10 Considerações sobre Os monstros de Hitler, de Eric Kurlander ou quando passam a acreditar das próprias fantasias

O Blog Listas Literárias leu Os monstros de Hitler - Uma história sobrenatural do Terceiro Reich, de Eric Kurlander; neste post as 10 considerações de Douglas Eralldo sobre o livro com como fantasias e superstições levadas à políticas levam às tragédias humanas, confira:1 - Não podemos descartar, obviamente, a presença e o papel dos mitos e das lendas na longa constituição da jornada humana, seja em seus aspectos positivos, mas também naqueles que resultaram em nossos piores momentos. Em grande medida, o livro de Kurlander é um atroz e importante alerta e lembrança a que abismos podemos descer com a dissociação das pessoas à realidade empírica, geralmente complexa e pouco dada a simplificações, função em que atuam os mitos e as crenças distanciadas da factualidade científica;2 - Em Os monstros de Hitler - Uma histórial sobrenatural do Terceiro Reich, Eric Kurlander entrega-nos então um sustentado (e são muitas as suas fontes e referências) e empírico estudo das influências e da presença do pensamento sobrenatural na ideologia do nacional-socialismo e entre os nazistas, mas não apenas e especificamente alemães nazistas, pois como o autor argumentará, o pensamento mágico e sobrenatural na Alemanha se dá de forma distinta a outros países - que de uma forma ou outra também o tem -, bem como, revela-se a Alemanha um local profícuo para o alastrar de tal pensamento;3 - E não são poucas as obras, no cinema e na literatura, que tratam dessa aproximação do nazismo às questões do sobrenatural, muitas dessas referências, inclusive lembradas na obra. Todavia, em seu livro, Kurlander não mistifica a questão como em filmes, por exemplo, o de Indiana Jones. O que faz é realizar um trabalho científico e acadêmico do tema a partir de um conjunto substancial de documentos que retratam essa perspectiva do contexto histórico, também propício à uma fuga da realidade empirica, buscando antigos e ilusórios mitos ora para explicar seus fracassos, ora para tentar construir certa restauração nostálgica erigida sob terríveis ideologias míticas calçadas no racismo, na xenofobia, entre trantas outras monstruosidades que a espécie humana criou. Obviamente, aqui as relações dos nazistas com os mitos que tentam sustentar suas ideias supremacistas como a crença na antiga raça atlante, entre outras;4 - Em síntese, o livro está demarcado pelo principal argumento de Kurlander em seu estudo, o de "que nenhum movimento político de massas, à excessão do nazismo, recorreu de forma tão consciente e consistente ao que chamo imaginário sobrenatural - ocultismo e ciência fronteiriça, paganismo, religiões new age e orientais, folclore, mitologia e várias outras doutrinas sobrenaturais - para atrair uma geração de alemães e alemãs que buscavam novas formas de espiritualidade e explicações inovadoras para o mundo, situadas entre a verificabilidade científica e as verdades da religião tradicional. Sem dúvida, nenhum outro partido de massas fez um esforço semelhante, uma vez no poder, para policiar ou analisar - que dirá apropriar e institucionalizar - tais doutrinas, seja nos campos da ciência e da religião, da cultura e da política social, ou do impulso para a guerra, o império e a limpeza étnica" de modo que para Kurlander "Sem compreender essa relação entre o nazismo e o sobrenatural, não é posssível entender por completo a história do Terceiro Reich".5 - Diante disso, algumas questões são relevantes pontuarmos. Kurlander de modo algum busca no todo do livro dizer que o nazismo reflete especificamente essa relação com o imaginário sobrenatural, a bem da verdade, em muitos momentos reforçará que seu olhar oferece uma nova perspectiva, mas que não retira a necessidade de considerar outros tantos elementos e condicionantes contextuais que resultaram nessa seita totalitária que levou a Alemanha ao abismo humano no século XX; além disso, em toda a obra, o autor demonstrará as ambiguidades presentes nessa relação, mas de forma muito convincente e sustentada de que mesmo nas aparentes ações contra atividades místicas durante o Terceiro Reich, elas se davam menos em ir contra as concepções esotéricas e mais quanto ao controle de narrativa e dos próprios mitos, além, é claro, das ações de cautela em não perder o poder totalitário do regime; do mesmo modo, Kurlander reforça que pensamentos voltados ao imaginário sobrenatural existem em outras nações e continentes, entretanto, o que trata em sua obra são tanto as peculiriadades dessa relação em solo alemão e sua forte tendência ao pensamento mágico e mítico, fator fundamental à espécie de encantamento (ou quem sabe melhor definido como hipnose coletiva) de uma população inteira ao discurso nacional-socialista que conscientemente usou o discurso e a crença mítica como instrumento ideologico do partido para quebrar qualquer barreira moral e possibilitar os planos macabros de seus líderes. De certo modo, o que o livro nos propõe é que a tendência ao mítico do povo foi essencial na erosão de qualquer barreira que se

