De que serve o esporte?
Reação a tragédias coletivas ajudam a mostrar como organizações esportivas americanas trabalham bem suas raízes comunitárias O post De que serve o esporte? apareceu primeiro em MKT Esportivo.

Muita gente me pergunta o que exatamente se estuda em um doutorado em Gestão Esportiva. A ideia de um curso de graduação na área, ainda que incomum no Brasil, ainda parece fazer certo sentido, afinal é um dos mercados que mais cresce no mundo há décadas e há inúmeras oportunidade de trabalho no setor. Cursos de mestrado e, principalmente, doutorado, no entanto, costumam causar mais surpresa, e até hoje nunca encontrei alguém de fora que entendesse exatamente o que eu faço da vida.
Esse artigo não tem como objetivo responder essa pergunta, mas acredito que pode ajudar, ainda que sem querer. O programa tem boa parte de seus seminários focados em pensar como o esporte se relaciona com a sociedade ao seu redor, então a reflexão que trarei nesse texto é resultado direto do que venho estudando e debatendo por meses.
Para esse mês de abril, minha ideia inicial era comentar uma discussão que vi se formando ao longo dos últimos meses, alimentada pela entrada (e saída) de Ronaldo da disputa pela presidência da CBF: como tornar o futebol brasileiro um produto viável internacionalmente? A minha visão sobre esse assunto é bastante diferente da visão da atual direção do futebol brasileiro, mas é também muito diferente da visão que o Ronaldo parece ter do assunto, então sinto que eu poderia contribuir para a conversa de alguma forma. Na verdade, eu ainda pretendo falar sobre esse assunto, mas essa última semana me fez decidir dar um passo atrás e discutir algo mais fundamental – no sentido de servir como fundamento.
A pergunta que faço hoje, antes de explicar como eu acredito que o futebol brasileiro pode se tornar um produto melhor internacionalmente, é “de que importa o esporte?” Me parece muito claro, enquanto brasileiro vivendo e estudando esporte fora do país, que o brasileiro, em geral, tem uma péssima relação com o esporte, e o motivo para isso é justamente a ausência de uma boa resposta para essa pergunta.
Antes de seguirmos, queria abrir um breve parênteses para contextualizar esse meu artigo. Na última semana, como alguns de vocês possivelmente saibam, a minha universidade, Florida State University, foi alvo de um atirador, que infelizmente matou duas pessoas e deixou outras seis feridas no campus. Como vocês podem imaginar, esse é o tipo de evento que causa um impacto profundo em todos os envolvidos, e eu tenho observado em primeira mão, tanto da posição de aluno quanto de professor, esse processo coletivo de recuperação de um trauma e de um luto.
Nesse cenário, eu não me imaginaria falando de nada que não fosse esse assunto, mas a ideia aqui não é usar esse espaço como terapia. Esse processo pelo qual a FSU está passando, e vai passar pelas próximas semanas, meses e anos, nos traz importante lições e, principalmente, nos traz a resposta para a pergunta que fiz no parágrafo anterior: “de que importa o esporte?”
Para começar a responder a essa pergunta, acho importante dizer que os primeiros tiros na FSU foram ouvidos por volta do meio-dia de quinta-feira. Precisamente às 13h18, quando a situação ainda sequer havia sido dada por encerrada, a universidade publicou um anúncio avisando que fecharia seu campus até domingo, cancelando todos os eventos esportivos previstos para o final de semana. Entre esses eventos, estavam três partidas de baseball contra a Universidade da Virgínia, por exemplo, que normalmente atraem milhares de pessoas para as arquibancadas.
Essa agilidade para se tomar uma decisão me levou a pensar sobre a situação das enchentes no Rio Grande do Sul ano passado, quando se passaram semanas até que uma decisão definitiva fosse tomada com relação aos jogos de Grêmio, Internacional e Juventude. Os americanos, nesse sentido, parecem entender melhor do que nós brasileiros algo fundamental sobre o esporte: ele é muito importante, mas ainda assim é a coisa menos importante entre as mais importantes em nossas vidas. O esporte é um aglutinador de pessoas, uma ferramenta vital para a construção de comunidades, e os americanos fazem isso como ninguém. Ainda assim, eles compreendem que o esporte só consegue exercer essa função em um ambiente propício para isso.
