Há sempre o risco da castração

(créditos: Jornal Económico/António Pedro Santos/LUSA) Dir-se-ia que a quantidade de assuntos que o país tem para resolver, com um Executivo minoritário obrigado a negociar à esquerda e à direita para aprovar orçamentos e se manter em funções, e melhor ou pior tentar cumprir o seu programa de governo, quando a indefinição da situação internacional e do futuro da Europa a curto e médio prazo é deveras preocupante, retirariam tempo ao primeiro-ministro e aos membros da sua equipa para se afastarem das questões cruciais e se perderem em confusões de sacristia. Não é isso que está a acontecer. Bem ao contrário do desejável, há quem no Governo, a começar por Luís Montenegro, sabe-se lá por que razão, tenha demasiado tempo livre e ainda lhe sobre para se enredar em situações que, sendo de mais do que duvidosa legalidade, o elementar bom senso e a integridade ética e política obrigariam a colocar ao largo. Os sinais de alarme piscam todos no vermelho. Às sirenes não há pilha que lhes falte. E é importante que Luís Montenegro, o PSD e a sua muleta do Bar Cockpit sejam confrontados com o que se está a passar. O mínimo que lhes é hoje exigível é que tenham maneiras, arrepiem caminho e façam aquilo que 28,02% dos portugueses aprovaram. Os demais não votaram na Aliança Democrática, quereriam qualquer coisa de diferente do que aquela que lhes saiu no cardápio. Houvesse uma alternativa decente e estes moleques já estariam com os patins. Esqueçamo-nos, brevemente, dos arremedos de prima donna de Rangel, dos problemas com Olivença, das urgências que se iriam manter abertas e continuam a fechar, do destrambelhamento com a direcção do SNS e as administrações hospitalares, das trapalhadas nas autarquias, dos casos de polícia com a sabor a tutti-frutti que envolvem deputados e autarcas do PSD, e tudo o mais que circula pelos esgotos da rede social X, para nos concentrarmos na actividade empresarial do primeiro-ministro. Tal como sucedeu com o ex-secretário de Estado da Administração Local e Ordenamento do Território, em relação ao qual não havia nada, e onde tudo era sinal de desprendimento antes de se revelar uma “imprudência” – há quem lhe chame estupidez –, soubemos, entretanto, que no curtíssimo período em que não esteve no parlamento o primeiro-ministro se tornou num empresário de sucesso. De muito sucesso. As dúvidas sobre as obras na sua casa e os ajustes directos com as Câmaras de Espinho e de Vagos – o que mostra bem que mesmo fora do parlamento há empreendedores e “profissionais liberais” não vivem sem a mama das autarquias e as influências criadas à sombra da actividade política –, vieram dar lugar às dúvidas sobre a Spinumviva, a sociedade comercial fundada por Luís Montenegro, a sua mulher, educadora de infância e com formação em Ciências da Educação, e os filhos, um a estudar e outro recém-licenciado. A Spinumviva foi registada em 22 de Janeiro de 2021, com um objecto social incorporando múltiplas actividades que vão da consultoria de gestão, à orientação e “assistência operacional às empresas ou a organismos (inclui públicos)” em matérias de planeamento estratégico, organização, controlo, informação e gestão, reorganização de empresas, gestão financeira, gestão de recursos humanos, segurança e higiene no trabalho, objectivos e políticas de marketing, organização de eventos, protecção de dados pessoais, comércio e a gestão de bens imóveis, próprios e de terceiros, incluindo a aquisição para revenda, arrendamento e outras formas de exploração económica dos mesmos, a que acresce a exploração agrícola, turística e empresarial, de recursos naturais e produção agrícola, predominantemente vitivinícola. Neste pequeno lençol estranhei a ausência de outras actividades lucrativas, que certamente teriam cabimento, atenta a sua rede de contactos, como empreitadas de construção civil, fiscalização de obras e apoio às autarquias na organização de excursões para reformados e claques desportivas.    Embora a inclusão no objecto social das actividades imobiliárias ocorresse só em 2 de Abril de 2024, a pequena empresa familiar tem um historial de sucesso na sua curta existência, mostrando que sem instalações próprias (a sede é em casa do primeiro-ministro), praticamente sem trabalhadores, pagando salários modestos e começando a operar ainda com situações de alerta da Covid-19, é possível apresentar em três anos, creio, uma facturação superior a 700.000 Euros. As explicações dadas por Luís Montenegro foram tardias, confusas e pouco esclarecedoras. As do seu líder parlamentar, que parece saber mais dos negócios familiares do que ele, e que tem uma especial apetência por asneirar em directo, ainda mais. Em 15 de Fevereiro p.p., o jornal Observador enfatizava, de acordo com as palavras do próprio primeiro-ministro, a vertente de exploração agrícola e turística da sociedade. Na sua criação, segundo Montenegro, terá estado a ideia de incorporar na sociedade o património herdado de seus pais, e “revitalizá-lo”, o que é perfeitamente l

