10 Considerações sobre Uma visão pálida das colinas, de Kazuo Ishiguro ou olhar para o que não está visível...
O Blog Listas Literárias leu Uma visão pálida das colinas, de Kazuo Ishiguro publicado pela Companhia das Letras; neste post as 10 considerações de Douglas Eralldo sobre o livro ou sobre a importância de olhar para as coisas que não estão visíveis, confira:1 - Publicado originalmente em 1982, Uma visão pálida das colinas é o romance de estréia da Kazuo Ishiguro na literatura, uma estréia que embora mais silenciosa que as obras que o catapultaram ao Nobel de Literatura, já aqui reunindo algo relevante na leitura de suas obras: a necessidade do leitor olhar para além do que nossos olhos apontam, a necessidade de mergulhar em camadas as quais não há nada transparente, devido às sutilezas criadas pelo autor cujo grande sentido está longe das imagens primeiras que nos entrega, já que sua lente é fosca e carregada de pequenas insinuações;2 - Neste, de modo mais simplificado, temos a narração memorialística de uma mulher que desdobra o romance em dois tempos: o seu passado em uma Nagasaki do pós-guerra e do pós bomba e que lida com seus monstros e pesadelos durante o processo de reconstrução da cidade e o presente, com Etsuko-San, a narradora, em uma cidade interiorana da Inglaterra, não sem seus novos monstros e um vida cuja ruptura é certa, mas não ao todo revelada, cabendo ao leitor preencher as lacunas deixadas por Etsuko;3 - E aqui temos uma questão relevante ao menos a este leitor. Assim como a relação da narradora com o mundo e com as coisas traz alguma perda, assim também ocorre conosco. Fica-se com a sensação permanente de ter deixado algo para trás no decorrer da leitura - o que cria o efeito de revisitar. É como se não compreendessemos na plenitude o que o romance que nos desvelar. Isso porque, em grande medida, a narração é marcada por certo anticlímax. As memórias de Etsuko-San ao mesmo tempo que parecem nos levar a algum ato ou ação catártica, ao cabo, sucedem-se sem sobressaltos espalhafatosos, tanto que a cena final deixa-nos boquiabertos, está bem, mas era isso? O que eu perdi?4 - Na narração do passado temos Etsuko-San prestes a dar à luz sua filha. Moradora de um pequeno condomínio burguês de prédios ela ali vive com Jiro, seu esposo, um tradicional workaholic e em grande parte com a visita do sogro, Ogata-San, um professor aposentado cujo olhar voltasse para as mudanças, especialmente seu olhar negativo para a ocidentalização norte-americana em processo. Nesse passado, Etsuko inicia amizade com uma estranha mulher que vai morar numa casa pobre em cuja colina avista de sua janela. Em suas memórias a relação conturbada e misteriosa com Sachiko, mãe da pequena Mariko. Percebemos que há na narradora certo olhar crítico paras as ações incertas da amiga, curiosamente ações que nos parecerão de algum modo espelhadas pela narração do futuro, de tal modo que a lembrança dessa mulher e sua filha é como se fosse certo precesso de culpa;5 - Ocorre que na narração do futuro, do pouco que sabemos, o fato de que Etsuko e as filhas moram na Inglaterra numa situação familiar marcada por desencontros. Sabemos que por alguma razão que não nos é esclarecida, Jiro ficou no passado, assim como seu segundo marido. Na narração presente, Etsuko e a filha convivem por algum tempo novamente enquanto trazem à luz uma grande ferida familiar. Nesse sentido, há na Etsuko do presente as reminiscências da mulher que morava na colina;6 - Mas tudo isso precisará ser tecido pelos leitores, porque em grande parte as relações e os acontecimentos são insinuados. Precisamos buscar em cada entrelinha do romance suas questões nevrálgicas e traumáticas. Trata-se de um romance que inferir a partir dos não-ditos, ou dos ditos camuflados, suas principais questões. Certamente isto casa com a questão cultural e a própria identidade japonesa de Etsuko-San alicerçada em subterfúgios e acordos implícitos;7 - Além disso, essa atmosfera marcada pelo implícito e pelos subterfúgios apresenta-nos a aspectos que encontramos em outras leituras nossas de Ishiguro. Há em sua narração uma espécie de névoa onírica, como se suas narrativas estivessem encobertas pelos sonhos, pelos suspenses ou por alguma dimensão sobrenatural. E não queremos dizer que trata-se de fantástico ou fantasia, pelo contrário, este, inclusive mais realista que obras como Não me abandone jamais ou O gigante enterrado. Ainda assim, sobre ele paira certa aura de suspense, certa atmosfera fantasmagórica. Isso parece-nos mais presente na narração do passado, mas não de todo sumida na narração presente. É como se num plano paralelo, os fantasmas de Etsuko estivessem a um toque;8 - Ocorre que, então, todo esse anticlímax, essa construção de uma tensão que por fim não desagua numa ação catártica confere à narrativa todo o estranhamento que lhe confere status de literatura. Seja nos diálogos mais banais, seja nas entrelinhas dos não-ditos, seja da narração ou entre personagens, vamos sendo tomados por essa sensação de estranheza no decorrer da leitura que culmina com o espanto da cena fina

O Blog Listas Literárias leu Uma visão pálida das colinas, de Kazuo Ishiguro publicado pela Companhia das Letras; neste post as 10 considerações de Douglas Eralldo sobre o livro ou sobre a importância de olhar para as coisas que não estão visíveis, confira:
1 - Publicado originalmente em 1982, Uma visão pálida das colinas é o romance de estréia da Kazuo Ishiguro na literatura, uma estréia que embora mais silenciosa que as obras que o catapultaram ao Nobel de Literatura, já aqui reunindo algo relevante na leitura de suas obras: a necessidade do leitor olhar para além do que nossos olhos apontam, a necessidade de mergulhar em camadas as quais não há nada transparente, devido às sutilezas criadas pelo autor cujo grande sentido está longe das imagens primeiras que nos entrega, já que sua lente é fosca e carregada de pequenas insinuações;
2 - Neste, de modo mais simplificado, temos a narração memorialística de uma mulher que desdobra o romance em dois tempos: o seu passado em uma Nagasaki do pós-guerra e do pós bomba e que lida com seus monstros e pesadelos durante o processo de reconstrução da cidade e o presente, com Etsuko-San, a narradora, em uma cidade interiorana da Inglaterra, não sem seus novos monstros e um vida cuja ruptura é certa, mas não ao todo revelada, cabendo ao leitor preencher as lacunas deixadas por Etsuko;
3 - E aqui temos uma questão relevante ao menos a este leitor. Assim como a relação da narradora com o mundo e com as coisas traz alguma perda, assim também ocorre conosco. Fica-se com a sensação permanente de ter deixado algo para trás no decorrer da leitura - o que cria o efeito de revisitar. É como se não compreendessemos na plenitude o que o romance que nos desvelar. Isso porque, em grande medida, a narração é marcada por certo anticlímax. As memórias de Etsuko-San ao mesmo tempo que parecem nos levar a algum ato ou ação catártica, ao cabo, sucedem-se sem sobressaltos espalhafatosos, tanto que a cena final deixa-nos boquiabertos, está bem, mas era isso? O que eu perdi?
