Entrevista: O balanço criativo de Francis Hime
Aos 85 anos, Francis Hime está em paz. Mas inquieto. 52 anos depois de lançar seu primeiro disco solo, de 1973, e mais de 20 álbuns na bagagem, Hime acaba de lançar um novo trabalho...

entrevista de Diego Queijo
foto de Caio Passos
É na paz do bairro Jardim Botânico que Francis Hime compõe. A casa, na face sul do Corcovado, abriga um escritório onde se encontram pastas, uma coleção de CDs de música erudita, anotações, partituras, um piano elétrico Kurzweil, um Wurlitzer e um piano acústico Steinway & Sons cheio de memórias. Mas, de acordo com Hime, o principal ‘instrumento’ necessário para uma composição, hoje, é uma rede de tecido pendurada atrás do velho piano. Ali, deitado, suspenso entre um balançar e outro, um dos pianistas ícones da era dourada de um Brasil que transformou a canção em patrimônio cultural sonoro, sonha com melodias, imagina arranjos, e busca novas formas de contar histórias através da música.
Aos 85 anos, Francis Hime está em paz. Mas inquieto. 52 anos depois de lançar seu primeiro disco solo, de 1973 (com a abertura matadora de “Atrás da Porta”, imortalizada, também, na voz de Elis Regina), e mais de 20 álbuns na bagagem, Hime acaba de lançar um novo trabalho intitulado “Não navego pra chegar” (Biscoito Fino, 2025).
Ao longo de sua trajetória, Hime contribuiu de forma significativa para a formação de uma certa identidade sonora do Brasil, dialogando com a bossa nova, a MPB e a música erudita. Suas parcerias com grandes nomes, como Chico Buarque (‘Trocando em Miúdos’, ‘Vai Passar’, etc.) e Vinicius de Moraes (‘Samba de Maria’, entre outras), resultaram em composições que ajudaram a imortalizar uma época, com reflexão e resistência diante de realidades sociais e políticas do país. Com o novo álbum – e uma seleção de canções inéditas e parcerias com artistas contemporâneos – Hime demonstra que, apesar das mudanças na indústria musical e nas preferências do público, ainda tem muita lenha para queimar.
O álbum definitivamente está à altura da discografia de Francis Hime. Nas 11 faixas é possível encontrar de tudo. Boas letras, melodias autorais (como faziam os maias pré-Inteligência Artificial!) e parceiros com espaço para demonstrarem a que vieram. Trata-se de uma celebração sofisticada de sua trajetória musical aos 85 anos.
Musicalmente, o álbum passeia entre o samba e a MPB clássica, com arranjos que equilibram o lirismo e a complexidade harmônica característica do autor. Hime, claro, demonstra domínio absoluto da linguagem da canção brasileira. Uma pena que, diferentemente de outros lançamentos atuais, o Spotify não traga, pelo menos ainda, as letras das músicas desse disco – mas: a ficha técnica completa está disponível aos aficionados no fim da entrevista.
Em resumo, é um biscoito finíssimo direto do forno antigo que ajudou a criar essa receita.
Nesta entrevista exclusiva ao Scream & Yell, Francis Hime fala sobre o instrumento que o consagrou, compartilha histórias, desafios e tenta expor a essência de sua música, revelando como a emoção permanece feito o farol da invenção na busca por novas formas de se conectar com o público. Como é difícil encontrar angústia artística e inconformismo – para além dos temas das próprias canções e letras do disco – em um senhor simpático, feliz e em paz. Um pioneiro que continua a navegar no balanço das águas da criação.
Com a palavra, Francis Hime:
Francis, vamos começar do começo. Seu primeiro contato com a música foi muito cedo, ainda na infância, e eu queria que você falasse um pouco sobre essa descoberta do piano.
