Síndrome do vídeo de casamento toma conta da transmissão do funeral do Papa

“É o pior momento, porque nada acontece!”, certa vez disse para mim um videomaker de cerimonias de casamento sobre os minutos da liturgia e da comunhão dos noivos diante do padre. A edição e montagem tem que ser criativa nesse momento para o vídeo não ser enfadonho. Mas para uma instituição de 2000 anos, é o momento simbolicamente mais importante. Mas na linguagem audiovisual não existe o simbólico. Apenas o instante e o simultâneo. A cobertura televisiva ao vivo do funeral do Papa Francisco também se ressentiu dessa “síndrome do vídeo do casamento”: se cada plano era rico em simbolismos e significados, foram esvaziados por uma abordagem bipolar: ou narrar estritamente o que já estávamos vendo ou ativar o clichê do “povo fala” e colocar em ação o “emocionômetro” de repórteres em busca de personagens que dessem a medida de “emoção” de cada momento. Pior do que a perda de qualquer curiosidade informativa, foi a estratégia semiótica da “ideogenia” – retirar do legado do Papa qualquer expressão materialista incômoda e substituir por clichês do neoliberalismo progressista: desigualdade, vulneráveis etc. Sabemos que na Liturgia Católica, os símbolos e as ações simbólicas desempenham um papel crucial, expressando a fé e a presença de Deus. Objetos como a cruz, o círio pascal, as vestimentas com diferentes cores, além de gestos como o sinal da cruz, a procissão e a incensação, transmitem significados profundos e são usados para celebrar e vivenciar os mistérios da fé. Ao contrário, a linguagem televisiva é avessa a alegorias, metáforas e simbolismos. É essencialmente metonímica: pura ação, dessimbolizada, como um fim em si mesma que se esgota no presente, na instantaneidade e simultaneidade. A linguagem televisiva contra a constante dispersão da atenção do espectador. Por isso, sempre foi complicada as relações entre a Igreja Católica e a TV. Principalmente desde o surgimento dos então chamados “pastores eletrônicos” – de Rex Humbard a Billy Graham nos EUA aos pastores evangélicos que surgiram na TV nos 80 e 90 no Brasil, exibindo cultos dessimbolizados, performáticos, barulhentos e histéricos. Esse evangelismo eletrônico compreendeu rápido a linguagem metonímica da TV. Privilegiam o improviso, ao contrário da repetição ritual litúrgica dos católicos. TVs católicas como a TV Aparecida resignaram-se a ser mídia doutrinária de nicho, com uma linguagem cujos eventos litúrgicos se resumem basicamente dois planos de câmera: um plano americano no padre fazendo a homilia, alternado com plano geral na plateia de fiéis orando. Eventualmente, um close em algum rosto orando com mais fervor... Certa vez esse humilde blogueiro conversou com um videomaker e fotógrafo de eventos que vão desde corporativos a solenidades como casamentos e festas. Era começo dos anos 1990 e eu tinha sido convidado para lecionar em um Seminário católico, como professor de Comunicação Social, dentro de uma política pastoral católica de formar padres com noções sobre as tecnologias da comunicação – naquele momento a Igreja estava preocupada com o avanço do “evangelismo eletrônico” pentecostal nas TVs brasileiras. Curioso sobre a transformação em vídeo da solenidade e formalidade do ritual católico do casamento, perguntei para ele sobre detalhes técnicos. O profissional foi claro e direto: enquanto há coisas acontecendo como a chegada da noiva, dos padrinhos e os planos descritivos da igreja e do altar tudo bem. O problema começa depois da subida dos noivos no altar e o padre inicia a celebração eucarística e toda a liturgia das palavras, citações bíblicas e homilia. “Nada acontece!”, disse ele. “Temos apenas os noivos parados olhando para o padre”, completou. E descreveu os tipos de recursos de edição que aplica para tornar mais dinâmico ou, pelo menos, através da edição e montagem, dar uma sensação de que “coisas estão acontecendo”. É paradoxal. Para o videomaker é a parte da cerimônia em que “nada acontece”. Enquanto para a cerimônia, é quando tudo acontece:  da liturgia das palavras, passando pela benção nupcial até a comunhão. O problema, do ponto de vista da linguagem audiovisual, é que é o momento em que o casal entra no plano do simbólico, suspendendo o dinamismo metonímico. Tudo corre o risco de ficar chato e entediante. A Síndrome e o Emocionômetro Isso é o que este blogueiro define como síndrome do vídeo de casamento: o terror da linguagem televisiva pela chatice do simbólico, que pode ser o gatilho do efeito zapping no espectador – pular de um canal para o outro aleatoriamente. Pois não é que a cobertura televisiva ao vivo do funeral do Papa nesse último sábado, acabou incorrendo nos mesmos sintomas descritos por aquele videomaker nos distantes anos 1990? Do discurso e oração do mestre das celebrações litúrgicas pontificiais (arcebispo Diego Ravelli), passando pela cerimônia do fechamento do caixão e o trajeto de 5,5 quilômetros até a Basílica de Santa Maria Maggiore, no enterro em cerimônia privada, não faltaram expressões exul

