrui-nos, educa-nos. Não é o mesmo que fazer turismo. Viajar é mais do que passar pelos lugares e tirar umas fotografias para memória futura. É aprender a conhecer os outros, e ter tempo para isso. Tempo para melhor os compreendermos e respeitá-los na sua identidade, coisa que não se faz à lufa-lufa, entrando e saindo de autocarros repletos, comendo a toque de caixa e decorando a matéria previamente preparada por outros até todas as noites se morrer estafado numa cama de onde se tem de saltar à alvorada sem que nos tenhamos sequer apercebido da cor das paredes do quarto e da textura do lençol. Verdade que não será sempre assim. Uma ou outra vez, em tempos, também “excursionei”, por razões logísticas e económicas. Ainda há locais onde só se pode aceder como "turista". Hoje evito-o. E a esses locais também. E viajar é sempre uma oportunidade para fugir da rotina, pensar em Portugal à distância, e nos nossos semelhantes. Viajar é dar sentido aos sentidos. Importa pela gente que se vai conhecendo, que nos vai ensinando coisas novas noutras línguas, que connosco vi partilhando experiências, olhares, lições de vida, e que assim nos vai aproximando de novos horizontes, de outras maneiras, dando-nos generosidade, mundo, civilização, alma. É verdade que nunca pensei ser rico para viajar; convenhamos que dá sempre um certo jeito. E quando se pode fazer isso a vida toda sem depender do partido, da autarquia, do governo ou da empresa, tanto melhor. Vem isto a propósito do Primeiro de Maio de 2025, vivido em Jacarta. Saindo logo pela manhã do hotel em direcção às imediações do Monas, encontrei gente de múltiplas organizações. Uns marchando, outros cantando, alguns petiscando à sombra das árvores. Muitos chegaram de fora, em autocarros, outros de mota e a pé, trajando a rigor. Algumas ruas estavam com o trânsito interrompido. Palavras de ordem, cânticos de megafone, que me recordaram outros dias iguais no rectângulo lusíada. Polícias, militares, descontraídos apesar de atentos. Vendedores ambulantes procurando a sorte. Depois do discurso do Presidente muitos partiram para o longe de onde haviam chegado horas antes. Os manifestantes desfilaram diante da Embaixada dos EUA. Houve quem passasse pelas representações da Alemanha, da França e do Japão no seu percurso. Não foi preciso impedir ninguém de se manifestar ou controlar palavras de ordem. Não se retiraram cartazes, nem a polícia mandou despir t-shirts ou retirar livros das bancas. Era um dia de festa. Foi uma festa. Em contrapartida, em Macau, viveu-se mais um ano sem manifestações. Foi o sexto ano consecutivo sem Primeiro de Maio. Morreu. Finou-se. É a herança a meio do período de transição. Aqui está o exemplar cumprimento da Declaração Conjunta Luso-Chinesa sobre o Futuro de Macau. Quando regressei, o Ponto Final noticiava que advertências da polícia fizeram recuar a única associação que pretendia manifestar-se no Primeiro de Maio. A associação de trabalhadores que a promovera, “por advertências da polícia, acabou p

Quando há dias cheguei ao hotel que durante esta semana me acolheu, logo percebi que estava numa zona central e movimentada.
Torres com uma arquitectura inovadora, denotando a sua ocupação por empresas petrolíferas, instituições bancárias e financeiras internacionais, passeios amplos, vastas zonas arborizadas, prédios residenciais com jardins tratados e entradas imponentes, algumas moradias de luxo nas artérias adjacentes, muita segurança nos acessos às habitações, aos edifícios de escritórios, aos hotéis e vários centros comerciais. Muitos homens circulando com fatos de bom corte em passo estugado. Profissionais liberais, talvez, diplomatas, empresários ou quadros superiores de multinacionais. Mulheres bonitas, arranjadas e impecavelmente vestidas, as que não seguiam de hijab e chador. É impossível ser insensível à beleza, à graça, à classe. As que vi de burca pareceram-me todas ricas e de outras paragens do mundo árabe. Percebi estar numa zona nobre da grande metrópole.
Não escolhi o hotel, mas fiquei satisfeito por estar alojado num belíssimo quarto com todas as comodidades de uma das minhas cadeias preferidas e já conhecida de outras andanças. O preço do quarto era irrisório para a qualidade do hotel e por comparação com os 300 e 400 euros que já me pediram nalguns lugarejos lusos por quartos minúsculos, decorados com incrível mau gosto e camas péssimas.
Viajar é para mim uma obrigação. Se aos dezoito anos o fiz de comboio ou à boleia pela Europa fora, com um saco-cama, amealhando em campos de trabalho o que gastaria na semana seguinte, coisa de que nunca me arrependi, a partir de determinada altura passei a poder fazê-lo com outras condições de conforto e segurança.
Viajar devia ser para todos, mesmos para aqueles que são mais sedentários ou possuem menos recursos. Devia dar abatimentos no IRS fazendo-se prova da viagem e da sua utilidade. Pelos horizontes que abre, por aquilo que é capaz de nos fazer reflectir, a viagem obriga-nos a comparar, instrui-nos, educa-nos.
