Série 'O Eternauta': os latino americanos sabem muito bem o que é ser invadido
Era mais uma noite de verão despretensiosa em Buenos Aires, quando de repente cai uma forte nevasca. Porém, mortal: aqueles flocos brancos e fofos são tóxicos e matam imediatamente em contato direto com a pele. A energia acaba, celulares perdem o sinal e os sobreviventes ficam incomunicáveis, isolados em suas residências. Um dos poucos sobreviventes é Juan Salvo (Ricardo Darín), um homem de meia-idade e cabelos grisalhos que veste uma máscara de gás e um casaco pesado impermeável e se aventura pela capital decadente em busca de pessoas para salvar. Mas a nevasca é apenas o primeiro passo de uma invasão. Baseado na lendária HQ argentina de 1957, a série Netflix “O Eternauta” (2025-) transforma um típico subgênero Hollywoodiano em uma alegoria verdadeira de um continente que historicamente sofreu invasões, sejam colonialistas ou golpes militares. É sempre bem-vindo uma produção de ficção científica latino-americana que bota a colher nesse subgênero. Afinal, temos conhecimento de causa. Sabemos muito bem o que é ser realmente invadido por forças alienígenas. Desde que as aranhas mecânicas marcianas invadiram a cidade de Nova York em 1937 na famosa transmissão radiofônica de Orson Welles pela emissora CBS, numa versão do livro clássico “Guerra dos Mundos”, que trouxe pânico para toda Costa Leste, os EUA ficaram obcecados pela ideia de serem invadidos por qualquer tipo de inimigo externo: alienígenas, comunistas, nazistas, terroristas, monstros etc. A tal ponto que virou uma espécie de subgênero dos filmes catástrofes de Hollywood: Guerra dos Mundos, A Invasão dos Discos Voadores, Invasores de Corpos, Independence Day, Invasão à Casa Branca, Cloverfield, Um Lugar Silencioso, série O Homem do Castelo Alto etc. A maior potência militar do planeta criou uma poderosa metáfora que se transformou em ideologia agregadora da paranoia mesclada com patriotismo. E continua até hoje, com Donald Trump elegendo a China como o maior explorador da subsistência americana. Mas em um lugar do planeta isso seria mais do que uma metáfora, mas uma verdadeira alegoria em movimento: a América do Sul. Um continente que historicamente foi invadido, pilhado, colonizado e explorado por grandes impérios políticos e econômicos. As verdadeiras “veias abertas da América Latina”, como sugere a capa do livro clássico de Eduardo Galeano. “Vamos recuperar o nosso quintal!”. A exortação recente do ministro da Defesa de Trump, Peter Hegeseth, ansioso por retirar a força a inimiga China da influência econômica do Continente é uma evidência de como os impérios sempre viram a AL. Portanto, é sempre bem-vindo uma produção de ficção científica latino-americana que bota a colher num subgênero tido como hollywoodiano. Afinal, temos conhecimento de causa. Sabemos muito bem o que é ser realmente invadido por forças alienígenas. A série Netflix argentina O Eternauta (El Eternauta, 2025-) é uma adaptação audiovisual de um dos maiores clássicos dos quadrinhos da América Latina, uma obra que fala sobre a opressão, injustiça e interferência estrangeira/alienígena seja endógena e hexógena. Criado pelos argentinos Héctor Germán Oesterheld (roteiro) e Francisco Solano López (arte), a HQ em preto e branco e estruturada no formato de tiras de jornal (ou seja, horizontal, panorama ou paisagem) foi publicada entre 1957 e 1959 no suplemento do Hora Cero, uma importante revista que compilava quadrinhos na Argentina, ganhando uma nova versão por Oesterheld (mas com Alberto Breccia na arte) em 1969 e uma continuação com a dupla original em 1976, ano em que o roteirista “desapareceu” nas mãos dos militares que assumiram o poder na época. Retroalimentando ainda mais a alegoria política da obra. Escrita em meio à chamada Revolução Libertadora em 1955 que depôs o presidente Juan Domingo Péron e instaurou um regime militar autoritário no país, marcando o início à instabilidade