Antes de me aprofundar nessa discussão acerca de construção de comunidades, no entanto, gostaria de apresentar mais um exemplo vindo dos Estados Unidos. Em 11 de setembro de 2001, a Major League Baseball tomou a decisão de parar sua temporada em virtude dos ataques às Torres Gêmeas e ao Pentágono. A liga ficou parada por uma semana, até que se entendeu que o país estava pronto para – e, principalmente, se beneficiaria de – sua volta. E essa volta aconteceu recheada de momentos históricos, como os home runs de Sammy Sosa e Mike Piazza para o Chicago Cubs e o New York Mets, respectivamente. A cena de Sosa correndo as bases com a bandeira americana é lembrada até hoje como símbolo de recuperação do país pós-11 de setembro.
Em agosto desse ano, Florida State irá reinaugurar seu estádio, que passou os últimos dois anos sendo reconstruído, em partida contra a Universidade do Alabama. Essa certamente será a partida mais importante da primeira semana do futebol americano universitário, voltando os olhos de milhões de americanos para Tallahassee. Nesse contexto, não tenho dúvida alguma de que a cerimônia ao redor da partida estará repleta de referências ao ataque da última semana. O esporte, não tenho dúvida alguma, será usado como o principal veículo para recuperar uma comunidade atualmente machucada. No meu entendimento, esse é o principal papel do esporte de alto rendimento em uma sociedade: o esporte une pessoas e forma comunidades, mas, como disse anteriormente, só consegue fazer isso em um ambiente saudável. Em um ambiente enfermo, ele não tem razão de existir.
Vou discutir isso em muito mais detalhes no próximo mês, mas já tentarei desde já deixar essa semente: o futebol brasileiro atualmente não é atraente para o mercado internacional pelo simples motivo de ter deixado de se conectar com seu próprio país, com sua própria sociedade. Como retomar essa conexão é um tema que merece um texto inteiro, então não vou me alongar por aqui. O que posso adiantar é que me parece muito claro que o futebol brasileiro, bem como a imensa maioria de seus clubes, tem uma dificuldade imensa em se consolidar como pilar de uma sociedade saudável que prospere em seu entorno.
Pensando nisso, gostaria de trazer algumas das palavras que o Miami Heat publicou horas após a tragédia: “Estamos devastados pela violência sem sentido que tirou vidas inocentes em nosso estado. Muitos membros da nossa família foram alunos da Florida State, e muitos são atualmente pais de alunos.” A mensagem de pesar continua, mas esse primeiro trecho é o mais importante para o meu ponto. É muito comum nas comunicações institucionais de equipes esportivas por aqui que se faça essa conexão com a comunidade ao seu redor. Seja nas ligas principais, como a MLB, a NFL e a NBA, seja nas ligas menores ou no college, o tom adotado é sempre o mesmo: as organizações esportivas são sempre representantes e a representação das comunidades ao seu redor, e é justamente por isso que elas conseguem ser sempre tão relevantes.
É muito comum, por exemplo, que essas equipes criem premiações relacionadas às suas comunidades, como “Professor do Ano” ou ”Policial do Ano,” por exemplo, numa clara tentativa de se posicionarem enquanto representantes das comunidades ao seu redor.
Para concluir, na temporada passada do futebol americano, a FSU viu seu desempenho despencar para duas vitórias em doze jogos após uma temporada 2023 em que conquistou treze vitórias em treze jogos na temporada regular. A queda de desempenho entre as duas temporadas foi, com sobras, a maior queda de um programa de futebol americano universitário na história. Há algumas semanas, quando conversávamos sobre esse assunto, perguntei para Derril Beech, diretora de marketing esportivo da universidade, como fazer para manter torcedores engajados em um cenário de péssimo desempenho esportivo. A resposta dela me dá o gancho para concluir esse texto, e não poderia estar mais correta. Ela me disse que eu estava enganado se achava que torcedores buscavam vitórias ao acompanhar uma equipe de futebol americano.
A primeira divisão do college football possui mais de cem universidades, e é de se esperar que cerca de metade dos programas encerrem a temporada com recorde negativo. Muito mais do que vitórias, o que torcedores esperam, segundo ela, é uma equipe de que possam se orgulhar.
Vitórias em campo são, por óbvio, a maneira mais fácil de orgulhar quem um clube se propõe a representar, mas nem de longe é a única. Eu me arriscaria a dizer, inclusive, que nem sequer é a mais importante, apesar da óbvia natureza competitiva dos esportes. O problema de acreditar que a vitória é mais importante é que esse pensamento mata todo o seu entorno, a ponto de não haver mais nada de que se orgulhar quando as vitórias cessam.
A FSU provavelmente não vai ser um programa vencedor na próxima temporada, mas eu não tenho qualquer dúvida de que a universidade vai se reerguer e, apesar de qualquer derrota em campo, vai ter motivos dos quais se orgulhar. Mês que vem, volto para trazer essa discussão de volta ao cenário brasileiro.
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