Ouro sobreavaliado ou início do declínio do dólar?

Nos últimos três anos, o ouro duplicou de valor e, nos últimos dois, aumentou 50%. Desde o início do novo milénio, multiplicou o seu valor por dez. Será uma valorização do ouro ou, pelo contrário, uma acentuada perda de valor do dólar e das outras moedas fiduciárias? Historicamente, a extração anual de ouro mantém um […]

Mar 21, 2025 - 13:12
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Ouro sobreavaliado ou início do declínio do dólar?

Nos últimos três anos, o ouro duplicou de valor e, nos últimos dois, aumentou 50%. Desde o início do novo milénio, multiplicou o seu valor por dez. Será uma valorização do ouro ou, pelo contrário, uma acentuada perda de valor do dólar e das outras moedas fiduciárias?

Historicamente, a extração anual de ouro mantém um crescimento relativamente constante e previsível, mas a extraordinária valorização recente tem contribuído para que a capitalização total do ouro (market cap, , ou seja, o total de ouro minerado desde o início das civilizações até hoje multiplicado pela cotação) crescesse a um ritmo muito mais acelerado do que o principal agregado monetário do dólar, o M2. Este indicador mede a massa monetária na posse do público e é uma referência crucial para a economia global, uma vez que o dólar é a moeda de referência nas trocas comerciais e na fixação dos preços dos metais industriais e preciosos, dos produtos agrícolas e das commodities energéticas.

Atualmente, o market cap do ouro atingiu os 21 biliões de dólares, igualando o M2 do dólar e superando os valores máximos registados em 2012, após a Grande Recessão de 2008/09. Naquela altura, para responder à crise financeira, a Reserva Federal dos EUA (Fed) expandiu significativamente a base monetária, permitindo um aumento da massa monetária, nomeadamente do M2. Em resposta, o ouro valorizou-se fortemente, aproximando-se dos 2.000 dólares por onça e atingindo um máximo histórico. No entanto, esse valor foi sendo corrigido nos anos seguintes, à medida que a política monetária se ajustava e os mercados recuperavam gradualmente da incerteza económica.

Hoje, o rácio entre a capitalização do ouro e o M2 do dólar aproxima-se dos máximos históricos de 1980, quando o ouro registou uma forte valorização ao longo da década de 1970. Essa subida foi impulsionada pelo fim do sistema de Bretton Woods, que, desde 1944, fixava o preço do ouro em 35 dólares por onça. Ao longo do período em que vigorou esse sistema, o crescimento da produção de ouro nem sempre acompanhou os défices comerciais dos EUA, sobretudo desde o final da década de 1950, aumentando a pressão sobre o sistema monetário.

Em 1971, e depois de os EUA terem perdido dois terços das suas reservas de ouro, Nixon decretou unilateralmente o fim do padrão-ouro, impulsionando a valorização do ouro, um ativo escasso. Os ganhos do metal amarelo foram ainda mais expressivos devido a uma série de fatores económicos e geopolíticos, nomeadamente os choques petrolíferos de 1973 e 1979, que impulsionaram a inflação, a qual ultrapassou os 10% nos EUA, e as sucessivas recessões que abalaram a economia global. Como resultado, em 1980, o ouro atingiu os 850 dólares por onça, com a sua capitalização a representar uns impressionantes 131% do M2 do dólar. Atualmente, esse rácio está novamente em níveis historicamente elevados, levantando questões sobre se a valorização do ouro antecipa novos desafios económicos globais, como uma possível recessão nos EUA e uma desaceleração da economia mundial.

Outro indicador relevante é a comparação entre o market cap do ouro e o PIB nominal dos EUA. Atualmente, este rácio está nos 73%, um valor semelhante ao máximo registado em 1980. No entanto, naquela época, os EUA atravessavam uma forte recessão e o ouro valorizou-se devido às condições económicas já mencionadas. Além disso, nos anos seguintes, ao longo da década de 1980, verificou-se uma correção acentuada na cotação do ouro.

Será que a valorização atual do ouro antecipa uma recessão nos EUA, um abrandamento da economia global e, ao mesmo tempo, uma aceleração do processo de desdolarização? A cotação do ouro tem registado máximos sucessivos, com o seu market cap a aproximar-se dos valores históricos mais elevados quando analisado em função de rácios como o M2 do dólar ou o PIB nominal dos EUA.

