NieR Replicant: uma sátira sobre JRPGs

Lançado originalmente em 22 de abril de 2010 no Japão, NieR Replicant é um título peculiar que em 2025 completa 15 anos. Desenvolvido pela Cavia e publicado pela Square Enix, o jogo antecede os eventos de NieR: Automata (2017) e carrega a marca registrada de seu criador, Yoko Taro: narrativa densa, desconfortável, repleta de dilemas.Replicant e GestaltApesar do tema desta coluna ser NieR Replicant, é impossível não falar de NieR Gestalt. Enquanto NieR Replicant foi lançado no Japão para PlayStation 3 em 2010, na mesma data foi lançado NieR Gestalt para Xbox 360. A principal diferença entre as duas versões é a idade do protagonista e o seu parentesco com a personagem Yonah. Na versão de PlayStation 3 ele é o jovem irmão dedicado de Yonah; já na versão de Xbox 360, ele é mais velho e assume o papel de pai forte e protetor.No ocidente, apenas a versão NieR Gestalt foi lançada, com o nome reduzido para NieR, tanto para PlayStation 3 quanto para Xbox 360. Logo, deste lado do globo, tivemos acesso apenas à versão do protagonista mais velho.Essa diferença se deu porque a Cavia e a Square Enix acreditavam que, no Japão, os jogadores aceitariam melhor a figura de um irmão dedicado a proteger sua irmã, enquanto o público ocidental, em geral habituado a protagonistas maduros e másculos, preferiria a figura paterna mais velha e protetora.Em 2021, NieR Replicant recebeu uma nova versão chamada NieR Replicant ver.1.22474487139; lançada para PlayStation 5, PlayStation 4, Xbox Series X|S e Xbox One e PC; com melhorias gráficas, redublagem completa, trilha sonora reorquestrada e sistema de combate reformulado para se tornar mais fluido para os jogadores (especialmente para aqueles que conheceram a franquia após NieR: Automata), mas sem perder o que o torna especial: uma jornada que mistura amor, sacrifício, humanidade e crescimento. Com a nova versão, os jogadores ocidentais tiveram acesso oficial à história com o jovem protagonista.Sobre amor e perdaEm NieR Replicant, o jogador controla um jovem que vive em um mundo devastado por uma doença misteriosa chamada Black Scrawl e por criaturas conhecidas como Shades. O jovem vive com sua irmã, Yonah, e dedica todo o seu tempo para curá-la dos sintomas da doença. Sua motivação desmedida, e até inconsequente, é o ponto de partida da história que se desdobra de formas inesperadas.O mundo de NieR se encontra em um futuro pós-apocalíptico em que a humanidade foi praticamente erradicada. À medida que o jogador avança, descobre os segredos mais sombrios sobre a verdadeira natureza do mundo, as shades, a humanidade e, principalmente, sobre si mesmo. NieR Replicant não tem medo de abordar questões morais complexas e subverter o que se espera de um JRPG.O nome dele não é Nier?Em entrevista, Yoko Taro declarou que o protagonista de NieR Replicant não se chama “Nier”. O nome do jogo é apenas o título da obra, enquanto o personagem principal pode ser nomeado livremente pelo jogador, por isso o nome dele nunca é dito pelos demais personagens, aparecendo somente nas legendas do diálogo. Contudo, o apelido de Nier acabou se consolidando entre os fãs, o que Yoko Taro comenta com humor e um pouco de resignação. Ele conta que, enquanto escrevia os contos derivados do jogo, foi obrigado a dar um nome ao personagem, e acabou adotando Nier, apesar de esta nunca ter sido sua intenção para o jogo.Yoko Taro também revelou que essa liberdade para escolher o nome do protagonista é uma homenagem a Dragon Quest, no qual o protagonista também tem seu nome escolhido pelo jogador. Em jogos posteriores, como NieR: Automata, o protagonista de NieR Replicant é mencionado apenas indiretamente, sem ser nomeado.Por fim, também foi destacado que NieR existe mais como um conceito, uma ideia que conecta as obras, e não como o nome de um personagem.Críticas aos clichês do gêneroApesar de parecer um JRPG clássico, NieR Replicant carrega consigo uma veia satírica ao brincar com clichês do gênero ao mesmo tempo em que lhes presta homenagem. Este elemento é uma das características mais marcantes da obra de Yoko Taro.O primeiro elemento a chamar atenção é a sua estrutura narrativa, que subverte a moral simplista e até ingênua de muitos JRPGs. O protagonista é um jovem que, guiado por um livro encantado e uma profecia misteriosa, viaja em busca de uma cura para sua irmã adoentada. Ainda que aja por amor, as atitudes do protagonista levam a destruição e morte. Quando o jogador percebe que as Shades, seus inimigos no jogo, têm histórias e motivações próprias, é incitado a se questionar se está mesmo do lado certo.As missões secundárias parecem, à primeira vista, tarefas típicas de JRPGs: matar monstros, coletar e entregar itens. Porém, frequentemente essas missões são repetitivas e, em alguns casos, moralmente ambíguas, sendo oferecidas por personagens desiludidos passando por tragédias que só são reveladas depois. NieR Replicant utiliza as sidequests para demonstrar a banalidade das ações do protagonista e satirizar a ideia de

