A injustiça da March Madness: como a luta contra a NCAA mudou o desporto universitário nos EUA
27 de março de 2014: numa entrevista de rotina antes de um jogo da Universidade de Connecticut na March Madness, o base Shabazz Napier foi questionado sobre a possibilidade de os jogadores universitários nos EUA virem a ser pagos. A sua resposta foi impactante e ressoou em todo o país: «Acho que seria ótimo. No final das contas, estamos a ser «utilizados» pelas nossas habilidades. Sim, receber uma bolsa de estudo é bom, mas isso não cobre tudo. Há muitas noites de fome. Há muitas noites em que não tenho dinheiro para comer e, mesmo assim, tenho de jogar ao meu nível pela universidade».
A frase «há muitas noites de fome» causou impacto nos EUA, mas apenas chocou aqueles que desconheciam (ou fingiam desconhecer) o sistema da NCAA. Durante mais de cem anos, esta organização "sem fins lucrativos" geriu o desporto universitário, movimentando centenas de milhões de dólares (March Madness de 2024 gerou 1,3 mil milhões de dólares), contando com treinadores milionários (vários rejeitaram NBA por receberem mais nas Universidades) e pavilhões de última geração. No entanto, os atletas - os verdadeiros protagonistas - recebiam um total de ZERO dólares pelo seu trabalho.
Não é um erro. Milhares de jogadores de basquetebol, futebol americano, voleibol e outros desportos representavam as suas universidades com uma carga horária digna de profissionais, mas sem qualquer tipo de compensação financeira.
Por isso, ao iniciarmos mais uma edição da March Madness, é essencial recordar os momentos que abriram caminho para a mudança das regras da NCAA.
Durante anos, a NCAA justificou a falta de pagamento com dois argumentos: a atribuição de bolsas de estudo (nos EUA, avaliadas em centenas de milhares de dólares) e a liga universitária como única montra para o profissionalismo. No entanto, estes argumentos falham ao ignorar que nem todos os atletas possuem estabilidade financeira e que apenas uma pequena fração chega a profissional, com muitos mais a não conseguirem conciliar os estudos com o desporto e terem de tirar cursos com pouca procura no mercado de trabalho.
Sim, Shabazz Napier conseguiu chegar à NBA. Mas, dos restantes 14 jogadores da Universidade de Connecticut, campeões nacionais de basquetebol em 2013/2014, apenas um, Amida Brimah, jogou na NBA - e apenas por cinco jogos.
Os jogadores eram considerados "amadores", mesmo quando toda a estrutura à sua volta era altamente profissional. Essa classificação impedia-os de obter qualquer tipo de compensação. E quando dizemos "qualquer compensação", é literal. Em 2003, o treinador da Universidade de Utah, Rick Majerus, descobriu que um dos seus jogadores não tinha dinheiro para viajar ao funeral de um dos pais. Pagou-lhe o bilhete de avião e levou-o a almoçar antes deste embarcar. O resultado? A NCAA suspendeu o treinador e o atleta.
Histórias como esta são comuns. Muitos jovens viram as suas bolsas de estudo canceladas após lesões graves, ficando sem educação, sem carreira desportiva e sem apoio financeiro. Não podiam sequer ser patrocinados por marcas externas, levando a uma cultura de pagamentos "por baixo da mesa".
Porém, em 1998 a NCAA cometeu um erro. Sim, a Liga recebia centenas de milhões pelos direitos televisivos da March Madness, recebia milhões pelos patrocínios de todas as atividades (até o tradicional cortar da rede dos cestos era patrocinado pela marca das escadas que os jogadores utilizavam), mas isso parece que não chegava. Em parceria com a EA Sports, uma emprega de jogos de vídeo jogos, decidiu criar um jogo chamado «NCAA Basketball».
Foi aqui que Sonny Vaccaro entrou em cena. Este lendário nome da Nike e Adidas, imortalizado por Matt Damon no filme "Air" - conta a história de como a Nike, através dele, conseguiu contratar Michael Jordan - sempre criticou a NCAA, chamando-a de "escravatura desportiva". Vaccaro convenceu Ed O'Bannon, ex-jogador de UCLA e campeão universitário em 1995, a processar a NCAA. O motivo? O jogo NCAA Basketball 08 continha todas as suas características - físicas, técnicas e estatísticas - sem que ele tivesse recebido um cêntimo.
O processo, iniciado em 2009, ganhou ainda mais força com o apoio de lendas da NBA como Bill Russell e Oscar Robertson, também utilizados sem permissão. Em 2014, a justiça deu razão a O'Bannon, abrindo as portas para a mudança das regras.
A viragem definitiva ocorreu em junho de 2021. O ex-jogador de futebol americano Shawne Alston levou o seu caso ao Supremo Tribunal dos EUA, que votou unanimemente contra a NCAA. A decisão forçou a organização a permitir a compensação dos atletas-estudantes.
Desde então, reformas foram implementadas, permitindo aos atletas lucrarem com a sua imagem e receberem patrocínios. Hoje, Cooper Flagg, a maior promessa do basquetebol universitário, recebe cerca de sete milhões de dólares pela sua estadia pela Universidade de Duke, combinando compensação e acordos comerciais.
