30° Festival É Tudo Verdade: “Ritas” é divertido e emocionante
textos de Leandro Luz “Já estou até vendo / Meu nome brilhando / E o mundo aplaudindo / Ao me ver cantar, ao me

textos de Leandro Luz
“Já estou até vendo / Meu nome brilhando / E o mundo aplaudindo / Ao me ver cantar, ao me ver dançar”. A Rita Lee de “Sucesso, Aqui Vou Eu”, música presente no álbum “Build Up” (1970), seu debut solo, ainda acompanhada de seus então colegas músicos d’Os Mutantes e sob a regência de Rogério Duprat, já mandava avisar que não nasceu, filha caçula de descendentes de imigrantes norte-americanos e italianos, para atender às antiquadas expectativas de seus familiares. Muito menos para ficar à mercê dos machinhos músicos que a expulsaram de sua própria banda ou da sociedade em geral que não conseguia engolir tranquilamente uma artista destemida e cáustica como ela. Pelo contrário, Rita Lee é e sempre foi sinônimo de sucesso.
Das inúmeras Ritas sobre as quais o filme dirigido por Oswaldo Santana e codirigido por Karen Harley (seja lá o que essa separação de créditos queira dizer em termos práticos) se debruça, todas são absolutamente intrigantes e geniais. O documentário que abriu o É Tudo Verdade na cidade de São Paulo e que encerrou a programação do mesmo festival no Rio de Janeiro propõe um passeio lisérgico e eufórico pela imensa trajetória da artista paulistana. Tal como uma esponja, o filme absorve para a sua proposta narrativa a principal característica da cantora e compositora: a sua capacidade ímpar de se desvencilhar do ordinário e de se reinventar inúmeras vezes como pessoa e como artista.
Divertido e emocionante, uma das escolhas mais acertadas de “Ritas” (2025) é fazer com que a sua personagem (ou as suas personagens, para sermos coerentes com a proposta) conte a sua própria história por si mesma, deixando de lado quaisquer intervenções caretas de depoimentos de terceiros a respeito de sua vida (Rita Lee jamais perdoaria algo nesta linha). À exemplo de alguns documentários brasileiros recentes, como é o caso do excelente “Luiz Melodia – No Coração do Brasil” (Alessandra Dorgan, 2024), vemos investido em “Ritas” esse protagonismo, sem que sejam necessárias grandes concessões. O diferencial é o fato das imagens de Rita já em sua fase final da vida nortearem o roteiro, sendo tão ou mais importantes do que as imagens de arquivo de um suposto “auge artístico do passado”.
Aliás, essa dimensão de que a velhice foi de fato o auge de sua vida, deixada bem evidente pela maneira como os diretores organizam o filme, é uma das mensagens mais importantes, transmitidas com bastante nitidez. Com uma montagem fluida que navega pela presença midiática massiva de Rita Lee através das décadas e pela rotina dos seus últimos anos, já aposentada e levando uma vida sossegada, repleta de sombra e água fresca ao lado de seu grande parceiro, Roberto de Carvalho, e de seus animais de estimação – ao menos três gatos e um cachorro -, somos impactados diversas vezes por registros como esses, gravados pela Rita com o seu próprio celular, sempre muito bem-humorados e com informações preciosas que revelam a maneira como a artista pensava e entendia o mundo naquele período.
Uma das rimas temáticas mais marcantes do filme é quando Rita fala de seus cabelos. Primeiro, a mudança do loiro para o ruivo, sendo o vermelho da tinta responsável por ilustrar a mudança da “menina boazinha” para a “mulher ousada” que se tornou, por trazer “o Sol na cabeça” – ela conta e canta com a melodia da canção de Lô Borges e Ronaldo Bastos. Mais a frente, Rita diz que agora ela tem “a Lua na cabeça”, ou seja, que é dona de uma espécie de serenidade nova para ela, propondo uma conexão diferente com o mundo. Prova de uma relação mística, própria da espiritualidade demonstrada por ela ao longo de toda uma vida. Ainda que seja ateia, afirma ela, a sua ligação com os mistérios do universo e com uma espécie de Deus transcendental, algo próximo de uma filosofia budista, é absolutamente importante. Na trilha sonora, uma escolha acertada dá o tom: “Estou no colo da mãe natureza / Ela toma conta da minha cabeça”, invade os ouvidos do espectador, que sedento pede mais, e não se contenta com pouco.