Mar 23, 2025 - 21:06
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10 Considerações sobre Os monstros de Hitler, de Eric Kurlander ou quando passam a acreditar das próprias fantasias

O Blog Listas Literárias leu Os monstros de Hitler - Uma história sobrenatural do Terceiro Reich, de Eric Kurlander; neste post as 10 considerações de Douglas Eralldo sobre o livro com como fantasias e superstições levadas à políticas levam às tragédias humanas, confira:

1 - Não podemos descartar, obviamente, a presença e o papel dos mitos e das lendas na longa constituição da jornada humana, seja em seus aspectos positivos, mas também naqueles que resultaram em nossos piores momentos. Em grande medida, o livro de Kurlander é um atroz e importante alerta e lembrança a que abismos podemos descer com a dissociação das pessoas à realidade empírica, geralmente complexa e pouco dada a simplificações, função em que atuam os mitos e as crenças distanciadas da factualidade científica;

2 - Em Os monstros de Hitler - Uma histórial sobrenatural do Terceiro Reich, Eric Kurlander entrega-nos então um sustentado (e são muitas as suas fontes e referências) e empírico estudo das influências e da presença do pensamento sobrenatural na ideologia do nacional-socialismo e entre os nazistas, mas não apenas e especificamente alemães nazistas, pois como o autor argumentará, o pensamento mágico e sobrenatural na Alemanha se dá de forma distinta a outros países - que de uma forma ou outra também o tem -, bem como, revela-se a Alemanha um local profícuo para o alastrar de tal pensamento;

3 - E não são poucas as obras, no cinema e na literatura, que tratam dessa aproximação do nazismo às questões do sobrenatural, muitas dessas referências, inclusive lembradas na obra. Todavia, em seu livro, Kurlander não mistifica a questão como em filmes, por exemplo, o de Indiana Jones. O que faz é realizar um trabalho científico e acadêmico do tema a partir de um conjunto substancial de documentos que retratam essa perspectiva do contexto histórico, também propício à uma fuga da realidade empirica, buscando antigos e ilusórios mitos ora para explicar seus fracassos, ora para tentar construir certa restauração nostálgica erigida sob terríveis ideologias míticas calçadas no racismo, na xenofobia, entre trantas outras monstruosidades que a espécie humana criou. Obviamente, aqui as relações dos nazistas com os mitos que tentam sustentar suas ideias supremacistas como a crença na antiga raça atlante, entre outras;

4 - Em síntese, o livro está demarcado pelo principal argumento de Kurlander em seu estudo, o de "que nenhum movimento político de massas, à excessão do nazismo, recorreu de forma tão consciente e consistente ao que chamo imaginário sobrenatural - ocultismo e ciência fronteiriça, paganismo, religiões new age e orientais, folclore, mitologia e várias outras doutrinas sobrenaturais - para atrair uma geração de alemães e alemãs que buscavam novas formas de espiritualidade e explicações inovadoras para o mundo, situadas entre a verificabilidade científica e as verdades da religião tradicional. Sem dúvida, nenhum outro partido de massas fez um esforço semelhante, uma vez no poder, para policiar ou analisar - que dirá apropriar e institucionalizar - tais doutrinas, seja nos campos da ciência e da religião, da cultura e da política social, ou do impulso para a guerra, o império e a limpeza étnica" de modo que para Kurlander "Sem compreender essa relação entre o nazismo e o sobrenatural, não é posssível entender por completo a história do Terceiro Reich".