Abr 29, 2025 - 01:14
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Síndrome do vídeo de casamento toma conta da transmissão do funeral do Papa


“É o pior momento, porque nada acontece!”, certa vez disse para mim um videomaker de cerimonias de casamento sobre os minutos da liturgia e da comunhão dos noivos diante do padre. A edição e montagem tem que ser criativa nesse momento para o vídeo não ser enfadonho. Mas para uma instituição de 2000 anos, é o momento simbolicamente mais importante. Mas na linguagem audiovisual não existe o simbólico. Apenas o instante e o simultâneo. A cobertura televisiva ao vivo do funeral do Papa Francisco também se ressentiu dessa “síndrome do vídeo do casamento”: se cada plano era rico em simbolismos e significados, foram esvaziados por uma abordagem bipolar: ou narrar estritamente o que já estávamos vendo ou ativar o clichê do “povo fala” e colocar em ação o “emocionômetro” de repórteres em busca de personagens que dessem a medida de “emoção” de cada momento. Pior do que a perda de qualquer curiosidade informativa, foi a estratégia semiótica da “ideogenia” – retirar do legado do Papa qualquer expressão materialista incômoda e substituir por clichês do neoliberalismo progressista: desigualdade, vulneráveis etc.

Sabemos que na Liturgia Católica, os símbolos e as ações simbólicas desempenham um papel crucial, expressando a fé e a presença de Deus. Objetos como a cruz, o círio pascal, as vestimentas com diferentes cores, além de gestos como o sinal da cruz, a procissão e a incensação, transmitem significados profundos e são usados para celebrar e vivenciar os mistérios da fé.

Ao contrário, a linguagem televisiva é avessa a alegorias, metáforas e simbolismos. É essencialmente metonímica: pura ação, dessimbolizada, como um fim em si mesma que se esgota no presente, na instantaneidade e simultaneidade. A linguagem televisiva contra a constante dispersão da atenção do espectador.

Por isso, sempre foi complicada as relações entre a Igreja Católica e a TV. Principalmente desde o surgimento dos então chamados “pastores eletrônicos” – de Rex Humbard a Billy Graham nos EUA aos pastores evangélicos que surgiram na TV nos 80 e 90 no Brasil, exibindo cultos dessimbolizados, performáticos, barulhentos e histéricos. Esse evangelismo eletrônico compreendeu rápido a linguagem metonímica da TV. Privilegiam o improviso, ao contrário da repetição ritual litúrgica dos católicos.

TVs católicas como a TV Aparecida resignaram-se a ser mídia doutrinária de nicho, com uma linguagem cujos eventos litúrgicos se resumem basicamente dois planos de câmera: um plano americano no padre fazendo a homilia, alternado com plano geral na plateia de fiéis orando. Eventualmente, um close em algum rosto orando com mais fervor...



