Babelou as aventuras da linguagem

Isabel Costa e Carla Maciel[FOTO: Tomás Monteiro] A. Quando o leitor aceder a este texto, o espectáculo Babel (uma produção de Os Possessos no Teatro Meridional, em Lisboa) já não estará em cena, uma vez que a sua carreira decorreu entre 25 de abril e 4 de maio. Entendam-se, por isso, estas breves linhas como uma simples, mas entusiástica, memória de um acontecimento original e intenso, alheio aos lugares-comuns "comunicacionais" que nos afogam todos os dias, comandados pela boçalidade de muitos sectores do espaço televisivo e, nessa medida, do próprio espaço social.B. Comunicação, justamente — eis a questão. O brilhante texto original de Leonor Buescu, também responsável pela encenação, poderá, talvez, ser resumido como um misto de ensaio e fábula, divagação filosófica e subtil comédia. Que acontece, ou pode acontecer, quando, ao comunicarmos, começamos a questionar o que está realmente a ser vivido? Duas mulheres, interpretadas com rigor minimalista por Carla Maciel e Isabel Costa, surgem, assim, como personagens de um mundo alternativo (ou será apenas uma projeção fantasmática do nosso mundo?) em que a possibilidade de passar para o "outro lado" é, de uma só vez, um desejo e uma utopia, um gesto possível mas também uma promessa de aventuras pontuadas por um medo primitivo e animista. São, afinal, habitantes da própria linguagem — não apenas a linguagem como algo que nos faz conhecer e lidar com a pluralidade do mundo, mas também, no limite, como configuração (consciente ou inconsciente) do próprio mundo. Daí o peculiar envolvimento visual e dramático de todo o espectáculo: por um lado, a geometria do cenário de Ângela Rocha e da luz de Rui Seabra, sem esquecer a depurada sonoplastia de Mariana Camacho, convocam-nos para uma cerimónia ritualizada em que o acontecimento teatral parece bastar-se a si mesmo como invenção de uma paisagem alternativa; por outro lado, quanto mais aquelas duas mulheres se vão perdendo, encontrando e desencontrando nos sobressaltos da linguagem, mais as sentimos como figuras erráticas, talvez nómadas, do nosso próprio mundo.C. Escusado será dizer que tudo isto contém ecos do nosso presente, da comunicação como saturação em que somos forçados a viver e também da dificuldade de, realmente, estabelecermos alguma ponte com o outro que nos contempla e nós contemplamos. Leonor Buescu refere isso mesmo no texto do programa: "Quando a comunicação é facilitada pela sofisticação e aparente infalibilidade das ferramentas tecnológicas de que dispomos, será que estas nos proporcionam um mundo esclarecido?" — eis um labor que não se esgota em banais clichés politicamente correctos; eis também, por isso mesmo, uma forma feliz de não desistir do teatro.P.S. —  Convém acrescentar que estas não foram as únicas representações de Babel. Assim, ainda em maio, o espectáculo estará no dia 17 em Idanha-a-Nova (Centro Cultural Raiano) e no dia 24 no Fundão (A Moagem).  

Mai 5, 2025 - 00:05
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Babelou as aventuras da linguagem
Isabel Costa e Carla Maciel
[FOTO: Tomás Monteiro]

A. Quando o leitor aceder a este texto, o espectáculo Babel (uma produção de Os Possessos no Teatro Meridional, em Lisboa) já não estará em cena, uma vez que a sua carreira decorreu entre 25 de abril e 4 de maio. Entendam-se, por isso, estas breves linhas como uma simples, mas entusiástica, memória de um acontecimento original e intenso, alheio aos lugares-comuns "comunicacionais" que nos afogam todos os dias, comandados pela boçalidade de muitos sectores do espaço televisivo e, nessa medida, do próprio espaço social.

B. Comunicação, justamente — eis a questão. O brilhante texto original de Leonor Buescu, também responsável pela encenação, poderá, talvez, ser resumido como um misto de ensaio e fábula, divagação filosófica e subtil comédia. Que acontece, ou pode acontecer, quando, ao comunicarmos, começamos a questionar o que está realmente a ser vivido? Duas mulheres, interpretadas com rigor minimalista por Carla Maciel e Isabel Costa, surgem, assim, como personagens de um mundo alternativo (ou será apenas uma projeção fantasmática do nosso mundo?) em que a possibilidade de passar para o "outro lado" é, de uma só vez, um desejo e uma utopia, um gesto possível mas também uma promessa de aventuras pontuadas por um medo primitivo e animista. São, afinal, habitantes da própria linguagem — não apenas a linguagem como algo que nos faz conhecer e lidar com a pluralidade do mundo, mas também, no limite, como configuração (consciente ou inconsciente) do próprio mundo. Daí o peculiar envolvimento visual e dramático de todo o espectáculo: por um lado, a geometria do cenário de Ângela Rocha e da luz de Rui Seabra, sem esquecer a depurada sonoplastia de Mariana Camacho, convocam-nos para uma cerimónia ritualizada em que o acontecimento teatral parece bastar-se a si mesmo como invenção de uma paisagem alternativa; por outro lado, quanto mais aquelas duas mulheres se vão perdendo, encontrando e desencontrando nos sobressaltos da linguagem, mais as sentimos como figuras erráticas, talvez nómadas, do nosso próprio mundo.

C. Escusado será dizer que tudo isto contém ecos do nosso presente, da comunicação como saturação em que somos forçados a viver e também da dificuldade de, realmente, estabelecermos alguma ponte com o outro que nos contempla e nós contemplamos. Leonor Buescu refere isso mesmo no texto do programa: "Quando a comunicação é facilitada pela sofisticação e aparente infalibilidade das ferramentas tecnológicas de que dispomos, será que estas nos proporcionam um mundo esclarecido?" — eis um labor que não se esgota em banais clichés politicamente correctos; eis também, por isso mesmo, uma forma feliz de não desistir do teatro.

P.S. —  Convém acrescentar que estas não foram as únicas representações de Babel. Assim, ainda em maio, o espectáculo estará no dia 17 em Idanha-a-Nova (Centro Cultural Raiano) e no dia 24 no Fundão (A Moagem).