No nosso império com pés de barro ninguém voltou da guerra inteiro.

   O que empolga na cadência deste romance é a estuante singeleza pontuada pela multiplicidade de ritmos literários, engrena-se numa prosódia que nos faz lembrar o que de melhor se escreveu no neorrealismo e na espiral da escrita dominam marcações expressionistas e até uma poderosa metáfora em desacerto com a cronologia da narrativa, pois aparece inaugurada a maior ponte suspensa da Europa, ali no vale de Alcântara e a sair em Almada, e segue-se uma convulsão que, bem vistas as coisas, é o anúncio de uma revolução com algumas analogias com a que tivemos em abril de 1974. Este primeiro livro de Nuno Duarte, coroado pelo Prémio Leya 2024, mais do que o despertar de um escritor é uma apoteose ao fervor da leitura. Tudo se vai passar na década de 1960, os protagonistas nem chegam à categoria de gente remediada. Victor Tirapicos teve dois anos na prisão porque roubou havendo fome, saiu de um lugar de Sintra e veio para a Alcântara, para o Pátio do Cabrinha, é acolhido por um tio sapateiro, alguém que faz as chuteiras do Atlético Clube de Portugal, o Victor dar-se-á bem com o tio Artur e a tia Ema. Ali no Pátio vive gente que tem nome, tal como a Cesaltina e a Cordália, o Manuel Cheirinho, o Ângelo Barraquinho, o Rui Folha e dentre em breve uma rapariga muda que trabalha na fábrica do chocolate Regina. Victor vem à procura de trabalho, vai ser construída a ponte sobre o Tejo, os norte-americanos estarão profundamente envolvidos, trarão 70 mil toneladas de aço e tecnologia de ponta. Já estamos com a guerra colonial em Angola, far-se-á a ponte e nessa altura haverá três frentes da guerra. Victor tem muito enlevo no seu irmão Quim, tudo fará para que o mano chegue à universidade. As relações com o pai ficaram estragadas, não perdoou ao filho aquele roubo de batatas. Entra em cena a menina dos chocolates Regina, chama-se Dália, é muda, comunica com o que escreve numa pequena sebenta. O Victor trouxe a experiência de anos numa serralharia da Abrunheira, será admitido nos trabalhos da ponte. A atração Dália-Victor é rápida e pujante, circulamos por tudo quanto é Pátio do Cabrinha, vai crescendo o clímax para os trabalhos da construção, e haverá momentos em que Nuno Duarte nos consegue assombrar com a saga de tal empreendimento, escrevendo coisas como esta: “A grandiosa obra entrou numa fase decisiva, todos os dias os cabos principais eram esticados de margem a margem, desenrolados em bobinas com sem quilómetros de fio de uma ancoragem à outra, aos quatro fios de cada vez, a roda a levá-los para um lado e depois a voltar, a trazer outros quatro, como se fosse uma roca de fiar gigante, e a deixá-los no local certo onde eram postos junto dos restantes por operários como o Victor e como o Vicente e como o Ivo e como o Tito, lá em cima no passadiço onde o João quase ficara sem mãos. Mais de duzentos operários por turno, espalhados ao longo do cabo, ao longo da ponte sem nome que se construía sobre o rio Tejo. Dois turnos por dia, dezasseis horas a levar e a trazer fios que, todos juntos, formavam os cabos da ponte, em pouco mais de três meses estavam os milhões de fios unidos, a máquina humana que construía a ponte estava afinada como um instrumento de precisão, os muitos homens que eram os seus componentes, operários, técnicos e engenheiros funcionavam com a cadência de um metrónomo. E, lá em cima, o Victor mirava o mundo.” Há taberna e há bêbedos, a PIDE anda atenta, irá buscar o Rui Folha. As obras da ponte atraem meio mundo, os norte-americanos pagavam bem, naquele final de 1962 já ali trabalhavam 1500 homens, ficaremos embrenhados por este cenário em que o estaleiro era um imenso labirinto de barracões e material, há cada vez mais gente, há mesmo um Lenine e um João Pança, este é eletricista e veio de Niza, viverá uma experiência que podia ter dado um acidente mortal, Victor é analfabeto, mas vai encontrar quem lhe ensine as primeiras letras, o Ângelo Barraquinho. Não faltam cenas canalhas, Tito Brandão, esteve na prisão com o Victor, procura atrair este para uma roubalheira, Victor recusa, haverá na ponte um roubo de monta, terá um enorme peso no desfecho do romance. Iremos ao campo do Atlético vê-lo jogar com o Belenenses, entra um biltre em cena, chama-se Josué, é sucateiro, saberemos mais tarde que é um monstro, aparecerá também no desfecho do romance. De vez em quando aparece ali o almirante Américo Thomaz, o tal Presidente da República corta-fitas, a obra cresce, o pai do Victor cada vez mais doente, não perdoou ao filho, mesmo nas vascas da agonia. Victor e Dália casam-se na conservatória, e começa a latejar forte na narrativa aquela guerra colonial, aqueles barcos pejados de militares que partem e chegam. Há tragédias na ponte, gente que morre, ninguém pode sobreviver daquelas quedas. A atmosfera do país é aqui retratada a corpo inteiro no olhar desta gente que se organizou como proletariado urbano naquele vale de Alcântara que começa a ter sumiço, a ficar deformado pelos imensuráveis arruamentos que cond