Fev 18, 2025 - 21:03
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Há sempre o risco da castração

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(créditos: Jornal Económico/António Pedro Santos/LUSA)

Dir-se-ia que a quantidade de assuntos que o país tem para resolver, com um Executivo minoritário obrigado a negociar à esquerda e à direita para aprovar orçamentos e se manter em funções, e melhor ou pior tentar cumprir o seu programa de governo, quando a indefinição da situação internacional e do futuro da Europa a curto e médio prazo é deveras preocupante, retirariam tempo ao primeiro-ministro e aos membros da sua equipa para se afastarem das questões cruciais e se perderem em confusões de sacristia.

Não é isso que está a acontecer. Bem ao contrário do desejável, há quem no Governo, a começar por Luís Montenegro, sabe-se lá por que razão, tenha demasiado tempo livre e ainda lhe sobre para se enredar em situações que, sendo de mais do que duvidosa legalidade, o elementar bom senso e a integridade ética e política obrigariam a colocar ao largo.

Os sinais de alarme piscam todos no vermelho. Às sirenes não há pilha que lhes falte. E é importante que Luís Montenegro, o PSD e a sua muleta do Bar Cockpit sejam confrontados com o que se está a passar. O mínimo que lhes é hoje exigível é que tenham maneiras, arrepiem caminho e façam aquilo que 28,02% dos portugueses aprovaram. Os demais não votaram na Aliança Democrática, quereriam qualquer coisa de diferente do que aquela que lhes saiu no cardápio. Houvesse uma alternativa decente e estes moleques já estariam com os patins.

Esqueçamo-nos, brevemente, dos arremedos de prima donna de Rangel, dos problemas com Olivença, das urgências que se iriam manter abertas e continuam a fechar, do destrambelhamento com a direcção do SNS e as administrações hospitalares, das trapalhadas nas autarquias, dos casos de polícia com a sabor a tutti-frutti que envolvem deputados e autarcas do PSD, e tudo o mais que circula pelos esgotos da rede social X, para nos concentrarmos na actividade empresarial do primeiro-ministro.

Tal como sucedeu com o ex-secretário de Estado da Administração Local e Ordenamento do Território, em relação ao qual não havia nada, e onde tudo era sinal de desprendimento antes de se revelar uma “imprudência” – há quem lhe chame estupidez –, soubemos, entretanto, que no curtíssimo período em que não esteve no parlamento o primeiro-ministro se tornou num empresário de sucesso. De muito sucesso.

As dúvidas sobre as obras na sua casa e os ajustes directos com as Câmaras de Espinho e de Vagos – o que mostra bem que mesmo fora do parlamento há empreendedores e “profissionais liberais” não vivem sem a mama das autarquias e as influências criadas à sombra da actividade política –, vieram dar lugar às dúvidas sobre a Spinumviva, a sociedade comercial fundada por Luís Montenegro, a sua mulher, educadora de infância e com formação em Ciências da Educação, e os filhos, um a estudar e outro recém-licenciado.

A Spinumviva foi registada em 22 de Janeiro de 2021, com um objecto social incorporando múltiplas actividades que vão da consultoria de gestão, à orientação e “assistência operacional às empresas ou a organismos (inclui públicos)” em matérias de planeamento estratégico, organização, controlo, informação e gestão, reorganização de empresas, gestão financeira, gestão de recursos humanos, segurança e higiene no trabalho, objectivos e políticas de marketing, organização de eventos, protecção de dados pessoais, comércio e a gestão de bens imóveis, próprios e de terceiros, incluindo a aquisição para revenda, arrendamento e outras formas de exploração económica dos mesmos, a que acresce a exploração agrícola, turística e empresarial, de recursos naturais e produção agrícola, predominantemente vitivinícola.

Neste pequeno lençol estranhei a ausência de outras actividades lucrativas, que certamente teriam cabimento, atenta a sua rede de contactos, como empreitadas de construção civil, fiscalização de obras e apoio às autarquias na organização de excursões para reformados e claques desportivas.   

Embora a inclusão no objecto social das actividades imobiliárias ocorresse só em 2 de Abril de 2024, a pequena empresa familiar tem um historial de sucesso na sua curta existência, mostrando que sem instalações próprias (a sede é em casa do primeiro-ministro), praticamente sem trabalhadores, pagando salários modestos e começando a operar ainda com situações de alerta da Covid-19, é possível apresentar em três anos, creio, uma facturação superior a 700.000 Euros.

