Naufrágio à vista de terra firme

Quem tiver acompanhado em directo a discussão da moção de confiança que o Governo de Luis Montenegro levou ontem à Assembleia da República, certamente que não deixará de reflectir, por pouco tempo que seja, sobre o que ali aconteceu. Para lá dos discursos, as expressões faciais e corporais dos protagonistas, os gestos, a colocação da voz do primeiro-ministro, o estilo do discurso e em particular o olhar, à medida que a sessão avançava, eliminavam as poucas dúvidas que ainda restassem sobre a sua rejeição. Na bancada do Governo, tirando alguns esgares e sorrisos de circunstância, perdera-se a pose impante e altiva de quem manda e vai governar durante quatro anos. Olhares perdidos, longínquos, rostos fechados, circunspectos, denotando um misto de preocupação e de resignação. Creio que muitos dos ministros do XXIV Governo teriam preferido que a moção nunca tivesse sido apresentada. Ou, então, que Montenegro a tivesse retirado antes da votação final. Provavelmente não o saberemos nos próximos tempos, mas dia virá em que essa parte da história será desvendada. Ali havia que mostrar solidariedade, ainda que só pela presença física, que o espírito e alma de cada um não se entregam assim, nem se conformam com a simples ritualização procedimental. O primeiro-ministro procurou cumprir o seu papel sem a confortável ousadia de quem está convencido de que leva a razão pela mão. O desgaste das últimas três semanas, a compressão do olhar, muitas vezes ausente, mostravam que o seu tempo se aproximava do fim. A teatralização perdeu eficácia. O que ao longo dos últimos dias foi conhecido era afinal demasiado grave e contundente para não fazer mossa. À medida que o debate progredia, aumentava o incómodo à sua direita e à sua esquerda, embora não tão eloquente como na bancada do PSD, onde as paupérrimas intervenções de Hugo Soares e Paulo Núncio em nada contribuíam para a desejada continuidade do Governo. A aflição tornou-se maior quando se percebeu que a desvairada proposta de uma CPI por 15 dias ou uma negociação de bastidores com o PS estaria condenada ao insucesso. E à vergonha. Ventura fez o número habitual. Tom crispado e desafiador, naquela pose de marido enganado que vai fazer justiça, atirando culpas a tudo e a todos sem que os outros lhe dessem importância. Naquele momento o Chega já riscava muito pouco. A arenga, depois secundada pelo seu número dois, era irrelevante. Mariana Mortágua, Rui Rocha e Rui Tavares estiveram bem na defesa das suas posições. A primeira, em ritmo pausado, com um discurso bem articulado, claro e incisivo, fez uma intervenção demolidora, colocando as questões cruciais. O líder do IL assumiu a pose de Estado, mostrando a sua disponibilidade para futuros entendimentos à direita. Rui Tavares procurou ser pedagógico. Inês Sousa Real referiu o óbvio. As intervenções da bancada do PCP, muito longe do brilho e de fulgor de outras eras, pouco acrescentaram, chegando a ser penoso ver como o grupo parlamentar minguou. O líder do PS, que normalmente recorre a um discurso repetitivo, em tom monocórdico e excessivamente palavroso, por uma vez cingiu-se ao essencial sem demasiado espalhafato. Foi bem apoiado por Alexandra Leitão e Pedro Delgado Alves. Intervenções sem demasiado floreados, directas, numa linguagem compreensível para todos, são sempre muito mais eficazes, e tornaram irreversível o sentimento de rejeição da confiança pedida pelo Governo.  Quando os telefones começaram a ser usados com mais frequência,  viu-se aquele número tosco do líder parlamentar do PSD, desesperadamente querendo fazer de ponto de Montenegro e salvador do Governo. Aí percebeu-se que tudo estava terminado. A intervenção final do esforçado Miranda Sarmento já não terá sido ouvida por ninguém. O apelo que fez naquela altura destinava-se a um saco roto. Formalmente, a AR rejeitou o voto de confiança pedido pelo Governo. Substancialmente não foi este quem perdeu a confiança. O Público trazia esta manhã a fotografia do primeiro-ministro e o título, pouco rigoroso, dizia apenas "Caiu". Na verdade, Montenegro não caiu. Nem se estatelou. O primeiro-ministro naufragou. E o mais incrível é que tudo aconteceu a 200 metros de terra firme. Levou com ele toda a tripulação, mais os passageiros, os clandestinos, as baratas e os ratos. Ninguém escapou. Incapaz de perceber os muito sinais que lhe chegavam dos faróis e das bóias ao longo da costa, que o alertavam para um provável naufrágio ante o aumento das vagas que lhe entravam pelo convés, e que antes já o tinham deixado todo encharcado na ponte, confiante nas suas capacidades de Capitão Nemo da Costa Verde, Montenegro persistiu em manter o rumo enquanto mastigava um douradinho da Pescanova. Há muito que se convencera de que o facto de os anteriores inquilinos da São Caetano à Lapa lhe terem confiado o navio era mais do que garantia de que aqueles marujos que o acompanhavam e o ajudaram antes a preparar a documentação para responder ao anúncio da Duck Cruises – Holidays and Trips Limited