Mai 7, 2025 - 19:40
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No nosso império com pés de barro ninguém voltou da guerra inteiro.

 


 

O que empolga na cadência deste romance é a estuante singeleza pontuada pela multiplicidade de ritmos literários, engrena-se numa prosódia que nos faz lembrar o que de melhor se escreveu no neorrealismo e na espiral da escrita dominam marcações expressionistas e até uma poderosa metáfora em desacerto com a cronologia da narrativa, pois aparece inaugurada a maior ponte suspensa da Europa, ali no vale de Alcântara e a sair em Almada, e segue-se uma convulsão que, bem vistas as coisas, é o anúncio de uma revolução com algumas analogias com a que tivemos em abril de 1974. Este primeiro livro de Nuno Duarte, coroado pelo Prémio Leya 2024, mais do que o despertar de um escritor é uma apoteose ao fervor da leitura.

Tudo se vai passar na década de 1960, os protagonistas nem chegam à categoria de gente remediada. Victor Tirapicos teve dois anos na prisão porque roubou havendo fome, saiu de um lugar de Sintra e veio para a Alcântara, para o Pátio do Cabrinha, é acolhido por um tio sapateiro, alguém que faz as chuteiras do Atlético Clube de Portugal, o Victor dar-se-á bem com o tio Artur e a tia Ema. Ali no Pátio vive gente que tem nome, tal como a Cesaltina e a Cordália, o Manuel Cheirinho, o Ângelo Barraquinho, o Rui Folha e dentre em breve uma rapariga muda que trabalha na fábrica do chocolate Regina. Victor vem à procura de trabalho, vai ser construída a ponte sobre o Tejo, os norte-americanos estarão profundamente envolvidos, trarão 70 mil toneladas de aço e tecnologia de ponta. Já estamos com a guerra colonial em Angola, far-se-á a ponte e nessa altura haverá três frentes da guerra. Victor tem muito enlevo no seu irmão Quim, tudo fará para que o mano chegue à universidade. As relações com o pai ficaram estragadas, não perdoou ao filho aquele roubo de batatas.

Entra em cena a menina dos chocolates Regina, chama-se Dália, é muda, comunica com o que escreve numa pequena sebenta. O Victor trouxe a experiência de anos numa serralharia da Abrunheira, será admitido nos trabalhos da ponte. A atração Dália-Victor é rápida e pujante, circulamos por tudo quanto é Pátio do Cabrinha, vai crescendo o clímax para os trabalhos da construção, e haverá momentos em que Nuno Duarte nos consegue assombrar com a saga de tal empreendimento, escrevendo coisas como esta:

“A grandiosa obra entrou numa fase decisiva, todos os dias os cabos principais eram esticados de margem a margem, desenrolados em bobinas com sem quilómetros de fio de uma ancoragem à outra, aos quatro fios de cada vez, a roda a levá-los para um lado e depois a voltar, a trazer outros quatro, como se fosse uma roca de fiar gigante, e a deixá-los no local certo onde eram postos junto dos restantes por operários como o Victor e como o Vicente e como o Ivo e como o Tito, lá em cima no passadiço onde o João quase ficara sem mãos. Mais de duzentos operários por turno, espalhados ao longo do cabo, ao longo da ponte sem nome que se construía sobre o rio Tejo. Dois turnos por dia, dezasseis horas a levar e a trazer fios que, todos juntos, formavam os cabos da ponte, em pouco mais de três meses estavam os milhões de fios unidos, a máquina humana que construía a ponte estava afinada como um instrumento de precisão, os muitos homens que eram os seus componentes, operários, técnicos e engenheiros funcionavam com a cadência de um metrónomo. E, lá em cima, o Victor mirava o mundo.”

Há taberna e há bêbedos, a PIDE anda atenta, irá buscar o Rui Folha. As obras da ponte atraem meio mundo, os norte-americanos pagavam bem, naquele final de 1962 já ali trabalhavam 1500 homens, ficaremos embrenhados por este cenário em que o estaleiro era um imenso labirinto de barracões e material, há cada vez mais gente, há mesmo um Lenine e um João Pança, este é eletricista e veio de Niza, viverá uma experiência que podia ter dado um acidente mortal, Victor é analfabeto, mas vai encontrar quem lhe ensine as primeiras letras, o Ângelo Barraquinho.

Não faltam cenas canalhas, Tito Brandão, esteve na prisão com o Victor, procura atrair este para uma roubalheira, Victor recusa, haverá na ponte um roubo de monta, terá um enorme peso no desfecho do romance. Iremos ao campo do Atlético vê-lo jogar com o Belenenses, entra um biltre em cena, chama-se Josué, é sucateiro, saberemos mais tarde que é um monstro, aparecerá também no desfecho do romance. De vez em quando aparece ali o almirante Américo Thomaz, o tal Presidente da República corta-fitas, a obra cresce, o pai do Victor cada vez mais doente, não perdoou ao filho, mesmo nas vascas da agonia. Victor e Dália casam-se na conservatória, e começa a latejar forte na narrativa aquela guerra colonial, aqueles barcos pejados de militares que partem e chegam. Há tragédias na ponte, gente que morre, ninguém pode sobreviver daquelas quedas. A atmosfera do país é aqui retratada a corpo inteiro no olhar desta gente que se organizou como proletariado urbano naquele vale de Alcântara que começa a ter sumiço, a ficar deformado pelos imensuráveis arruamentos que conduzem à ponte, que põem fim aos negócios do tio Artur que tem cada vez menos meias solas para tirar.

A tragédia familiar vai focar-se no Quim, aquele mano tão amado por Victor, não continuou os estudos, partirá para a guerra, isto enquanto a ponte cresce. A guerra é um sorvedoiro de gente, Nuno Duarte entremeia com mestria a espiral da guerra inútil com todos os preparativos daquela ponte ter o nome de Salazar, há de premeio chuvas diluvianas e o Quim lá anda pelo norte de Moçambique, não com uma Mauser, mas com uma G3, é atirador especial, os habitantes do vale de Alcantâra foram escorraçados à força das barracas onde viviam, vão desaparecendo o Casal Ventoso e outros lugares que eram verdadeiros esgotos.

E temos um final apocalítico, haverá um cataclismo na inauguração da ponte, em 6 de agosto de 1966. Tudo irá mudar em Portugal, é a mensagem radiosa, seguramente metafórica de um regime que se colapsa e de Forças Armadas triunfantes. E é a hora de deixar uma derradeira mensagem: “Para ter justiça, não basta a esperança nem um partido que se utilize dela no nome, é preciso vontade, pois esperança sem vontade é coisa nenhuma. É a vontade que fará deste, talvez, um país melhor, mais justo, mais livre, mais próspero. Talvez um dia Portugal seja isso tudo, um país enfim moderno, com pontes, mas sem pés de barro. Haja esperança.”

Um belíssimo romance, é inevitável acreditar que temos um grande escritor na calha.

 

                                                            Mário Beja Santos