As explicações dadas por Luís Montenegro foram tardias, confusas e pouco esclarecedoras. As do seu líder parlamentar, que parece saber mais dos negócios familiares do que ele, e que tem uma especial apetência por asneirar em directo, ainda mais.

Em 15 de Fevereiro p.p., o jornal Observador enfatizava, de acordo com as palavras do próprio primeiro-ministro, a vertente de exploração agrícola e turística da sociedade. Na sua criação, segundo Montenegro, terá estado a ideia de incorporar na sociedade o património herdado de seus pais, e “revitalizá-lo”, o que é perfeitamente legal e legítimo. E ao mesmo tempo esclareceu que a empresa não vai comprar nem vender nada, embora se apresse a dizer, sinal de que pensou no assunto, que mesmo que o fizesse não haveria qualquer conflito de interesses. Homessa!  

Aqui surgem-me as primeiras dúvidas. As contradições são patentes: a empresa foi criada para exploração agrícola e turística e gerir o património herdado, mas até hoje, passados quatro anos, nenhum lhe foi incorporado. 

Passou, isso sim, e rapidamente a diversificar, dedicando-se, sublinha-o o Página Um, à consultadoria “altamente especializada” no âmbito da “protecção de dados pessoais (o primeiro-ministro tem uma pós-graduação em protecção de dados pessoais), onde surge como sua cliente, “por ironia do destino”, a empresa que detém o Correio da Manhã. Em vez de incorporar o património herdado e “revitalizá-lo”, a empresa dedicou-se a uma actividade muito mais rentável e com muito menor carga burocrática.

Valeu o objecto social ser tão amplo, pois sem isso não vingaria tão depressa. Não sei quem teve a ideia de aumentar o leque de actividades, acrescentando a compra e revenda de imóveis, seu arrendamento e gestão, quando as coisas já estavam a correr tão bem. Suspeito que surgiu quando a família se apercebeu do sucesso do Robles, aquele dinâmico empresário que lutava contra a especulação imobiliária e foi corrido do Bloco de Esquerda. Mas nessa altura ainda não se sabia que os empreendedores do BE também eram bons na gestão patronal de assuntos laborais, rentabilizavam a exploração da sua sede com uns negócios paralelos e já estávamos em cima da data da tomada de posse de Luís Montenegro. Há mais gente com olho para o negócio e não se podia perder tempo, não fosse alguém lembrar-se, imagine-se, de mudar a Lei dos Solos.

Se como disse Luís Montenegro a empresa “não comprou ou vendeu, nem vai comprar nem vender nada”, então qual foi o interesse na alteração do objecto social, sendo ele casado “em comunhão de bens” – geral ou de adquiridos é irrelevante para o caso – e “promovendo” essa mudança societária numa altura em que já estava a exercer funções na chefia do XXIV Governo? Isso foi uma “imprudência” da senhora educadora de infância, sua mulher, ou saiu do génio da juventude lá de casa numa noitada em redor de um tabuleiro de Monopólio?

Sabendo-se que é o seu Governo que apadrinha e aprova a alteração à Lei dos Solos (Decreto-Lei n.º 117/2024), em que medida os seus 49 prédios rústicos que não foram atempadamente incorporados na Spinumviva irão ser valorizados?

E porque será que se insiste tanto para que que os solos rústicos possam ser reclassificados em urbanos sem que primeiro se apure a inexistência de áreas urbanas disponíveis? Ou será que o primeiro-ministro desconhecia o alcance das alterações legislativas que o seu Governo aprovou? 

O senhor primeiro-ministro não se sente incomodado com nada disto, acha que é tudo normal, que é tudo coincidência? 

Também conviria esclarecer como é que no ano de maior facturação a empresa apresenta um único trabalhador a tempo inteiro e um outro em tempo parcial ao seu serviço. Quem foram esses trabalhadores, que competências possuem? Houve subcontratação de terceiros ou foi ele, Luís Montenegro, quem fez os estudos que justificaram tão elevada facturação? Se não foi ele, quem foi que fez? E quanto lhes foi pago?

O panorama é cada vez menos lustroso.

