Quem vive na América do Sul sabe que o futebol é algo muito mais passional do que um mero esporte.
Despelote foi a forma como Julián Cordero, um dos criadores do jogo, achou para rememorar alguns momentos de sua infância no Equador, em uma época na qual futebol, economia e política causavam comoção no país de diversas formas.
O (meu) mundo é uma bola
Despelote funciona mais como um documento interativo autobiográfico do que um jogo de fato. Tanto que, funcionalmente, nós podemos andar, correr e interagir com objetos destacados, principalmente com bolas de futebol.
O pequeno Julián, que tem 8 anos no jogo, está inserido em um momento bastante complexo do seu país. O Equador havia acabado de passar por um golpe de estado que, embora fracassado, não deixou de mexer com a economia do país. Um exemplo é o de que a moeda oficial deixou de ser o sucre equatoriano e passou a ser usado o dólar americano, com a intenção de controlar a inflação.
Em meio ao tumulto causado por todo esse cenário nacional, o futebol vinha como o alívio para a população, e sempre vale lembrar que, para nós sul americanos, o esporte é muito mais que um mero entretenimento, sendo tratado como paixão e até “religião” (com o perdão do simbolismo) pelos mais fanáticos. O recorte temporal se passa no ano de 2001, durante as eliminatórias para o torneio que foi sediado na Coreia do Sul e no Japão, e vencido pelo Brasil.
A Copa do Mundo foi um sonho distante para o Equador desde sempre, e nunca ter se classificado era uma mancha no nome da seleção, ainda mais sendo vizinho continental das multi-campeãs Argentina (1978 e 1986), Brasil (1958,1962, 1970 e 1994) e Uruguai (1930 e 1950). Além delas, Bolívia e Chile já haviam participado de edições passadas da competição.
Logo, o futebol se tornou uma grande válvula de escape de esperança para a nação venezuelana e Despelote nos faz reviver dias específicos nos quais aconteceram jogos das eliminatórias que classificaram o Equador para sua primeira Copa do Mundo. Tudo para Julián é baseado no esporte, seja no videogame da sala da sua casa ou pelo fato de sempre ter algum amigo seu pelas ruas com uma bola disposto a realizar brincadeiras, como toques curtos na praça ou acertar garrafas e cones em cima de muros e containers de lixo.
Toda essa brincadeira de criança causa diferentes reações em quem está pelo caminho: se você interagir com as pessoas normalmente, elas irão lhe cumprimentar, perguntar como vai a escola ou se você assistiu o jogo; passar correndo com a bola nos pés irá gerar algumas irritações de pessoas que falarão que ali não é lugar para correria e para irem bagunçar em outro lugar; já o ato de chutar a bola para longe e acertar alguém sempre vai causar algum tipo de bronca, seja do senhor tentando alimentar os pombos da praça, do casal que estava tentando fazer um piquenique romântico, ou da moça que estava concentrada em sua sessão de ioga.
Esses detalhes sutis, intercalados com os momentos narrativos que sempre inserem trechos de memórias de Julián (como jantares em família e algumas broncas de seus pais) ajudam o jogador a realmente mergulhar naquela realidade pelas quase duas horas de duração de Despelote.
E, convenhamos, este jogo tem um apelo muito maior para o público sul-americano, pelo tamanho da comoção gerada pela época das eliminatórias, que introduz os preparativos para a Copa do Mundo que virá, e também pelo fato de o futebol ser algo inerente a quase todos seres deste continente desde o nascimento.
O único ponto contra é que, por não ter missões e apenas se basear na passagem de tempo para que os eventos se sucedem, Despelote pode se tornar um pouco arrastado, mesmo sendo bem curto.
Em tempo: atualmente, a seleção do Equador já participou de outras três edições da Copa do Mundo, além da primeira em 2002. Foram as seguintes: 2006, 2014, 2022, além de estar em vias de se classificar para a de 2026. Até o momento de publicação deste texto, a Venezuela é a única seleção filiada à CONMEBOL que nunca disputou uma Copa do Mundo. Guiana, Suriname e Trinidad e Tobago disputam as eliminatórias da América Central, mesmo estando localizadas na América do Sul.
Uma maneira peculiar de enxergar a realidade
Para reforçar a ênfase narrativa, Despelote optou por trazer um estilo visual bastante único. O ambiente tridimensional é tratado com cores que predominam por todo o espaço, como verde, laranja e roxo, trazendo apenas variações de tom. Já os elementos de destaque, como pessoas e objetos com os quais devemos interagir, são totalmente desprovidos de coloração, ficando em preto e branco, o que realça a presença deles mesmo de longe.
Confesso que, de primeira, não é um jogo que chame atenção pela beleza estética. Isso até faz sentido porque, ao pé da letra, a palavra “despelote” significa bagunça, desorganização, caos. Sem contar que, tomando a devida liberdade, a palavra também traz uma aproximação com “pelota”, que é bola em espanhol. Logo, os gráficos podem trazer uma estranheza inicial, que é passageira.
Agora no que diz respeito ao som, temos um trabalho bastante competente. Todas as falas estão no idioma espanhol, com direito a balões de texto localizados em português. Além de todos os personagens serem dublados, há diversos trechos de áudio originais do ano de 2001, desde manchetes televisivas quanto narrações das partidas. Isso enriquece bastante a parte documental do jogo.
A voz do próprio Julián Cordeiro ao final da história, narrando alguns fatos posteriores aos mostrados em Despelote, também caem como uma luva nesta aventura incomum e chancelam a aura de autobiografia.
Um produto muito bom para um nicho específico
Despelote está muito longe de ser aquele título que chama atenção por sua jogabilidade ou desafio. Ele vem com uma proposta muito diferente para um público bastante específico, mas isso não diminui o crédito da sua experiência. Para quem gosta de recortes curiosos de realidades paralelas às nossas, que antes só eram possíveis por documentários televisivos, ficará bastante surpreso com este jogo, mesmo que dure pouco.
Prós
- O jogo traz uma maneira criativa de contar uma história pessoal dentro da história do Equador;
- Os trechos de áudio retirados de transmissões televisivas da época aumenta a credibilidade do trabalho documental;
- A diferença de reação das pessoas pelo caminho de acordo com o que você faz aumenta a imersão criada pela visão de uma criança de oito anos.
Contras
- Mesmo curto, há momentos em que os acontecimentos são um pouco arrastados;
- Os gráficos podem causar uma certa estranheza de início.
Despelote — PC/PS4/PS5/XSX — Nota: 8.5
Versão utilizada para análise: PS5
Revisor: Juliana Piombo dos Santos
Análise feita com cópia digital cedida pela Panic
Despelote
8.5
PS5
Despelote is far from being a title that draws attention for its gameplay or challenge. It comes with a very different proposal for a very specific audience, but that does not diminish the credit of its experience. For those who enjoy curious excerpts from parallel realities to ours, which were previously only possible through television documentaries, you will be quite surprised by this game, even if it doesn't last long.