4 - Na narração do passado temos Etsuko-San prestes a dar à luz sua filha. Moradora de um pequeno condomínio burguês de prédios ela ali vive com Jiro, seu esposo, um tradicional workaholic e em grande parte com a visita do sogro, Ogata-San, um professor aposentado cujo olhar voltasse para as mudanças, especialmente seu olhar negativo para a ocidentalização norte-americana em processo. Nesse passado, Etsuko inicia amizade com uma estranha mulher que vai morar numa casa pobre em cuja colina avista de sua janela. Em suas memórias a relação conturbada e misteriosa com Sachiko, mãe da pequena Mariko. Percebemos que há na narradora certo olhar crítico paras as ações incertas da amiga, curiosamente ações que nos parecerão de algum modo espelhadas pela narração do futuro, de tal modo que a lembrança dessa mulher e sua filha é como se fosse certo precesso de culpa;
5 - Ocorre que na narração do futuro, do pouco que sabemos, o fato de que Etsuko e as filhas moram na Inglaterra numa situação familiar marcada por desencontros. Sabemos que por alguma razão que não nos é esclarecida, Jiro ficou no passado, assim como seu segundo marido. Na narração presente, Etsuko e a filha convivem por algum tempo novamente enquanto trazem à luz uma grande ferida familiar. Nesse sentido, há na Etsuko do presente as reminiscências da mulher que morava na colina;
6 - Mas tudo isso precisará ser tecido pelos leitores, porque em grande parte as relações e os acontecimentos são insinuados. Precisamos buscar em cada entrelinha do romance suas questões nevrálgicas e traumáticas. Trata-se de um romance que inferir a partir dos não-ditos, ou dos ditos camuflados, suas principais questões. Certamente isto casa com a questão cultural e a própria identidade japonesa de Etsuko-San alicerçada em subterfúgios e acordos implícitos;
7 - Além disso, essa atmosfera marcada pelo implícito e pelos subterfúgios apresenta-nos a aspectos que encontramos em outras leituras nossas de Ishiguro. Há em sua narração uma espécie de névoa onírica, como se suas narrativas estivessem encobertas pelos sonhos, pelos suspenses ou por alguma dimensão sobrenatural. E não queremos dizer que trata-se de fantástico ou fantasia, pelo contrário, este, inclusive mais realista que obras como Não me abandone jamais ou O gigante enterrado. Ainda assim, sobre ele paira certa aura de suspense, certa atmosfera fantasmagórica. Isso parece-nos mais presente na narração do passado, mas não de todo sumida na narração presente. É como se num plano paralelo, os fantasmas de Etsuko estivessem a um toque;
8 - Ocorre que, então, todo esse anticlímax, essa construção de uma tensão que por fim não desagua numa ação catártica confere à narrativa todo o estranhamento que lhe confere status de literatura. Seja nos diálogos mais banais, seja nas entrelinhas dos não-ditos, seja da narração ou entre personagens, vamos sendo tomados por essa sensação de estranheza no decorrer da leitura que culmina com o espanto da cena final a reforçar, mas enfim, o que perdemos pelo caminho?
9 - Nesse sentido, vale dizer que leitores que buscam por narrativas mais explícitas ou mais agitadas poderão se entediar com a narrativa. É preciso disposição e paciência para atravessar a perigosa calmaria da superfície do romance. Mas ao atravessá-la nos depararemos com as pequenas e horrendas tragédias humanas que ao cabo nos é a nossa grande tragédia. A banalidade da existência e das coisas é tocada pela narração um tanto poética ao mesmo tempo que ns mostra as tantas escolhas trágicas que fazemos, os "e ses" que se abrem e por aí vai;
10 - Enfim, Uma visão pálida das colinas pode parecer leitura mansa - e para alguns, sem sentido, mas não se engane, trata-se de água profunda e perigosa. Com uma camada de névoa etérea o romance de Ishiguro nos leva a lugares incômodos da alma humana. De certa forma o romance nos reforça a natureza estranha da própria existência e nos lembra que nossos fantasmas acompanham-nos a uma distância muito próxima.