O desafio agora é outro: evitar que as universidades mais ricas dominem o re
27 de março de 2014: numa entrevista de rotina antes de um jogo da Universidade de Connecticut na March Madness, o base Shabazz Napier foi questionado sobre a possibilidade de os jogadores universitários nos EUA virem a ser pagos. A sua resposta foi impactante e ressoou em todo o país: «Acho que seria ótimo. No final das contas, estamos a ser «utilizados» pelas nossas habilidades. Sim, receber uma bolsa de estudo é bom, mas isso não cobre tudo. Há muitas noites de fome. Há muitas noites em que não tenho dinheiro para comer e, mesmo assim, tenho de jogar ao meu nível pela universidade».
A frase «há muitas noites de fome» causou impacto nos EUA, mas apenas chocou aqueles que desconheciam (ou fingiam desconhecer) o sistema da NCAA. Durante mais de cem anos, esta organização "sem fins lucrativos" geriu o desporto universitário, movimentando centenas de milhões de dólares (March Madness de 2024 gerou 1,3 mil milhões de dólares), contando com treinadores milionários (vários rejeitaram NBA por receberem mais nas Universidades) e pavilhões de última geração. No entanto, os atletas - os verdadeiros protagonistas - recebiam um total de ZERO dólares pelo seu trabalho.
Não é um erro. Milhares de jogadores de basquetebol, futebol americano, voleibol e outros desportos representavam as suas universidades com uma carga horária digna de profissionais, mas sem qualquer tipo de compensação financeira.
Por isso, ao iniciarmos mais uma edição da March Madness, é essencial recordar os momentos que abriram caminho para a mudança das regras da NCAA.
Durante anos, a NCAA justificou a falta de pagamento com dois argumentos: a atribuição de bolsas de estudo (nos EUA, avaliadas em centenas de milhares de dólares) e a liga universitária como única montra para o profissionalismo. No entanto, estes argumentos falham ao ignorar que nem todos os atletas possuem estabilidade financeira e que apenas uma pequena fração chega a profissional, com muitos mais a não conseguirem conciliar os estudos com o desporto e terem de tirar cursos com pouca procura no mercado de trabalho.
Sim, Shabazz Napier conseguiu chegar à NBA. Mas, dos restantes 14 jogadores da Universidade de Connecticut, campeões nacionais de basquetebol em 2013/2014, apenas um, Amida Brimah, jogou na NBA - e apenas por cinco jogos.
Os jogadores eram considerados "amadores", mesmo quando toda a estrutura à sua volta era altamente profissional. Essa classificação impedia-os de obter qualquer tipo de compensação. E quando dizemos "qualquer compensação", é literal. Em 2003, o treinador da Universidade de Utah, Rick Majerus, descobriu que um dos seus jogadores não tinha dinheiro para viajar ao funeral de um dos pais. Pagou-lhe o bilhete de avião e levou-o a almoçar antes deste embarcar. O resultado? A NCAA suspendeu o treinador e o atleta.
Histórias como esta são comuns. Muitos jovens viram as suas bolsas de estudo canceladas após lesões graves, ficando sem educação, sem carreira desportiva e sem apoio financeiro. Não podiam sequer ser patrocinados por marcas externas, levando a uma cultura de pagamentos "por baixo da mesa".
Porém, em 1998 a NCAA cometeu um erro. Sim, a Liga recebia centenas de milhões pelos direitos televisivos da March Madness, recebia milhões pelos patrocínios de todas as atividades (até o tradicional cortar da rede dos cestos era patrocinado pela marca das escadas que os jogadores utilizavam), mas isso parece que não chegava. Em parceria com a EA Sports, uma emprega de jogos de vídeo jogos, decidiu criar um jogo chamado «NCAA Basketball».
Foi aqui que Sonny Vaccaro entrou em cena. Este lendário nome da Nike e Adidas, imortalizado por Matt Damon no filme "Air" - conta a história de como a Nike, através dele, conseguiu contratar Michael Jordan - sempre criticou a NCAA, chamando-a de "escravatura desportiva". Vaccaro convenceu Ed O'Bannon, ex-jogador de UCLA e campeão universitário em 1995, a processar a NCAA. O motivo? O jogo NCAA Basketball 08 continha todas as suas características - físicas, técnicas e estatísticas - sem que ele tivesse recebido um cêntimo.
O processo, iniciado em 2009, ganhou ainda mais força com o apoio de lendas da NBA como Bill Russell e Oscar Robertson, também utilizados sem permissão. Em 2014, a justiça deu razão a O'Bannon, abrindo as portas para a mudança das regras.
A viragem definitiva ocorreu em junho de 2021. O ex-jogador de futebol americano Shawne Alston levou o seu caso ao Supremo Tribunal dos EUA, que votou unanimemente contra a NCAA. A decisão forçou a organização a permitir a compensação dos atletas-estudantes.
Desde então, reformas foram implementadas, permitindo aos atletas lucrarem com a sua imagem e receberem patrocínios. Hoje, Cooper Flagg, a maior promessa do basquetebol universitário, recebe cerca de sete milhões de dólares pela sua estadia pela Universidade de Duke, combinando compensação e acordos comerciais.
O desafio agora é outro: evitar que as universidades mais ricas dominem o recrutamento, oferecendo mais dinheiro aos atletas. Um problema complexo, mas infinitamente mais justo do que o que existia antes - onde jovens atletas eram forçados a jogar sem qualquer apoio, muitas vezes indo dormir com fome.