política e econômica que vem até hoje, passando por subsequentes ditaduras militares e golpes políticos. A HQ O Eternauta era uma resposta de Oesterheld e López ao clima de paranoia que se instaurou no país e um libelo que conclama os argentinos a se unirem e lutarem pela liberdade. A produção da série foi monumental: dois anos de desenvolvimento de roteiros, quatro meses e meio de pré-produção, 148 dias de filmagens e mais de um ano e meio de pós-produção. Contando elenco, figurantes e equipe técnica, mais de 2.900 pessoas. Trabalharam em 50 locações reais e 30 cenários virtuais, num esforço para equilibrar realismo e ficção científica sem recorrer ao espetáculo excessivo. A série O Eternauta começa em queima lenta: os primeiros episódios (seis no total nessa primeira temporada) oferecem uma abordagem reflexiva e cheia de reviravoltas sobre os tropos clássicos gênero de sobrevivência pós-apocalíptica, fazendo um uso incrível de seus cenários de Buenos Aires (tornando-a um metrópole universal – pode ser Londres, Nova York, São Paulo etc.) para contar uma história sobre pessoas teimosas demai

Era mais uma noite de verão despretensiosa em Buenos Aires, quando de repente cai uma forte nevasca. Porém, mortal: aqueles flocos brancos e fofos são tóxicos e matam imediatamente em contato direto com a pele. A energia acaba, celulares perdem o sinal e os sobreviventes ficam incomunicáveis, isolados em suas residências. Um dos poucos sobreviventes é Juan Salvo (Ricardo Darín), um homem de meia-idade e cabelos grisalhos que veste uma máscara de gás e um casaco pesado impermeável e se aventura pela capital decadente em busca de pessoas para salvar. Mas a nevasca é apenas o primeiro passo de uma invasão. Baseado na lendária HQ argentina de 1957, a série Netflix “O Eternauta” (2025-) transforma um típico subgênero Hollywoodiano em uma alegoria verdadeira de um continente que historicamente sofreu invasões, sejam colonialistas ou golpes militares. É sempre bem-vindo uma produção de ficção científica latino-americana que bota a colher nesse subgênero. Afinal, temos conhecimento de causa. Sabemos muito bem o que é ser realmente invadido por forças alienígenas.
Desde que as aranhas mecânicas marcianas invadiram a cidade de Nova York em 1937 na famosa transmissão radiofônica de Orson Welles pela emissora CBS, numa versão do livro clássico “Guerra dos Mundos”, que trouxe pânico para toda Costa Leste, os EUA ficaram obcecados pela ideia de serem invadidos por qualquer tipo de inimigo externo: alienígenas, comunistas, nazistas, terroristas, monstros etc.
A tal ponto que virou uma espécie de subgênero dos filmes catástrofes de Hollywood: Guerra dos Mundos, A Invasão dos Discos Voadores, Invasores de Corpos, Independence Day, Invasão à Casa Branca, Cloverfield, Um Lugar Silencioso, série O Homem do Castelo Alto etc.
A maior potência militar do planeta criou uma poderosa metáfora que se transformou em ideologia agregadora da paranoia mesclada com patriotismo. E continua até hoje, com Donald Trump elegendo a China como o maior explorador da subsistência americana.
Mas em um lugar do planeta isso seria mais do que uma metáfora, mas uma verdadeira alegoria em movimento: a América do Sul. Um continente que historicamente foi invadido, pilhado, colonizado e explorado por grandes impérios políticos e econômicos. As verdadeiras “veias abertas da América Latina”, como sugere a capa do livro clássico de Eduardo Galeano.
“Vamos recuperar o nosso quintal!”. A exortação recente do ministro da Defesa de Trump, Peter Hegeseth, ansioso por retirar a força a inimiga China da influência econômica do Continente é uma evidência de como os impérios sempre viram a AL.
![]() |
Portanto, é sempre bem-vindo uma produção de ficção científica latino-americana que bota a colher num subgênero tido como hollywoodiano. Afinal, temos conhecimento de causa. Sabemos muito bem o que é ser realmente invadido por forças alienígenas.