Certa vez esse humilde blogueiro conversou com um videomaker e fotógrafo de eventos que vão desde corporativos a solenidades como casamentos e festas. Era começo dos anos 1990 e eu tinha sido convidado para lecionar em um Seminário católico, como professor de Comunicação Social, dentro de uma política pastoral católica de formar padres com noções sobre as tecnologias da comunicação – naquele momento a Igreja estava preocupada com o avanço do “evangelismo eletrônico” pentecostal nas TVs brasileiras.

Curioso sobre a transformação em vídeo da solenidade e formalidade do ritual católico do casamento, perguntei para ele sobre detalhes técnicos. O profissional foi claro e direto: enquanto há coisas acontecendo como a chegada da noiva, dos padrinhos e os planos descritivos da igreja e do altar tudo bem. O problema começa depois da subida dos noivos no altar e o padre inicia a celebração eucarística e toda a liturgia das palavras, citações bíblicas e homilia.

“Nada acontece!”, disse ele. “Temos apenas os noivos parados olhando para o padre”, completou. E descreveu os tipos de recursos de edição que aplica para tornar mais dinâmico ou, pelo menos, através da edição e montagem, dar uma sensação de que “coisas estão acontecendo”.



É paradoxal. Para o videomaker é a parte da cerimônia em que “nada acontece”. Enquanto para a cerimônia, é quando tudo acontece:  da liturgia das palavras, passando pela benção nupcial até a comunhão. O problema, do ponto de vista da linguagem audiovisual, é que é o momento em que o casal entra no plano do simbólico, suspendendo o dinamismo metonímico. Tudo corre o risco de ficar chato e entediante.

A Síndrome e o Emocionômetro

Isso é o que este blogueiro define como síndrome do vídeo de casamento: o terror da linguagem televisiva pela chatice do simbólico, que pode ser o gatilho do efeito zapping no espectador – pular de um canal para o outro aleatoriamente.

Pois não é que a cobertura televisiva ao vivo do funeral do Papa nesse último sábado, acabou incorrendo nos mesmos sintomas descritos por aquele videomaker nos distantes anos 1990?

Do discurso e oração do mestre das celebrações litúrgicas pontificiais (arcebispo Diego Ravelli), passando pela cerimônia do fechamento do caixão e o trajeto de 5,5 quilômetros até a Basílica de Santa Maria Maggiore, no enterro em cerimônia privada, não faltaram expressões exultantes como “evento histórico”, “Papa jesuíta", “o papa do povo”, “o último adeus ao papa que mudou a Igreja” etc.

O que impressiona na transmissão ao vivo de um evento cercado de significados e rico em simbolismos presentes em cada plano de câmera, é a inacreditável cobertura jornalística bipolar: ou a narração apenas descrevia aquilo que já estávamos vendo, ou repórteres como Bianca Routhier, Rodrigo Carvalho e Murilo Salviano acionavam uma espécie de “emocionômetro”: quais foram ou estavam sendo os momentos “mais emocionantes” e repassando a prospecção da emoções ao público que se aglomerava nas ruas de Roma. Principalmente turistas brasileiros.



Até a cobertura da Globo contava com um especialista, um padre que tentava uma brecha para explicar ritos e simbolismos. A última tentativa foi sobre os significados sobre os diferentes timbres e badalos dos símbolos. Para depois ser esquecido no “emocionante” trajeto pelas ruas de Roma.

O que impressiona não é tanto a absoluta falta curiosidade informativa sobre significados de uma instituição de aproximadamente 2000 anos. Mas unicamente a tentativa de reportar a torrente de emoções que supostamente irradiaria da multidão.

Aliás, é um modus operandi: para a mídia, da sociedade brotariam continuamente opiniões e emoções. Que são homogeneizadas para serem quantificadas nos números das pesquisas de opinião ou no “emocionômetro” informal dos repórteres insistentes: “o que você está sentindo?”.