Abr 22, 2025 - 02:58
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NieR Replicant: uma sátira sobre JRPGs
Lançado originalmente em 22 de abril de 2010 no Japão, NieR Replicant é um título peculiar que em 2025 completa 15 anos. Desenvolvido pela Cavia e publicado pela Square Enix, o jogo antecede os eventos de NieR: Automata (2017) e carrega a marca registrada de seu criador, Yoko Taro: narrativa densa, desconfortável, repleta de dilemas.

Replicant e Gestalt



Apesar do tema desta coluna ser NieR Replicant, é impossível não falar de NieR Gestalt. Enquanto NieR Replicant foi lançado no Japão para PlayStation 3 em 2010, na mesma data foi lançado NieR Gestalt para Xbox 360. A principal diferença entre as duas versões é a idade do protagonista e o seu parentesco com a personagem Yonah. Na versão de PlayStation 3 ele é o jovem irmão dedicado de Yonah; já na versão de Xbox 360, ele é mais velho e assume o papel de pai forte e protetor.

No ocidente, apenas a versão NieR Gestalt foi lançada, com o nome reduzido para NieR, tanto para PlayStation 3 quanto para Xbox 360. Logo, deste lado do globo, tivemos acesso apenas à versão do protagonista mais velho.


Essa diferença se deu porque a Cavia e a Square Enix acreditavam que, no Japão, os jogadores aceitariam melhor a figura de um irmão dedicado a proteger sua irmã, enquanto o público ocidental, em geral habituado a protagonistas maduros e másculos, preferiria a figura paterna mais velha e protetora.



Em 2021, NieR Replicant recebeu uma nova versão chamada NieR Replicant ver.1.22474487139; lançada para PlayStation 5, PlayStation 4, Xbox Series X|S e Xbox One e PC; com melhorias gráficas, redublagem completa, trilha sonora reorquestrada e sistema de combate reformulado para se tornar mais fluido para os jogadores (especialmente para aqueles que conheceram a franquia após NieR: Automata), mas sem perder o que o torna especial: uma jornada que mistura amor, sacrifício, humanidade e crescimento. Com a nova versão, os jogadores ocidentais tiveram acesso oficial à história com o jovem protagonista.

Sobre amor e perda

Em NieR Replicant, o jogador controla um jovem que vive em um mundo devastado por uma doença misteriosa chamada Black Scrawl e por criaturas conhecidas como Shades. O jovem vive com sua irmã, Yonah, e dedica todo o seu tempo para curá-la dos sintomas da doença. Sua motivação desmedida, e até inconsequente, é o ponto de partida da história que se desdobra de formas inesperadas.