Foi esse piano aqui (aponta para o instrumento acústico Steinway & Sons ao lado) que meu avô, que era pianista também, amador, me deu quando eu tinha seis, sete anos. Meus pais achavam que eu levava jeito e me colocaram para estudar no Conservatório Brasileiro de Música. Mas eu não gostava muito, não. Queria outras coisas, jogar bola, enfim, tudo que uma criança gosta. Mas eu levava jeito e fiz o conservatório quase inteiro, fui até o sétimo ano. Aos poucos, fui gostando de improvisar, de brincar com o piano. Não gostava muito de estudar os exercícios todos, mas fui levando. E isso acabou sendo uma semente para o pianista e compositor que eu me tornaria.
Foi o início de uma relação longeva. O que te atraiu mais?
Eu não fui atraído pelo piano logo de cara. Eu não gostei muito no início. Mas aos poucos fiquei fascinado com a ideia de criar coisas. O piano tem uma possibilidade enorme. Acho que o que me atraiu foi essa capacidade de inventar, não tanto de seguir o que já estava pronto. Foi essa liberdade de criar que me pegou de verdade.
Para você, música é mais emoção ou mais técnica?
Mais emoção, sem dúvida nenhuma. Apesar de ter estudado desde cedo e desenvolvido uma técnica que me permitiria tocar concertos eruditos, a emoção de criar sempre foi mais forte e é mais forte até hoje. Hoje em dia, eu não passo horas no piano, eu fico ali na rede (aponta para a rede na entrada do escritório), compondo, imaginando. Faço arranjos na minha cabeça, com uma orquestra completa, e depois confiro no piano. Hoje uso bastante o piano elétrico, que é mais prático e não incomoda ninguém.
Quando percebeu que conseguia expressar sentimentos ou emocionar as pessoas com sua música?
Olha… Talvez quando… Quando conheci Vinícius de Moraes, que foi meu primeiro parceiro. Eu tinha 15, 16 anos. Ele era muito amigo da minha mãe, Dália Antonina, artista plástica. E ele um dia foi lá em casa, ali na Lagoa, rua Baronesa de Poconé, e eu toquei pra ele a ‘Valsa de Eurídice’. Toquei e ele ficou encantado. E eu dizia pra ele, “vou fazer engenharia, não vou fazer música não”. E acabei fazendo engenharia, mas encostei o diploma e nunca exerci. Ele disse, “pô, Daly, esse menino tem que fazer música, né? Vai deixar ele fazer engenharia? O Brasil vai perder um músico e ganhar um engenheiro que talvez não seja tão bom”. Aí eu acabei seguindo. Talvez tenha sido ali. (Nota: depois, Hime também trabalhou com Vinicius de Moraes em “Samba de Maria”, “Sem Mais Adeus” e “Anoiteceu”, entre outras…) Alguns anos mais tarde, quando me formei engenheiro, em vez de estar lá no Maracanãzinho fazendo a entrega simbólica do canudo, do diploma, eu estava em São Paulo participando do programa de abertura da Bandeirantes, em 1969. Então, ali ficou claro onde é que estava o meu caminho.
O fato de você se formar em engenharia mecânica influenciou na abordagem musical? Tem a ver? Faz algum sentido?
Olha, engenharia mecânica em si, não propriamente. Eu escolhi a mecânica porque eu achava que era o ramo da engenharia que talvez naquele momento fizesse mais sentido. Porque na realidade eu não planejava seguir como músico. Mas a engenharia me ajudou muito na música, sim, no planejamento dos arranjos, no equilíbrio.
O que você considera o mais essencial dessa espécie de identidade musical do Brasil? O que nos faz ser como somos?
É a diversidade. A diversidade fantástica. O povo brasileiro é muito musical, então ele não só faz música, mesmo que não seja profissional, como absorve muito bem também as variedades. Eu particularmente gosto de compor em muitos estilos, samba, baião, muitos gêneros, valsas e também de uns tempos para cá enveredei pelo campo da música erudita, com vários concertos. O mais recente foi um concerto para dois cellos, que foi executado há dois anos com o Hugo Pilger e o Matias de Oliveira, que infelizmente nos deixou no ano passado. E tem o concerto de violão com o Fábio Zanon, o concerto de violino, concerto de harpa, de clarinete… Acho que o próximo vai ser de fagote, estou pensando…
Como essa música erudita e a música popular se misturam nesse seu processo criativo?