5 - Diante disso, algumas questões são relevantes pontuarmos. Kurlander de modo algum busca no todo do livro dizer que o nazismo reflete especificamente essa relação com o imaginário sobrenatural, a bem da verdade, em muitos momentos reforçará que seu olhar oferece uma nova perspectiva, mas que não retira a necessidade de considerar outros tantos elementos e condicionantes contextuais que resultaram nessa seita totalitária que levou a Alemanha ao abismo humano no século XX; além disso, em toda a obra, o autor demonstrará as ambiguidades presentes nessa relação, mas de forma muito convincente e sustentada de que mesmo nas aparentes ações contra atividades místicas durante o Terceiro Reich, elas se davam menos em ir contra as concepções esotéricas e mais quanto ao controle de narrativa e dos próprios mitos, além, é claro, das ações de cautela em não perder o poder totalitário do regime; do mesmo modo, Kurlander reforça que pensamentos voltados ao imaginário sobrenatural existem em outras nações e continentes, entretanto, o que trata em sua obra são tanto as peculiriadades dessa relação em solo alemão e sua forte tendência ao pensamento mágico e mítico, fator fundamental à espécie de encantamento (ou quem sabe melhor definido como hipnose coletiva) de uma população inteira ao discurso nacional-socialista que conscientemente usou o discurso e a crença mítica como instrumento ideologico do partido para quebrar qualquer barreira moral e possibilitar os planos macabros de seus líderes. De certo modo, o que o livro nos propõe é que a tendência ao mítico do povo foi essencial na erosão de qualquer barreira que se pudesse impor à ascensão dos nazistas;

6 - Entretanto, se embora usado como estratégia consciente na busca ao poder o pensamento volkish, o livro nos mostra que a alta esfera nazista do mesmo modo era crente às ficções que utilizaram no convencimento social dos alemães. Nesse aspecto temos uma gigantesca máquina de guerra conduzida por alucinados crentes nas mais bizarras teorias da conspiração e nas fronteiras da ciência. Ao mesmo tempo que tais crenças levaram-nos ao poder, não seria exagero dizer que significaram sua derrocada, o que parece ainda mais evidente no último capítulo do livro "Crepúsculo nazista: Armas milagrosas, guerrilheiros sobrenaturais e o colapso do Terceiro Reich". Nesse capítulo, em especial, Kurlander demonstra como as crenças sobrenaturais atrapalharam qualquer avanço científico no campo bélico, isso porque, como veremos, a despeito das ambiguidades, os nazistas agiam sobre a lógica ficcional dos mitos desconsiredando a realidade empírica, Tal dissociação da realidade e em boa medida da ciência, tanto lhes representou seu "sucesso", quanto a queda do império de curta duração;

7 - E o livro de Kurlander nos traz tais relações em nove capítulos distribuídos em três partes. Na primeira parte uma estruturado estudo das raízes sobrenaturais do nazismo, retrocendendo ao tempo e mesmo como na República de Weimar a questão do retorno e na busca pelo folclore como solução dos conflitos sociais e existenciais acaba abrindo as portas para algo perigoso. Nesta parte, questões como a Sociedade Thule e de que modo que ela reverbera no nazismo são discutidos, sendo que a parte encerra-se já discutindo a espécie de encantamento mágico do discurso de Hitler e as principais visões emprenhadas do imaginário sobrenatural do Terceiro Reich;

8 - Na segunda parte o foco então já está no decorrer do Terceiro Reich, tanto das permanências quanto das ambiguidades da relação desse com o ocultismo. Na verdade, Kurlander coloca em xeque as supostas ações antiocultistas no período e as ambiguidades dessas ações. Nessa parte, em especial o capítulo 5, destaca especialmente a participação das ciências fronteiriças (que não seria exagero chamarmos de pseudociências) na política e na estrutura nazista, contexto histórico em que toda e qualquer racionalidade foi extirpada do pensamento alemão. Em "A corte de Lúcifer" as questões religiosas e a própia religião nazista em busca de suplantar o cristianismo, um dos inimigos de Hitler nesse campo;