Não é o mesmo que fazer turismo. Viajar é mais do que passar pelos lugares e tirar umas fotografias para memória futura. É aprender a conhecer os outros, e ter tempo para isso.
Tempo para melhor os compreendermos e respeitá-los na sua identidade, coisa que não se faz à lufa-lufa, entrando e saindo de autocarros repletos, comendo a toque de caixa e decorando a matéria previamente preparada por outros até todas as noites se morrer estafado numa cama de onde se tem de saltar à alvorada sem que nos tenhamos sequer apercebido da cor das paredes do quarto e da textura do lençol. Verdade que não será sempre assim. Uma ou outra vez, em tempos, também “excursionei”, por razões logísticas e económicas. Ainda há locais onde só se pode aceder como "turista". Hoje evito-o. E a esses locais também.
E viajar é sempre uma oportunidade para fugir da rotina, pensar em Portugal à distância, e nos nossos semelhantes. Viajar é dar sentido aos sentidos. Importa pela gente que se vai conhecendo, que nos vai ensinando coisas novas noutras línguas, que connosco vi partilhando experiências, olhares, lições de vida, e que assim nos vai aproximando de novos horizontes, de outras maneiras, dando-nos generosidade, mundo, civilização, alma.
É verdade que nunca pensei ser rico para viajar; convenhamos que dá sempre um certo jeito. E quando se pode fazer isso a vida toda sem depender do partido, da autarquia, do governo ou da empresa, tanto melhor.
Vem isto a propósito do Primeiro de Maio de 2025, vivido em Jacarta. Saindo logo pela manhã do hotel em direcção às imediações do Monas, encontrei gente de múltiplas organizações. Uns marchando, outros cantando, alguns petiscando à sombra das árvores. Muitos chegaram de fora, em autocarros, outros de mota e a pé, trajando a rigor. Algumas ruas estavam com o trânsito interrompido.
Palavras de ordem, cânticos de megafone, que me recordaram outros dias iguais no rectângulo lusíada. Polícias, militares, descontraídos apesar de atentos. Vendedores ambulantes procurando a sorte. Depois do discurso do Presidente muitos partiram para o longe de onde haviam chegado horas antes.
Os manifestantes desfilaram diante da Embaixada dos EUA. Houve quem passasse pelas representações da Alemanha, da França e do Japão no seu percurso. Não foi preciso impedir ninguém de se manifestar ou controlar palavras de ordem. Não se retiraram cartazes, nem a polícia mandou despir t-shirts ou retirar livros das bancas. Era um dia de festa. Foi uma festa.
Em contrapartida, em Macau, viveu-se mais um ano sem manifestações. Foi o sexto ano consecutivo sem Primeiro de Maio. Morreu. Finou-se. É a herança a meio do período de transição. Aqui está o exemplar cumprimento da Declaração Conjunta Luso-Chinesa sobre o Futuro de Macau.
Quando regressei, o Ponto Final noticiava que advertências da polícia fizeram recuar a única associação que pretendia manifestar-se no Primeiro de Maio. A associação de trabalhadores que a promovera, “por advertências da polícia, acabou por desistir da intenção”. Dizia o jornal que “as autoridades avisaram que a manifestação poderia até violar a lei de segurança nacional”. "Até"! Bendita lei. Ainda assim um homem foi levado para a esquadra pela PSP por protestar sozinho em frente à Direcção dos Serviços para os Assuntos Laborais. Ao que parece (os critérios são muito fluídos) violou a lei do direito de reunião e manifestação. Um homem. No Primeiro de Maio. Adiante. Aos portugueses, a Portugal e ao seu governo nada disto interessa.
Pois em Jacarta houve Primeiro de Maio. Ninguém violou a Lei de Segurança Nacional. Ninguém andou à procura de pretensas violações da lei para impedir as pessoas de livremente se manifestarem. Ninguém teve medo da sua própria sombra, não obstante o sol intenso e o calor que se fazia sentir.
Aproveitei o resto da tarde para visitar uma pequena feira do livro, em Cikini, no Taman Ismail Mazurki Park, anteriormente conhecido como Jakarta Arts Center, actualmente gerido pelo Jakarta Arts Council. Trata-se de um complexo cultural, cujo nome se deve a um compositor e músico indonésio. O centro foi renovado em 2021e inclui a biblioteca da cidade, um planetário, teatros, um centro de arte e documentação, salas de cinema e de exposições.
No dia seguinte, o Jakarta Post, num texto de Shinta Kamdani e Elly Rosita, respectivamente, dirigentes da Indonesian Employers Association (Apindo) e da Confederation of Indonesia Prosperity Trade Union (KSBSI), apelava ao diálogo social em tempos de incerteza, recordando que as crises se ultrapassam quando são enfrentadas por uma nação unida e com um único objectivo, através de acordos mútuos, evitando-se exacerbar os conflitos internos e mostrando-se empenho na resolução dos problemas. Patrões e trabalhadores não são adversários, mas sim parceiros de um mesmo ecossistema. Palavras sábias e actuais.
Só os fracos, os medíocres e os imbecis temem a democracia e as suas instituições, desconfiam dos estrangeiros, receiam qualquer manifestação e controlam toda a informação.