O respeito pela música é algo que gera um alívio para quem assiste ao documentário. São vários os momentos nos quais o filme se permite rodar longos minutos de trechos de canções, sejam eles em versões de estúdio ou retirados de icônicas apresentações ao vivo, como é o caso de “Mania de Você”, música interpretada ao lado de Roberto de Carvalho ao piano, importante para introduzir o tema do relacionamento reconhecidamente vibrante do casal. A troca de olhares, os calafrios e os suspiros de Rita são registrados com intensidade pela câmera, parte de um material de arquivo precioso e muito bem utilizado.
Rita Lee é retratada por meio de muitos contextos audiovisuais: shows ao vivo, programas de auditório, videoclipes e especiais feitos para a TV apresentam uma mulher em diálogo franco com o seu tempo e ao mesmo tempo à frente dele. Algumas dessas imagens são bastante conhecidas do público brasileiro, como a participação no Programa da Hebe e as entrevistas nas quais ela revela a sua incansável luta pelos direitos dos animais. Outras, em contrapartida, são achados preciosos que transformam o filme num item básico para qualquer pessoa que se interesse pela obra e pela trajetória de Rita Lee, à exemplo de suas participações em diversos programas humorísticos, filmes e talk shows encarnando personagens diversos e inusitados – a interpretação dela para uma colecionadora paranoica de discos do Caetano Veloso em “Durval Discos” (Anna Muylaert, 2002) é impagável.
Camaleoa, tal qual o seu grande ídolo, David Bowie, Rita Lee soube construir uma carreira de dar inveja a qualquer artista brasileiro. Da psicodelia tropicalista com Os Mutantes ao folk rock do Cilibrinas do Éden, que culminou no rock’n’roll absoluto da brilhante fase Tutti Frutti, passando pelo desbunde do “Refestança” (1977), sua parceria com Gilberto Gil, e pelo pop delicioso que a guiou do final dos anos 1970 até o seu último disco de estúdio, “Reza” (2012), Rita Lee fez o que quis e defendeu os seus valores com unhas e dentes. Tendo sempre o deboche como o seu principal aliado, Rita pintou e bordou nos palcos e fora dele – se entupiu de LSD e gravou um disco jamais lançado, foi presa injustamente enquanto estava grávida do seu primeiro filho, compôs o hino anti-drogas menos careta do Brasil, teve uma jaguatirica de estimação; essas e outras mil histórias malucas estão devidamente registradas no filme de Santana e Harley.
A obsessão de Rita Lee pela cultura pop é evidenciada pelos diversos desenhos guardados nos cadernos antigos, pelos bonequinhos que enfeitam a estante da sala, dentre outras bugigangas maravilhosas que ela acumulou durante toda uma vida. Sempre muito ativa no Twitter, Rita manteve uma proximidade enorme com os seus fãs mesmo após a aposentadoria. Publicou, como escritora, duas autobiografias de peso, notoriamente alinhadas ao seu modo de vida corajoso e debochado. “Ritas”, o documentário, certamente contribui e muito para a manutenção de um legado e para garantir que Rita Lee siga viva e gigante em nossa memória coletiva.
Leia mais sobre o Festival É Tudo Verdade
– Leandro Luz (@leandro_luz) pesquisa e escreve sobre cinema. Coordena a área de audiovisual do Sesc RJ, atuando na curadoria, programação e gestão de projetos em todo o estado do Rio de Janeiro. Exerce atividades de crítica no Scream & Yell e nos podcasts Tudo É Brasil, Plano-Sequência e 1 disco, 1 filme.