O JN titulava ontem que “Cargos políticos disparam com Costa e batem recorde com Montenegro”, aumentando quase 50% após a saída da Troika, para atingir hoje quase 26.500 pessoas no terceiro trimestre de 2024. Lá dentro vem o desenvolvimento da manchete tendo por base um estudo do Instituto Mais Liberdade. Nos seus órgãos sociais aparecem os nomes gente tão respeitável e à direita como Guimarães Pinto, Alexandre Relvas, João Miguel Tavares, Cecília Meireles, Adolfo Mesquita Nunes ou Fernando Alexandre, o seu responsável pela pasta da Educação. Estaremos perante mais uma cabala?

A avaliar pelo que Luís Montenegro disse da actuação de Hernâni Dias, tudo isto revela “o desprendimento subjacente” à decisão de alterar o objecto social da empresa familiar que constituiu e que não passará de mais uma “imprudência”.

Inaceitável, é claro, e ética e politicamente censurável.

Em especial para quem ainda não está em funções sequer há um ano e substituiu um primeiro-ministro que viu o mandato encurtado porque o número um do seu gabinete, sem que aquele soubesse, imprudentemente guardava num cofre da residência oficial de S. Bento mais de 75 mil euros em dinheiro vivo de umas contas anteriores que acertara em Angola. E Montenegro não desconhece, por outra banda, que há um outro ex-primeiro-ministro a aguardar julgamento, acusado por múltiplos crimes, e dezenas ou centenas de autarcas, ex-membros do governo e deputados do seu partido que são alvo de investigações e processos judiciais.

Tudo aquilo que os portugueses menos precisavam nesta altura era ver de novo o seu primeiro-ministro e os seus colaboradores enredados em confusões, umas vezes fugindo às explicações e de outras dando respostas atabalhoadas e pouco credíveis de cada vez que surgem potenciais focos de incêndio.

Com tudo o que prometeu e garantiu aos portugueses que iria de fazer diferente em relação aos seus antecessores, quer-me parecer que Montenegro se esqueceu rapidamente do que disse e dificilmente, se lá chegar, conseguirá fazer passar o Orçamento de 2026.

A gente sabe que o acompanhamento de jogos da Selecção Nacional de futebol a convite da GALP ou de outras empresas só passou a ser mau quando se descobriu que (também) havia uns governantes socialistas entre os contemplados; mas para quem disse em 16 de Janeiro de 2023 que "[é] importante para Portugal, para a democracia portuguesa, para a credibilidade da acção política das instituições, que se possam dissipar todas estas dúvidas, estas nuvens que hoje pairam sobre tantos políticos e que, efectivamente, não são geradores de confiança por parte dos cidadãos", Luís Montenegro, o seu PSD e as pessoas da sua confiança estão a dar uma mão cheia de maus exemplos.

Todos menos os que os portugueses esperavam receber do XXIV Governo Constitucional para conseguirem um pouco de sossego, perspectivarem a resolução dos problemas que mais os afligem, aumentarem a sua confiança nos actores políticos e nas instituições, e poderem esquecer as espertezas e golpadas de outros chicos que passaram por anteriores executivos e que, com toda a razão, foram severamente vergastados no espaço público e nas urnas.

Há quem diga, não será o meu caso, que o país está a ser governado por alguns estadistas com perfil de matumbos, ou com laivos de ruralismo, como reafirmaria o Presidente da República ao olhar para esta questão dos prédios rústicos, se pudesse e não tivesse sido antes tão criticado. Não irei tão longe.

Compreendo que qualquer pessoa mais distraída possa cometer uma imprudência. Passar um sinal vermelho e acelerar não é uma imprudência. É uma irresponsabilidade que desqualifica qualquer condutor. E pode causar danos irreparáveis a terceiros.

Por agora, escreve-se no Público desta manhã, o “preço dos solos rústicos está a subir”. Uma imobiliária “dá conta da subida de 71% dos preços médios dos terrenos rústicos, desde o início deste ano”.

Se Luís Montenegro quer dedicar-se aos negócios imobiliários pode sempre abrir uma empresa com Hêrnani Dias. Não há mal nisso. Se quer ser primeiro-ministro e líder do maior partido, então vai ter de optar. Ou dar rapidamente lugar a outro que não esteja com um olho no burro e outro no negócio quando está a tratar de assuntos de Estado.

E obviar a que o senhor Ventura se apodere do megafone.

Distraí-lo, numa altura em que o vemos assoberbado com os problemas que arranjou com aquela mão cheia de trogloditas que lhe entraram pela horta e estão a dar-lhe cabo da sementeira, seria um crime.

E pode dar, aos olhos de muitos portugueses, que cada vez têm menos paciência, castração política e empresarial. Definitiva. Depois não há transplante que o salve. Acabam-se os comícios e os ajustes directos. Para todo o sempre. Ninguém lhe perdoará. Nem os presidentes de junta. Pense nisso.