Por que a escrita de Luciany Aparecida é tão poderosa?

Depois do sucesso do romance 'Mata Doce', a baiana Luciany Aparecida se consagra como um dos principais nomes da literatura brasileira

Abr 15, 2025 - 23:10
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Por que a escrita de Luciany Aparecida é tão poderosa?

Foi debaixo de uma árvore, sob o sol do meio-dia e a sombra das folhas, que a escritora Luciany Aparecida decidiu escrever Mata Doce (Alfaguara, 2023). Ela estava acompanhada do tio octogenário no pátio da casa da família, em uma comunidade rural na região do Vale do Rio Jiquiriçá, na Bahia.

Luciany teve uma epifania: aquela árvore tinha testemunhado tanto a sua infância quanto a do tio. “Tio, o que o senhor já viu aqui embaixo quando era criança?”, perguntou. “Vi Mané da Gaita”, respondeu ele.

“Era um tocador de gaita, sem uma perna, que usava uma muleta e que ainda carregava a tábua onde vendia doce quebra-queixo. Achei maravilhoso, eram muitos elementos. Anotei”, conta a autora à CLAUDIA.

Foi criando um mundo para Mané da Gaita que Luciany inventou sua protagonista, Maria Teresa, e as suas mães, Mariinha e Tuninha, habitantes do povoado ficcional de Mata Doce. O livro venceu o prestigiado Prêmio São Paulo de Literatura, em 2024, na categoria de melhor romance.

A distinção soma-se ao sucesso de crítica e recepção entre leitores, consagrando a autora como um dos principais nomes da literatura brasileira contemporânea. “O prêmio traz uma visibilidade importante para o livro. Fico feliz com a possibilidade de que Mata Doce ganhe mais pessoas leitoras”, comenta sobre a vitória.

Além dela, a escritora gaúcha Eliane Marques também venceu, na categoria de melhor romance de estreia com Louças de Família (Autêntica Contemporânea). São duas mulheres negras garantindo um dos principais reconhecimentos literários em língua portuguesa. “É muita novidade pensar que mulheres e, mais ainda,  mulheres negras ganham os prêmios literários”, comenta.

A natureza é inspiração para os escritos de Luciany Aparecida

Mata Doce é livro reconhecido no Brasil
Luciany Aparecida traz a natureza para seus escritosLarissa Queiroz e Ana Reis/Divulgação
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Toda a história de Mata Doce é repleta de elementos mágicos. A começar pelo próprio personagem de Mané da Gaita, que permanece por gerações no entorno do casarão das mães da protagonista, como um ser eterno, sem idade.

O mesmo ocorre com a personagem da cadela Chula. Ela ultrapassa qualquer ideia científica de longevidade canina. Não é por acaso que a epígrafe escolhida para o seu livro, de Carlos Drummond de Andrade, diz: “Mas tens um cão”.

O encantamento provocado por Chula, por exemplo, borra as fronteiras entre o real e o fantástico. É um traço orgânico na sua escrita porque está presente na vida da autora desde sempre.

“O contato com a natureza ampliou minha imaginação. Não é impossível, na visão da minha comunidade rural, uma cadela com muitos anos como a Chula. Não seria um mistério, seria normal. A melhor parte da minha biografia é ser baiana e ser baiana do Vale do Jiquiriçá”, explica.

Luciany está radicada em São Paulo desde agosto de 2024. Doutora em Letras pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB), ela é professora do Programa de Pós-Graduação em Literatura e Crítica Literária da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).

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Mesmo morando na capital paulista, ela retorna à região onde nasceu e cresceu sempre que possível. Lá, encontra a paisagem que inspira Mata Doce. Quem lê o romance consegue enxergar sua geografia pessoal.

“A paisagem é muito parecida. O Vale do Jiquiriçá é uma área de transição entre a Mata Atlântica e a Caatinga. A Caatinga, aliás, só existe no Brasil. Na literatura, pensar a Caatinga é pensar o sertão, ficou uma imagem muito homogeneizada. Como é uma área de transição entre biomas,  tem trechos bem secos e trechos com vegetação e cachoeira. Lá os dois ambientes convivem”, explica.

Para a autora, ter crescido em contato com a natureza foi um privilégio porque moldou sua relação com a vida e com a passagem do tempo. “Quando escrevo, as palavras que escolho dizem sobre meu entender do mundo a partir do quanto aquela geografia me impactou, me trouxe medos, me excitou, me acalmou”, diz Luciany. 

A natureza também influenciou sua imaginação. “A noite, por exemplo, tem outro mistério. Se eu saio de dentro de casa para ir buscar folha de chá, no escuro, sem energia elétrica, com estrelas no céu, vejo a sombra da árvore. Ao voltar para a cozinha iluminada por candeeiro, conto essa história. Isso é narrativa. É totalmente diferente sair da sala para a cozinha, pegar uma caixa de chá e tirar um sachê”, compara. 