A série Netflix argentina O Eternauta (El Eternauta, 2025-) é uma adaptação audiovisual de um dos maiores clássicos dos quadrinhos da América Latina, uma obra que fala sobre a opressão, injustiça e interferência estrangeira/alienígena seja endógena e hexógena.
Criado pelos argentinos Héctor Germán Oesterheld (roteiro) e Francisco Solano López (arte), a HQ em preto e branco e estruturada no formato de tiras de jornal (ou seja, horizontal, panorama ou paisagem) foi publicada entre 1957 e 1959 no suplemento do Hora Cero, uma importante revista que compilava quadrinhos na Argentina, ganhando uma nova versão por Oesterheld (mas com Alberto Breccia na arte) em 1969 e uma continuação com a dupla original em 1976, ano em que o roteirista “desapareceu” nas mãos dos militares que assumiram o poder na época. Retroalimentando ainda mais a alegoria política da obra.
Escrita em meio à chamada Revolução Libertadora em 1955 que depôs o presidente Juan Domingo Péron e instaurou um regime militar autoritário no país, marcando o início à instabilidade política e econômica que vem até hoje, passando por subsequentes ditaduras militares e golpes políticos. A HQ O Eternauta era uma resposta de Oesterheld e López ao clima de paranoia que se instaurou no país e um libelo que conclama os argentinos a se unirem e lutarem pela liberdade.
![]() |
A produção da série foi monumental: dois anos de desenvolvimento de roteiros, quatro meses e meio de pré-produção, 148 dias de filmagens e mais de um ano e meio de pós-produção. Contando elenco, figurantes e equipe técnica, mais de 2.900 pessoas. Trabalharam em 50 locações reais e 30 cenários virtuais, num esforço para equilibrar realismo e ficção científica sem recorrer ao espetáculo excessivo.
A série O Eternauta começa em queima lenta: os primeiros episódios (seis no total nessa primeira temporada) oferecem uma abordagem reflexiva e cheia de reviravoltas sobre os tropos clássicos gênero de sobrevivência pós-apocalíptica, fazendo um uso incrível de seus cenários de Buenos Aires (tornando-a um metrópole universal – pode ser Londres, Nova York, São Paulo etc.) para contar uma história sobre pessoas teimosas demais para morrer – com algumas amostras do humor portenho que escaparam na adaptação.
O dia do juízo final da série começa quando uma substância misteriosa, semelhante à neve, que mata qualquer um que a toque, começa a cair repentinamente do céu em Buenos Aires. Em pleno verão, a cidade é atingida por uma nevasca assassina: em menos de um dia, grande contingente da população é dizimada. Por todos os lados acumulam-se corpos cobertos pela neve ao lado dos carros – pessoas que foram pegas de surpresa em congestionamentos.
Um dos poucos sobreviventes é Juan Salvo (Ricardo Darín), um homem de meia-idade, de cabelos grisalhos e corpulento, que veste uma máscara de gás e um casaco pesado impermeável e se aventura pela capital decadente em busca de pessoas para salvar.
Logo a história ganha proporções mais amplas: o que começa com uma narrativa claustrofóbica e mais intimista, logo ganha proporções mais amplas - uma invasão alienígena tradicional que aos poucos assume a estratégia de “guerra por procuração” que tanto marca as chamadas guerra híbridas atuais.
![]() |
A Série
O Eternauta começa em uma noite de verão despretensiosa em Buenos Aires. Amigos de longa data, incluindo um homem chamado Juan Salvo (Ricardo Darín), se encontram para seu passatempo favorito: beber e jogar cartas, enquanto um grupo de jovens sai de barco para um passeio noturno, e outras ainda seguem suas vidas cotidianas sem maiores suspeitas ou mesmo um instinto inconsciente de que algo sinistro possa acontecer — até que a energia elétrica acaba em toda a cidade. Então, a neve começa a cair, o que já pareceria uma ocorrência estranha por si só, até que os cidadãos fazem uma descoberta aterrorizante em primeira mão: aqueles flocos brancos e fofos são tóxicos e matam imediatamente em contato direto com a pele.