Mar 13, 2025 - 07:07
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Naufrágio à vista de terra firme

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Quem tiver acompanhado em directo a discussão da moção de confiança que o Governo de Luis Montenegro levou ontem à Assembleia da República, certamente que não deixará de reflectir, por pouco tempo que seja, sobre o que ali aconteceu. Para lá dos discursos, as expressões faciais e corporais dos protagonistas, os gestos, a colocação da voz do primeiro-ministro, o estilo do discurso e em particular o olhar, à medida que a sessão avançava, eliminavam as poucas dúvidas que ainda restassem sobre a sua rejeição.

Na bancada do Governo, tirando alguns esgares e sorrisos de circunstância, perdera-se a pose impante e altiva de quem manda e vai governar durante quatro anos. Olhares perdidos, longínquos, rostos fechados, circunspectos, denotando um misto de preocupação e de resignação.

Creio que muitos dos ministros do XXIV Governo teriam preferido que a moção nunca tivesse sido apresentada. Ou, então, que Montenegro a tivesse retirado antes da votação final. Provavelmente não o saberemos nos próximos tempos, mas dia virá em que essa parte da história será desvendada. Ali havia que mostrar solidariedade, ainda que só pela presença física, que o espírito e alma de cada um não se entregam assim, nem se conformam com a simples ritualização procedimental.

O primeiro-ministro procurou cumprir o seu papel sem a confortável ousadia de quem está convencido de que leva a razão pela mão. O desgaste das últimas três semanas, a compressão do olhar, muitas vezes ausente, mostravam que o seu tempo se aproximava do fim. A teatralização perdeu eficácia. O que ao longo dos últimos dias foi conhecido era afinal demasiado grave e contundente para não fazer mossa.

À medida que o debate progredia, aumentava o incómodo à sua direita e à sua esquerda, embora não tão eloquente como na bancada do PSD, onde as paupérrimas intervenções de Hugo Soares e Paulo Núncio em nada contribuíam para a desejada continuidade do Governo. A aflição tornou-se maior quando se percebeu que a desvairada proposta de uma CPI por 15 dias ou uma negociação de bastidores com o PS estaria condenada ao insucesso. E à vergonha.

Ventura fez o número habitual. Tom crispado e desafiador, naquela pose de marido enganado que vai fazer justiça, atirando culpas a tudo e a todos sem que os outros lhe dessem importância. Naquele momento o Chega já riscava muito pouco. A arenga, depois secundada pelo seu número dois, era irrelevante.

Mariana Mortágua, Rui Rocha e Rui Tavares estiveram bem na defesa das suas posições. A primeira, em ritmo pausado, com um discurso bem articulado, claro e incisivo, fez uma intervenção demolidora, colocando as questões cruciais. O líder do IL assumiu a pose de Estado, mostrando a sua disponibilidade para futuros entendimentos à direita. Rui Tavares procurou ser pedagógico. Inês Sousa Real referiu o óbvio. As intervenções da bancada do PCP, muito longe do brilho e de fulgor de outras eras, pouco acrescentaram, chegando a ser penoso ver como o grupo parlamentar minguou.

O líder do PS, que normalmente recorre a um discurso repetitivo, em tom monocórdico e excessivamente palavroso, por uma vez cingiu-se ao essencial sem demasiado espalhafato. Foi bem apoiado por Alexandra Leitão e Pedro Delgado Alves. Intervenções sem demasiado floreados, directas, numa linguagem compreensível para todos, são sempre muito mais eficazes, e tornaram irreversível o sentimento de rejeição da confiança pedida pelo Governo. 

Quando os telefones começaram a ser usados com mais frequência,  viu-se aquele número tosco do líder parlamentar do PSD, desesperadamente querendo fazer de ponto de Montenegro e salvador do Governo. Aí percebeu-se que tudo estava terminado. A intervenção final do esforçado Miranda Sarmento já não terá sido ouvida por ninguém. O apelo que fez naquela altura destinava-se a um saco roto.

Formalmente, a AR rejeitou o voto de confiança pedido pelo Governo. Substancialmente não foi este quem perdeu a confiança. O Público trazia esta manhã a fotografia do primeiro-ministro e o título, pouco rigoroso, dizia apenas "Caiu".

Na verdade, Montenegro não caiu. Nem se estatelou. O primeiro-ministro naufragou. E o mais incrível é que tudo aconteceu a 200 metros de terra firme. Levou com ele toda a tripulação, mais os passageiros, os clandestinos, as baratas e os ratos. Ninguém escapou.