A escritora acredita na importância de apresentar as mulheres negras sob outras perspectivas

Luciany Aparecida fala sobre sua relacao com a escrita
Luciany Aparecida tem escrita profunda e traz complexidade para a literatura brasileiraLarissa Queiroz e Ana Reis/Divulgação
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A protagonista de Mata Doce é Maria Teresa, uma jovem negra que aprendeu a datilografar graças ao esforço das mães para pagar um curso na cidade mais próxima. Maria Teresa ganha uma máquina de escrever do noivo, Zezito.

Com ela, escreve diligentemente as cartas ditadas pela comunidade. “Coloco esse registro por não ver mulheres negras retratadas com a máquina de escrever, mas com a enxada na mão. Não que seja ruim, mas me interessava trazer outra possibilidade”, diz. 

Ela própria aprendeu a datilografar, fazendo um curso na casa de uma professora. “Quando estava dos 17 para os 18 anos, decidi juntar tudo que tinha escrito como diário e bater na máquina. Não tinha computador, nem existia no meu meio. Mas tinha uma amiga que tinha uma máquina de escrever verde, aquelas com uma malinha. Fui na casa dela, pedi emprestado e escrevi três livros assim”, relembra. 

Por isso, quando Luciany ganhou seu “primeiro dinheiro na literatura”, ao vencer um edital da Biblioteca Nacional, em 2012, tentou comprar a máquina da amiga, mas não conseguiu. “Depois ganhei uma de presente. Uma pessoa muito querida sabia dessa história e me deu uma muito parecida”, conta. 

Não é coincidência, portanto, que Maria Teresa é a narradora da história. Ela narra sobretudo em terceira pessoa. Mas a personagem acaba se revelando em certas passagens, um dos recursos literários criativos usados por Luciany para criar o efeito estético que encanta quem lê.

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“Eu estava escrevendo o livro inteiro em terceira pessoa. De repente, essa voz narrativa fala ‘nós’. Parei de escrever, fiquei duas semanas sem escrever. Foi numa sessão de análise que entendi. Conversando com a analista percebi que não era uma narração em terceira pessoa. Era Maria Teresa, aos 92 anos, no casarão, datilografando sua própria história”, revela.

Luciany Aparecida acredita no valor de contar historias que são relegadas

Luciany Aparecida escreveu livro Mata Doce
A escritora Luciany Aparecida traz personagens que vivem a vulnerabilidade social para suas históriasLarissa Queiroz e Ana Reis/Divulgação

A história de Maria Teresa começa a ser contada a partir de sua transformação em Filhinha Mata-Boi. A mudança ocorre após o trauma de testemunhar o assassinato do noivo Zezito. Ele foi morto pelo fazendeiro que domina a região com uso da força. Inaugurando seu vestido de noiva, ela tenta socorrê-lo. Para a escritora, a mudança de nome da personagem está ligada à memória e ao trauma.

“Eu escrevo em diálogo com a história, amo essa relação. Se pensarmos nas mulheres negras que viveram no Brasil no sistema escravista, as que foram sequestradas e trazidas, a primeira ação delas era a de serem renomeadas. Aquelas que conseguiam recompor a vida após o escravismo, já em liberdade, se renomeavam novamente”, explica.

O romance de Luciany é profundo e belo. Já apontado como épico é, na visão da autora, uma história de amor. Maria Teresa tem duas mães adotivas, Mariinha e Tuninha. As três habitam o casarão da comunidade. A construção é acompanhada por um roseiral de flores brancas. Mulheres negras ocupando o casarão também é algo que guarda simbologia. Afinal, esses espaços são comumente ocupados por famílias brancas e ricas. 

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Tuninha é uma mulher trans. A escritora foi muito sensível ao elaborar a personagem. “Apenas pensei que era esse o normal. Duas mulheres se amarem e adotarem uma criança”, diz. Assim, Luciany teve o cuidado de não fazer com que Tuninha fosse abordada como algo exótico.

“Não é o fato de ela ser travesti que importa, mas o fato de ser bordadeira e de viver em uma vulnerabilidade social tão grande que chegou naquela idade sem os óculos de grau que precisava”, diz. “A filha só tem um encontro com o corpo da mãe travesti, no luto, no momento final de sua vida”, explica Luciany.

Luciany cresceu em um lar de leitores. Por isso, a literatura está presente na sua vida muito antes da formação acadêmica na área de Letras. Ao longo de Mata Doce, a escritora plantou uma série de referências culturais e intelectuais importantes na sua formação.

É o caso de Úrsula (1859), da maranhense Maria Firmina dos Reis (1822-1917), romance considerado o primeiro escrito por uma mulher no país, e da figura de Manuel Querino (1851-1922), intelectual baiano que valorizou a cultura afro-brasileira. 

Acima do referencial, Luciany desejava mesmo sensibilizar por meio da literatura. “Queria que as pessoas leitoras pudessem amar aquilo que elas estavam lendo.” 

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