Presos lá dentro, sem energia elétrica ou meios de contato com outras pessoas (outras tecnologias, como celulares e carros, também estão inoperantes), Juan Salvo e aqueles com quem está confinado precisam não apenas encontrar uma maneira de rastrear seus entes queridos, mas também se unir diante do que parece ser uma invasão sobrenatural da própria Terra.
Da coleta de recursos valiosos à criação de trajes de proteção caseiros, cada tentativa de se aventurar neste globo de neve mortal traz seus próprios riscos — e fica cada vez mais claro que algumas das maiores ameaças a Juan Salvo e seus aliados podem, na verdade, ser aquelas que existem muito mais perto de casa. A desconfiança mútua, a formação de milícias armadas etc.
![]() |
Logo após o início da nevasca, luzes vermelhas caem do céu como meteoros. Mas os espectadores, assim como os protagonistas, só conseguem ver os alienígenas com clareza a partir do episódio 4. Juan Salvo e seu amigo Alfredo Favalli (César Troncoso) estão dirigindo para a capital em busca da filha de Juan, Clara, que estava com amigos quando tudo começou. No caminho, eles encontram um bloqueio de carros. Soldados aparecem e os avisam: "A capital é uma área restrita até novo aviso". Apesar das promessas de que a ajuda está a caminho, Juan desconfia dos militares e decide seguir os soldados.
Eles passam por um túnel e veem os soldados parados à frente. Ao se aproximarem, Alfredo diz que explicará que estão entrando na capital para procurar a filha de Juan, mas o plano muda quando o exército abre fogo. Eles dão marcha ré, mas um carro cai de uma ponte acima, bloqueando a fuga. É então que fica claro que os soldados não estão atirando neles, mas sim em alienígenas na ponte. Alfredo acelera, mas o carro é atingido e capota.
Vemos então alienígenas semelhantes a insetos (mais precisamente, besouros gigantes) atacando os soldados. Um deles abre a boca e tentáculos emergem, agarrando um soldado e o envolvendo em fios semelhantes a teias de aranha. Eles arrastam corpos para os seus covis subterrâneos, por alguma finalidade desconhecida.
Logo depois percebemos que algumas pessoas estão “enlouquecendo”: de repente escolham humanos como alvos, como no episódio em que um grupo de milicianos abre fogo contra sobreviventes que se escondem em um shopping.
![]() |
Isso começa a ocorrer imediatamente depois do fim da nevasca mortal e a abertura de um céu azul ensolarado. Dando uma aparência de que tudo voltará ao normal. É a segunda fase da estratégia dos alienígenas que será desenvolvida na próxima temporada: a guerra por procuração – como os alienígenas têm um plano para afetar a psique humana de diversas maneiras. Tencionando criar um estado de cismogênese ou divisões no que restou da sociedade argentina.
Os verdadeiros problemas estão apenas começando.
Mais do que uma história de ficção científica sobre sobrevivência, O Eternauta tornou-se um marco na cultura latino-americana — em parte devido ao seu enredo e em parte à história de vida de seu criador. Oesterheld foi sequestrado durante a ditadura militar argentina em 1977 e dado como morto, o que transformou a HQ em um símbolo de resistência.
Isso criou um ciclo de retroalimentação entre a história e a vida do autor, onde cada uma alimentava a outra. Hoje, é um símbolo cultural carregado de significado — parte dele ligado à própria obra, parte à biografia do autor e parte que foi sendo agregada posteriormente, muitas vezes por razões políticas, tanto por aqueles que o reverenciam quanto por aqueles que se opõem ao que ele representa.
Se em Hollywood o subgênero invasão pós-apocalíptica se reveste da natureza propagandística de um império que pretende criar paranoia e divisão para reinar, na América do Sul ganha o status de verdade: é a alegoria de um continente sempre invadido e resistindo.
Ficha Técnica |
Título: O Eternauta |
Criação: Bruno Stagnaro |
Roteiro: Bruno Stagnaro |
Elenco: Ricardo Darín, Carla Peterson, César Troncoso, Andrea Pietra |
Produção: K&S Films |
Distribuição: Netflix |
Ano: 2025 |
País: Argentina |