Incapaz de perceber os muito sinais que lhe chegavam dos faróis e das bóias ao longo da costa, que o alertavam para um provável naufrágio ante o aumento das vagas que lhe entravam pelo convés, e que antes já o tinham deixado todo encharcado na ponte, confiante nas suas capacidades de Capitão Nemo da Costa Verde, Montenegro persistiu em manter o rumo enquanto mastigava um douradinho da Pescanova.

Há muito que se convencera de que o facto de os anteriores inquilinos da São Caetano à Lapa lhe terem confiado o navio era mais do que garantia de que aqueles marujos que o acompanhavam e o ajudaram antes a preparar a documentação para responder ao anúncio da Duck Cruises – Holidays and Trips Limited, mais conhecida como Cruzeiros à Pato – Férias e Viagens, Limitada, constituíam uma tripulação experiente e habituada a navegações oceânicas.

O primeiro-ministro ignorou os avisos de perigo iminente do faroleiro Santos e as indicações que este lhe dera pelo rádio para fazer um bordo de 90.º, a estibordo, e assim fugir das vagas e do nevoeiro, afastando-se das redes do pescador Arruda. Recusou alterar o rumo. Quando o seu compincha, em terra, agarrado aos binóculos de visão nocturna embaciados pelo nevoeiro, mas que ele só usava no olho direito para não pensarem que era um radical de esquerda, lhe começou a dizer para tirar a água que entrava pela amura de bombordo, já era um Capitão Montenegro em pânico que fugia da vaga em direcção à costa, correndo à frente daquela, sem perceber que o imediato Duarte e o cabo Leitão ainda andavam à procura dos coletes e dos remos dos salva-vidas que, afinal, tinham ficado esquecidos num armazém da Solverde, misturados com os sacos de golfe, as facturas da Spinumviva, os recados do Soares e o projecto de arquitectura que o Moedas pedira para justificar as obras na mansão da Travessa do Possolo.

O que se seguiu é do conhecimento de todos. Uma multidão de repórteres e operadores de imagem, de microfone em riste, com a jornalista Felgueiras à cabeça nas suas garridas galochas amarelas, estavam a postos para transmitirem em directo o naufrágio e os primeiros testemunhos dos náufragos.

Recolhidos pelo que restava de pessoal operacional do INEM e os mirones do Correio da Manhã, receberam algumas mantas, agasalhos secos e umas caixas de refeições ligeiras, antes de serem transportados até São Bento, onde iriam pernoitar. Quando aí chegaram, estranhamente, ninguém lhes franqueou a entrada. Na porta estava colado um aviso que dizia ter o senhorio resolvido o contrato devido à prática de actos ofensivos dos bons costumes.

Impedidos de ali se instalarem, onde entretanto haviam começado as obras para acolhimento dos futuros inquilinos, rumaram ao hotel de um velho conhecido. Esperavam aí obter um quarto duplo onde se acomodassem os três, com um preço aceitável e sem necessidade de grande conversa. Lamentavelmente não lograram os seus intentos. O contrato com o armador do navio e a seguradora caducara e os estalajadeiros não tinham quartos disponíveis. E, ao contrário do habitual, os fulanos recusaram liminarmente o regateio. O bispo Irineu Lavador que nessa manhã chegara a Lisboa num jacto privado procedente de Corumbá, carregado de dólares, tinha o hotel por sua conta e dos familiares e fiéis que se juntariam nessa noite numa celebração da sua seita no Estádio do Restelo, cujas portas abririam, milagrosamente, graças aos bons ofícios do deputado Almeida.

À hora a que escrevo estas linhas recebi informação de um amigo sapador, que festejava a sua recente promoção e o aumento salarial anunciado pelo chefe Sarmento com umas gambas e umas cervejolas, nas proximidades de Santa Apolónia, que me referiu ter visto os náufragos entrarem numa viatura da PSP, chamada de emergência ao local, depois daqueles terem sido corridos de Belém, onde pretendiam pernoitar, imaginem, à pedrada.

Essa recepção inusitada encaminhou-os daí para o Largo do Caldas, na esperança de que ainda lá estivesse um porteiro conhecido que lhes desse uma chávena de chá e os abrigasse. Sem sucesso. A electricidade e a água tinham sido cortadas por falta de pagamento. Entretido com os submarinos, o menino Nuno nunca mais se lembrara das contas.

Àquela hora, desesperados, com o Panteão Nacional ainda fechado, sem comboios para o Porto que parassem em Espinho e assegurassem ligação a Braga, refugiaram-se na Santa Casa da Misericórdia. Valeu-lhes um telefonema do Santana da Figueira. O que ninguém imaginava é que os deixassem ficar sentados nas escadas até ao nascer do dia. É que eram tantos os náufragos, devido à sobrelotação do navio, que nem ali havia mais camas disponíveis.