São as tarifas que são estúpidas
Enquanto Trump tenta destruir a ordem económica internacional (criada e desenvolvida pelos EUA) e procura reconstruir uma nova, recorrendo à ameaça e à extorsão, é importante deixar claro que não há uma versão benigna deste tipo de política. A guerra tarifária de Trump não faz qualquer sentido enquanto ferramenta para reequilibrar as contas externas e […]


Enquanto Trump tenta destruir a ordem económica internacional (criada e desenvolvida pelos EUA) e procura reconstruir uma nova, recorrendo à ameaça e à extorsão, é importante deixar claro que não há uma versão benigna deste tipo de política. A guerra tarifária de Trump não faz qualquer sentido enquanto ferramenta para reequilibrar as contas externas e reindustrializar os EUA, porque o caos inviabiliza toda e qualquer política, mas sobretudo porque as tarifas são uma ferramenta inadequada para promover qualquer tipo de transformação estrutural positiva. Facto reforçado num mundo caracterizado por cadeias de valor globais, com fortes e complexas interdependências produtivas e comerciais.
É possível reconhecer as fortes limitações da teoria de David Ricardo ao mesmo tempo que se concorda com a ideia de que as tarifas devem ser eliminadas e que, quando se revelem necessárias, devem ser cirúrgicas e excecionais. Se o objetivo é não cristalizar vantagens comparativas entre países, que podem configurar relações de desigualdade e dependência estrutural e tecnológica, as tarifas, ao encarecerem os produtos importados (intermédios e finais), pouco ou nada fazem para promover o desenvolvimento de um país, sendo igualmente ineficazes para capacitar as suas indústrias ou para favorecer a criação de ecossistemas de inovação e desenvolvimento tecnológico locais. As tarifas não devem ser um instrumento que visa discriminar entre produtos domésticos e produtos importados, no sentido de apoiar e promover os primeiros, mas sim de repor, na medida do possível, uma certa ideia de reciprocidade e igualdade (comercial) de circunstâncias entre produtos nacionais e importados, normalizando uma relação comercial caracterizada pela não discriminação nas trocas.
Todo o comércio é e deve ser regulado, porque todos os mercados têm regras e todos os produtos tem requisitos. Regras comerciais não são barreiras ao comércio. Pode haver excesso de regulação, e pode seguramente haver má regulação, mas todas as trocas comerciais pressupõem um conjunto de regras (contratuais, sanitárias, ambientais, laborais) que não devem ser vistas como entraves ou barreiras ao livre comércio, antes como os elementos que estruturam e tornam possível esse mesmo comércio, no sentido em que definem os requisitos legais e regulatórios que determinados produtos têm de cumprir para serem admitidos em trocas comerciais. A regulação, neste caso, não é limitativa, mas constitutiva – e não discrimina entre produtos nacionais e importados.
Se a carne americana não respeitar as regras sanitárias e ambientais europeias e, por isso, não puder ser vendida no espaço europeu, não estamos a falar de um entrave ao livre comércio, mas apenas a constatar que um certo tipo de produto não cumpre os requisitos legais para poder ser vendido numa determinada região. São as regras existentes na UE, são inteiramente legítimas, e são válidas para qualquer produto, não discriminando por nacionalidade. A regra sanitária pode estar mal formulada, pode ser excessiva, pode ser revista e melhorada. Mas a existência de regras sanitárias, que seguramente excluem certos produtos, e que condiciona o que pode ser e não ou ser vendido, e como, não é, em si mesma, uma barreira ao livre comércio.
Se algumas importações na UE passarem a pagar uma forma de taxa de carbono, como previsto no chamado CBAM, isso pode ser visto como uma tarifa, no sentido em que se trata de um imposto sobre importações. Na verdade, trata-se-apenas de um mecanismo corretivo, idealmente temporário e transitório, que visa repor uma situação de não discriminação entre produtos nacionais e importados, passando todos a pagar, de forma igual, uma taxa em função do conteúdo de CO2. E ser taxado em função das emissões de CO2 é uma regra inteiramente legítima, que em nada viola qualquer princípio de livre comércio, sendo apenas uma regra que, idealmente, se aplica, de modo igual, a todos os produtos.
Os objetivos da industrialização, da inovação tecnológica, da autonomia estratégica em determinados setores ou em determinadas matérias-primas críticas não só são inteiramente legítimos, como têm, necessariamente, uma dimensão territorial. Por isso, não são inteiramente subsumíveis aos princípios do livre comércio (regulado) e da não-discriminação. O objetivo da industrialização é ter indústria, em particular em certos produtos ou certos setores. E é um objetivo político legítimo que não tem de ser visto, forçosamente, como uma barreira ao livre comércio, porque não trata de um tema comercial – trata da existência de certas realidades em certos territórios. Porém, se o objetivo é ter indústria num determinado setor, ou prosseguir qualquer outro objetivo não comercial, devemos apoiar diretamente as atividades ou indústrias visadas – e não impor tarifas. A política industrial, para ser eficaz, não deve ter como objetivo tornar certos produtos (importados) mais caros.
Todos os países procuram ter políticas para desenvolver e capacitar os seus territórios, os seus cidadãos, as suas empresas. De uma forma ou outra, os Estados influenciam e determinam a estrutura económica, aquilo que é produzido, e onde. Os Estados investem em educação e em infraestruturas, têm políticas fiscais e orçamentais de apoio ao investimento e à criação de empresas, financiam políticas de inovação e, assim, acabam sempre por influenciar, de modo dinâmico, o que é produzido no seu país. Condicionar e influenciar o modo como cada país se capacita e se apresenta perante outros no comércio internacional não deve determinar a natureza mais ou menos livre das trocas comerciais. A opção pela guerra comercial é isso mesmo, uma opção. E não terá vencedores.