A minha música geralmente é bastante sofisticada. Eu escrevo para a orquestra, enfim. E a música melódica, ela tem um pé na música popular. Que é a contribuição que eu acho que eu posso dar para a nossa música.
Estamos em 2025 e você está lançando um álbum novo, ‘Não navego pra chegar’. Mas olhando para a sua trajetória desde o início, o que permanece, o que ainda te move artisticamente?
Compor. O dia em que eu componho, fico feliz. E quando não componho, não consigo concatenar uma ideia, fico meio jururu. E quando vai para o disco, aí é uma maravilha, porque aí eu posso dividir isso com músicos que gostam muito da minha música. Como o Paulo Aragão, que fez a produção musical desse disco, e tantos outros. E também procurar fazer novas parcerias é algo que me move, e que teoricamente pode dar certo ou não. Mas até hoje eu tive a sorte de sempre dar certo.
E sobre a motivação desse projeto, o que você deseja com esse álbum?
Levar a minha música a ser conhecida por mais pessoas e fazer shows. Eu adoro fazer shows. Antigamente eu não gostava não. Morria de medo de subir em palco. Mas hoje em dia me sinto mais à vontade nele do que fora dele. É curioso isso. No começo da minha carreira era um horror. Tremia, bebia, enchia a cara para fazer um show. Um dia, no Teatro da Paz, em Belém, meia hora antes eu passei mal do estômago. E pensei ‘poxa, vou ter que fazer a seco o show e vai ser uma catástrofe’. Fiz e foi uma maravilha. Depois disso nunca mais bebi antes do show. Depois, sim.
Qual você considera que foi o grande desafio para chegar a esse disco cheio de parcerias?
As dificuldades pessoais que eu tive para fazer. Tive problemas de saúde e fui fazendo, planejando o disco, aí tive que adiar e, aos poucos, fui vendo aquela coisa ali nascer. Aí comecei a ver que o sonho estava se concretizando, que inclusive os cantores se animaram a cantar, que todos responderam ao meu chamado, enfim. Então o disco ficou muito bom, ficou muito bonito.
E esse álbum vai ser lançado no streaming, que é bem diferente do vinil do seu primeiro disco, lá em 1973. Você ouve música nessas plataformas?
Ouço, sim. Quer dizer, quando eu faço um disco, eu não estou pensando no streaming. Eu estou pensando em um disco como se a pessoa fosse ouvir inteiro, da forma como ele foi feito.. Não é o que acontece na maioria das vezes, né? Mas eu ainda tenho um olhar, assim, no sentido de fazer um trabalho que seja pensado em um todo, na ordem das músicas, a instrumentação. Nada é aleatório.
Você acha que essas plataformas são boas?
São porque divulgam… E é a forma como a banda toca hoje em dia. Tem que aproveitar o que tem de bom na internet.
Sobre a escolha de parceiros e intérpretes, como você decide isso?
Os intérpretes foram escolhidos a partir das músicas, das composições. Então, a música com Ivan Lins, por exemplo, nós dois cantamos no disco. A música com Zé Renato, eu dou umas pinceladas, mas quem canta mesmo a maior parte é o Zé. A música com Maurício Carrilho, que ele não canta, eu convidei a Mônica Salmaso. Então, depende de cada música. A Simone fez um disco há uns anos sobre Martinho da Vila (“Café com Leite”, 1996). E canta muito bem samba. Então, pensei, ‘pô, só pode ser a Simone’. ‘Samba pra Martinho’ é um samba-enredo que foi composto por mim. Geraldinho Carneiro e Olivia (Hime), que fizeram a letra. Fiz há uns dois anos. Tinha um concurso para um desfile de escola de samba (Vila Isabel, em 2022), onde homenagearam o Martinho, mas a gente levou muito tempo para fazer e quando ficou pronto a inscrição já tinha acabado. Mas eu gostei tanto que resolvi colocar no disco. E é um dos destaques. Outra música que eu gosto muito, que dá título ao disco é ‘Não navego pra chegar’, com a Mônica Salmaso, que tem aquela voz deslumbrante, e não podia ficar de fora. A Mônica canta tudo. A ‘Chula Chula’, que tem um pé no Nordeste, eu convidei o Lenine para cantar comigo.