9 - Já a parte III talvez seja a que mais demonstre o jogo duplo que ao cabo resultou no mergulho irracional e conspiratório de toda uma nação. Nesta parte os tempos de guerra e como tanto as ações de campo quanto a propaganda, essa em grande medida, recorriam à irracionalidade do sobrenatural fosse para tentar elevar a moral fosse no mais típico fenômeno do "Cavaleiros do Aguardem", uma ilusória utopia messiânica, ou então no apocalipse regenerativo tão presente na cultura nórdica. Nesta parte, em especial o capítulo 8 demonstra como esse imaginário sobrenatural, e desculpem a analogia, abriu as portas do inferno para a monstruosa e vil "ciência" nazista que levou-os até o Holocausto;

10 - Enfim, Os monstros de Hitler é um indispensável documento, seja ao nos oferecer essa perspectiva específica e relevante do contexto do Terceiro Reich, seja para por em discussão o outro lado do misticismo e das cosmovisões - presentes não somente em alemães daquele tempo. Harari, por exemplo, vai dizer destas realidades intersubjetivas e do papel que desempenharam ao longo da história na colaboração humana (e em certa medida a adesão acéfala e acrítica de toda uma nação ao nazismo o comprova), visto que nos entendemos e nos reunimos por meio de estórias. Entretanto, não raro, tais estórias criam muros impenetráveis e levam à câmaras de gás, à fogueiras, à decapitações, etc... ou seja, tanto podem unir grupos como compeli-los ao abismo. Nesse sentido, o livro é um convite à racionalidade, embora em grande parte as pessoas abdiquem desta diante sua complexidade. O livro não explica o mito e a nossa busca por ele, mas sem dúvida alguma, demonstra que muitas vezes o fizemos e isso é mais que trágico de modo que a dissociabilidade da realidade empírica, nos é possível inferir, constitui-se ao longo dos séculos nosso grande risco existencial. Ademais, Kurlander, especialmente em seu epílogo lembra que nenhuma sociedade e nenhum povo está imune a este tipo de encantamento. Na verdade, em seu encerramento, Kulander nos faz um alerta quase em tom de profecia, pois "o renascimento do raciocínio sobrenatural, de teorias da conspiração obscuras, dos poderes extraterrestres e da onipresença de um outro etno-religioso visto como hostil começou a estabelecer uma correlação com convicções políticas e ideológicais iliberais, influenciando eleições". Os Estados Unidos estão nessa lembrança de Kurlander, e de certo modo, no Brasil também podemos perceber certas buscas pelo imaginário sobrenatural e religioso o que há muito deveria nos soar alertas. Como Kurlander lembra-nos "a verdade é que toda cultura possui seu próprio imaginário sobrenatural, que pode, em tempos de crise começar a tomar o lugar de argumentos mais empiricamente fundamentados e matizados sobre os desafios que definem da nossa realidade sociopolítica e geopolítica. O fato de ser sempre mais maleável, acessível e aberto ao raciocínio científico fronteiriço do que a religião tradicional e a ciência moderna torna o imaginário sobrenatural ainda mais perigoso e fácil de explorar". Cremos que esse alerta é justamente o que torna indispensável a leitura do livro e a tentativa de compreender os macanismos operados pelo imaginário sobrenatural na política e na cultura - a partir de como se deu no nazismo. Nossos tempos são de crise, a do capitalismo que pelo menos desde 2008 nos entrega gigantescas turbulências, a crise tecnológica nascida através de nossa invenção: a internet, entre outras crises. Mas essas duas, sem dúvida, raízes de um mundo que parece cada vez mais beber no sobrenatural (não que alguma vez o tivesse parado, os Estados Unidos, apropriando-se das questões fronteririças desde o pós-guerra bebe em buscas que parecem espelhar as buscas nazistas, o superhumano, as armas milagrosas, os gabinetes secretos da CIA, etc...) num renascimento potencialmente desastroso. Viver é muito perigiso, diria Guimarães Rosa, mas viver dissociado da realidade empírica é muito mais perigoso.

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