O mundo de NieR se encontra em um futuro pós-apocalíptico em que a humanidade foi praticamente erradicada. À medida que o jogador avança, descobre os segredos mais sombrios sobre a verdadeira natureza do mundo, as shades, a humanidade e, principalmente, sobre si mesmo. NieR Replicant não tem medo de abordar questões morais complexas e subverter o que se espera de um JRPG.

O nome dele não é Nier?

Em entrevista, Yoko Taro declarou que o protagonista de NieR Replicant não se chama “Nier”. O nome do jogo é apenas o título da obra, enquanto o personagem principal pode ser nomeado livremente pelo jogador, por isso o nome dele nunca é dito pelos demais personagens, aparecendo somente nas legendas do diálogo. Contudo, o apelido de Nier acabou se consolidando entre os fãs, o que Yoko Taro comenta com humor e um pouco de resignação. Ele conta que, enquanto escrevia os contos derivados do jogo, foi obrigado a dar um nome ao personagem, e acabou adotando Nier, apesar de esta nunca ter sido sua intenção para o jogo.


Yoko Taro também revelou que essa liberdade para escolher o nome do protagonista é uma homenagem a Dragon Quest, no qual o protagonista também tem seu nome escolhido pelo jogador. Em jogos posteriores, como NieR: Automata, o protagonista de NieR Replicant é mencionado apenas indiretamente, sem ser nomeado.

Por fim, também foi destacado que NieR existe mais como um conceito, uma ideia que conecta as obras, e não como o nome de um personagem.

Críticas aos clichês do gênero

Apesar de parecer um JRPG clássico, NieR Replicant carrega consigo uma veia satírica ao brincar com clichês do gênero ao mesmo tempo em que lhes presta homenagem. Este elemento é uma das características mais marcantes da obra de Yoko Taro.

O primeiro elemento a chamar atenção é a sua estrutura narrativa, que subverte a moral simplista e até ingênua de muitos JRPGs. O protagonista é um jovem que, guiado por um livro encantado e uma profecia misteriosa, viaja em busca de uma cura para sua irmã adoentada. Ainda que aja por amor, as atitudes do protagonista levam a destruição e morte. Quando o jogador percebe que as Shades, seus inimigos no jogo, têm histórias e motivações próprias, é incitado a se questionar se está mesmo do lado certo.


As missões secundárias parecem, à primeira vista, tarefas típicas de JRPGs: matar monstros, coletar e entregar itens. Porém, frequentemente essas missões são repetitivas e, em alguns casos, moralmente ambíguas, sendo oferecidas por personagens desiludidos passando por tragédias que só são reveladas depois. NieR Replicant utiliza as sidequests para demonstrar a banalidade das ações do protagonista e satirizar a ideia de que toda boa ação tem um final feliz.

A jogabilidade de NieR Replicant é caracterizada pela mistura de gêneros, mostrando que não há uma maneira correta de se contar uma história. O jogo faz transições repentinas de câmera, podendo se transformar em um jogo de plataforma, bullet hell ou uma aventura puramente de texto.

Um grupo incomum

Os personagens secundários que acompanham o jogador também são subversões de clichês. Kainé representa todas as valentes guerreiras cujas roupas são hipersexualizadas e disfuncionais para o campo de batalha. Em vez de ser uma femme fatale, ela utiliza seu sarcasmo e brutalidade pra se defender. Ela xinga como um marinheiro e é considerada uma pária pela sociedade por abrigar uma shade em seu corpo e ser intersexo, uma questão que costuma ser pouquíssimo abordada em JPGs tradicionais.


Ela é odiada e temida, mesmo quando luta para proteger os outros tanto quanto o protagonista da história, representando quão hipócrita pode ser a ideia de “herói”: só é herói aquele que se encaixa no padrão, ainda que Kainé sempre demonstre apreço por aqueles mais fracos que ela e sabedoria além de seu tempo e aparência.