E essa do Ziraldo (1933/2024), ‘Infinita’?
Olivia descobriu essa música antiga minha que estava inédita até hoje, que é com letra do Ziraldo. Eu fiz para uma peça dele chamada ‘Belas figuras’. Só tinha sido usada na peça, então ela descobriu e nós cantamos juntos. Ficou bem bonito… Ele era meu amigo. Tem outras que ficaram inéditas. Tem poemas que ele me deu que acabei não musicando. Vai ver que um dia eu vou fazer.
E nesse álbum Olivia Hime também é sua principal parceira…
Ela tem cinco letras. Ela chega e descobre o que a música está dizendo. Então aí não tem erro.
Falando sobre o título do álbum, ‘Não navego pra chegar’, sugere que talvez o caminho importe mais do que o destino?
É, exatamente. Fala um pouco sobre isso.
Isso reflete um pouco da tua jornada artística também?
Sim, reflete. Porque é o fazer, né, que dá muito prazer. Até rimou.
Francis, a emoção é mesmo a palavra-chave?
Sim, mas nossa, muito! Se não me emocionar, não componho. Tocar talvez até toque, mas compor, sem emoção, não tem jeito. Ouvindo Tchaikovsky, Stravinsky, Beethoven, Debussy, Ravel, tanta gente que veio antes e que me emociona. E essas parcerias com esses amigos, tem uma carga de emoção, de histórias. Quando completo uma música, dá aquela alegria, subo correndo as escadas para mostrar para a Olívia. Então é curioso essa coisa da criação, você começa a dedilhar alguma coisa, ou juntar, e de repente sai uma ideia que te toma, nem é você mais que a domina, ela que te domina. E quando se concretiza, é muito bom.
Repertório de ‘Não navego pra chegar’:
1-Imaginada (Francis Hime, Ivan Lins e Olivia Hime) – com Ivan Lins
2-Chuva (Francis Hime e Zélia Duncan)
3-Samba pra Martinho (Francis Hime, Geraldo Carneiro e Olivia Hime) – com Simone
4-Não navego para chegar (Maurício Carrilho, Francis e Olivia Hime) – com Mônica
Salmaso
5- Um rio (Francis Hime e Olivia Hime) – com Dori Caymmi e Olivia Hime
6-Tempo breve (Francis Hime e Bráulio Pedroso) – com Zélia Duncan
7-Imensidão (Francis Hime, Zé Renato e Olivia Hime) – com Zé Renato
8-Shakespeareana (Francis Hime e Geraldo Carneiro) – com Quarteto Maogani
9- Tomara que caia (Francis Hime e Moraes Moreira) – com Leila Pinheiro
10- Chula Chula (Francis Hime e Geraldo Carneiro) – com Lenine
11-Infinita (Francis Hime e Ziraldo) – com Olivia Hime
Instrumentistas que participam do projeto: Paulo Aragão, Jorge Helder, Diego Zangado, Ricardo Silveira, Luciana Rabello, Maurício Carrilho, Kiko Horta, Marcus Thadeu, Aquiles, Dirceu Leite, Hugo Pilger e Cristiano Alves.
Ficha Técnica:
Produção Musical: Paulo Aragão
Direção Musical: Francis Hime
Direção Artística: Olivia Hime
Arranjos: Francis Hime (exceto “Shakespaeareana”, de Paulo Aragão)
Gravação, mixagem e masterização: Lucas Ariel
Gravado no estúdio da Biscoito Fino
Fotos de divulgação de Francis Hime: Nana Moraes
Projeto gráfico: Ruth Freihof
– Diego Queijo é jornalista! Acompanhe: instagram.com/diegoqueijo.