Mas de que tipo de “emoção” estão falando. Aquelas das selfies (que, aliás, criavam situações inusitadas entre o mar de smartphones erguidos ao longo do trajeto do caixão papal) que criam uma percepção histórica descartável? Do turista que procura “emoções-choque” para fazer valer a pena a viagem? Da sensação de estar fazendo parte de em evento midiático? Do frisson de estar ao vivo na TV?

E toca a manjada pauta do “povo fala”, com entrevistados visivelmente carregando nas cores da emoção para a câmera. Para agradar o repórter e, quem sabe, esticar a entrevista. Transformar-se num “personagem”.

Em termos de linguagem, reparava-se o esforço da transmissão ao vivo de tornar o evento telegênico – o correspondente televisivo da “fotogenia” na fotografia. Quando a narrativa se tornava muito extensa, como quando o cardeal italiano Giovanni Batista fazia o discurso sobre o legado do Papa, quando acontecia a cerimônia de fechamento do caixão ou o especialista se esmerava na explanação sobre os significados simbólicos, corte para o “emocionômetro” dos repórteres na multidão.


Tanta torrente emocional tem que transbordar para os próprios repórteres, acostumados que estão a ser menos testemunhas dos fatos do que protagonistas da informação. Seja César Tralli dizendo “Ouvi de uma jovem voluntária de 15 anos, que estava ajudando idosos no funeral do Papa, uma frase que me marcou: ‘Não é sobre religião. É sobre ter amor no coração’. Bom domingo, boa semana e muito obrigado pela companhia”.

Seja a repórter dos telhados de Roma, Ilze Scamparini, relembrando o encontro com o Papa e a emoção da resposta em uma entrevista sobre gays (“quem sou eu para julgar”): “Ainda sinto um impacto no meu sistema nervoso”, afirmou a jornalista.

Enquanto isso, acompanhamos imagens que não são explicadas, mas apenas descritas estritamente somente o que estamos já vendo. Esse é o jornalismo tautista (tautologia + autismo midiático).

O legado ideogênico do Papa

Mas as coisas não se restringem apenas à adaptação telegênica da transmissão ao vivo sob a síndrome do vídeo de casamento. É também necessário tornar o Papa ideogênico.

Vez ou outra, a retórica do Papa Francisco tornava-se incomodamente materialista. Falava em pobres, empobrecidos e excluídos. Claramente, optou por um papado que se preocupava com a condições de empobrecidos e a sua impotência diante do “sistema que produz a morte”.


Embora a grande mídia tenha feito o obituário do Papa caracterizando-o como “progressista” ou “o Papa que mudou a Igreja”, conseguia ressignificar seu discurso para coincidir com o viés do neoliberalismo progressista da grande mídia Ocidental.

De repente, expressões materialistas como “pobres” ou “empobrecidos” usadas pelo pontífice (expressões perigosas, porque implicam na compreensão de um processo perverso de criação da desigualdade – vulgo, “luta de classes”), são substituídas por “desiguais” ou “vulneráveis” – “O papa que acolheu pessoas vulneráveis”; "Sempre ao lado dos vulneráveis", "guiado pela humildade”; “Papa Francisco fez história ao combater desigualdades” e assim por diante.

Mas o Papa chegou a esse diagnóstico não por uma compreensão racional ou analítica da realidade. Mas tudo porque o Papa é “empático”, “inclusivo” etc. Porque se preocupa com os “desiguais” assim como com os “doentes” – alguém é pobre e excluído não pela própria dinâmica da criação de valor e riqueza, mas porque tem gente que nasceria assim... desigual!

Em síntese: telegenia e ideogenia recriaram a realidade de uma transmissão ao vivo. Para uma linguagem televisiva que, quando tem que cobrir um evento de uma instituição de 2000 anos, ressente-se da síndrome do vídeo de casamento.


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