Emil é um garoto doce e educado que foi vítima de um trágico experimento que lhe deu o poder de petrificar quem quer que olhasse. Em busca da cura, ele sacrifica sua forma humana e se torna uma poderosa arma: uma figura esquelética com cabeça gigante e um sorriso vazio. Essa transformação, que poderia ser vista como um grande “power-up”, é retratada com tristeza e agonia, pois Emil continua sendo a mesma pessoa, porém seu novo corpo faz com que se afaste da humanidade e se isole ainda mais.

Além disso, Emil também representa a inocência corrompida. Ele é sem dúvida o personagem mais puro do grupo, mas sofre por decisões que não foram suas. Isso serve como uma sátira sombria da ideia de que a bondade sempre é recompensada, quando muitas vezes ela é manipulada, explorada e destruída.

Grimoire Weiss, o grimório que acompanha o protagonista, é um elemento de metalinguagem. Muitas vezes ele ridiculariza os eventos que acontecem no jogo, zomba das falas dramáticas dos personagens e critica diversos clichês presentes em jogos de fantasia, sempre com humor e um toque de melancolia. 


Ele representa a inversão do conceito de “grande livro sagrado”. Ao invés de possuir sabedoria milenar e um passado de glórias, Weiss tem falhas, é sarcástico e possui grandes lacunas de memória, sugerindo que o conhecimento antigo que comumente move essas jornadas em outros jogos pode não ser tão confiável quanto parece.

Weiss é, portanto, o grande comentarista de NieR Replicant, um símbolo de tradição que é, ao mesmo tempo, sábio e falho. Ele é a senciência do jogo, brincando com os próprios clichês enquanto reconhece seu valor emocional, o que o torna uma peça essencial para o tom do enredo.

Não acaba quando os créditos sobem

É muito comum na obra de Yoko Taro que os jogos tenham múltiplos finais que se complementam, então o jogo não acaba na primeira vez que os créditos aparecem. NieR Replicant possui cinco finais: A, B, C, D e E. Os finais de A a D já estavam presentes nas versões originais do jogo, lançadas em 2010, enquanto o final E foi lançado sob a forma de um conto intitulado “The Lost World”. Em NieR Replicant ver. 1.22... o final E foi acrescentado ao jogo com algumas modificações, trazendo consigo um novo desfecho para a história.


Cada um dos finais revela uma nova perspectiva que recontextualiza a narrativa e recompensa o comprometimento do jogador com a história. Os finais A e B se complementam, sendo essencialmente o mesmo final sob perspectivas diferentes. Os finais C e D, por outro lado, impactam significativamente a história e a experiência do jogador, já que todos os saves de NieR Replicant do jogador são apagados ao fazer o final D.

Para o alívio de muitos jogadores, em NieR Replicant ver. 1.22... ao fazer o final E, que fica disponível depois de fazer os quatros finais, é possível recuperar os saves da gameplay anterior.

Não é para te agradar…

NieR Replicant é um jogo que não se preocupa em agradar toda a audiência. Ele é estranho, triste e, de vez em quando, até desconfortável de se jogar, e isso o diferencia. Ele propositalmente se recusa a seguir fórmulas previsíveis e explora narrativas arriscadas e personagens imperfeitos num cenário que desafia as convenções impostas.

O medo da perda, a solidão, a ilusão de controle, a espiral descontrolada de violência e o peso de decisões que parecem justas não são moldados para satisfazer desejos escapistas do espectador em busca de glória, mas para deixá-lo frente a frente com a repetição, a injustiça e o peso emocional da jornada. O jogo quer que você se pergunte “vale a pena?”, “de que adianta tudo isso?”, dessa forma cria um momento para o jogador refletir sobre seu papel dentro da história.


Ironicamente, o fato de se recusar a agradar é uma das maiores qualidades de NieR Replicant. Ele não é sobre vitórias gloriosas, arcos de redenção e recompensas; deixa ruínas, cicatrizes e perguntas sem resposta. Talvez seja todo esse caos que o torne inesquecível.

Revisão: Beatriz Castro