Historicamente, apenas em 1934 o market cap do ouro foi superior ao PIB nominal dos EUA, tendo o rácio atingido os 104%, ou seja, o valor total do ouro no mundo era superior ao PIB dos EUA. No entanto, essa situação ocorreu num contexto muito específico: a Grande Depressão de 1929, que desencadeou recessões sucessivas e culminou numa contração de 50% no PIB norte-americano em apenas cinco anos. Esta forte queda no denominador do rácio permitiu que o peso relativo do ouro duplicasse. Além disso, o ouro mantinha nos EUA um valor fixo de cerca de 21 dólares desde 1920, mas passou a ser fixado em 35 dólares em 1933, impulsionando também o numerador do rácio, que subiu de 37% em 1929 para 104% em 1934.

Atualmente, a China, principalmente, mas também a Rússia, a Índia e outros países de grande dimensão, têm comprado grandes quantidades de ouro, procurando diversificar as suas reservas internacionais. São vários os motivos para esta estratégia. Um deles é a redução da dependência do dólar americano para pagamentos internacionais, evitando o risco de congelamento de ativos, como aconteceu com a Rússia, cujas divisas em dólares foram bloqueadas após a sua invasão da Ucrânia. Outro motivo é a diversificação das reservas. Países com economias avançadas, como os EUA, a Alemanha e a França, possuem entre 70% e 80% das suas reservas internacionais em ouro. Em contrapartida, a China, apesar de deter cerca de 2 mil toneladas de ouro, o que corresponde a aproximadamente 200 mil milhões de dólares, tem apenas 6% do total das suas reservas internacionais em ouro, num total de 3,2 biliões de dólares. Além disso, o ouro tem a vantagem de não poder ser impresso, ao contrário das moedas fiduciárias, e a sua extração torna-se cada vez mais difícil. Apesar da produção mundial anual rondar as 3.000 toneladas – o triplo do que se produzia há 65 anos, em 1960 –, as reservas de ouro exploráveis abaixo do solo são estimadas em apenas 54 mil toneladas. Atualmente, existem acima do solo cerca de 215 mil toneladas de ouro, sendo que dois terços foram extraídos desde 1960.

Então, ou a cotação do ouro está excessivamente elevada, ou a postura adotada por vários bancos centrais, sobretudo pela China, representa uma continuação do processo de desdolarização, substituindo gradualmente as suas reservas em dívida pública dos EUA. Atualmente, a China detém apenas 800 mil milhões de dólares em dívida pública norte-americana. Além disso, os receios quanto ao agravamento das contas públicas dos EUA levam à conversão de dólares em ouro, podendo isto sinalizar o início do declínio do dólar como moeda de reserva mundial. Neste cenário, o ouro poderia assumir esse papel, mas sem estar atrelado a qualquer moeda fiduciária, ao contrário do que aconteceu no sistema de Bretton Woods, que vigorou entre 1944 e 1971.

Enquanto os EUA mantiveram excedentes comerciais após a Segunda Guerra Mundial, e a produção anual de ouro aumentava após a queda registada durante a guerra – que fez a produção cair para metade –, o sistema manteve-se estável. No entanto, a partir da década de 1960, os défices comerciais dos EUA começaram a impulsionar o valor do ouro no mercado paralelo, embora este se mantivesse oficialmente fixado a 35 dólares por onça, com os EUA a garantir a sua conversão.

É neste contexto que surge o Paradoxo de Triffin, identificado pelo economista Robert Triffin na década de 1960, que descreve um dilema inerente às moedas de reserva internacional. Para que uma moeda nacional seja usada globalmente, há um conflito entre a necessidade de fornecer liquidez ao mundo e a manutenção da confiança na moeda. Para que uma moeda seja a principal reserva mundial, como o dólar americano, o país emissor precisa de manter défices comerciais constantes, exportando mais moeda do que recebe, para garantir que o mundo tenha liquidez suficiente em dólares para realizar os seus pagamentos. No entanto, esta situação enfraquece a confiança na moeda, pois o endividamento externo crescente pode levar à desvalorização, inflação e instabilidade económica.

O exemplo mais evidente do Paradoxo de Triffin é o dólar americano, que se tornou a principal moeda de reserva após a Segunda Guerra Mundial. Para garantir dólares suficientes para o comércio global, os EUA precisam de manter défices comerciais contínuos. No entanto, esta situação gera um endividamento crescente, o que pode minar a confiança no dólar.

Tal como o ser humano necessita de oxigénio para sobreviver, os défices comerciais em dólares são essenciais para manter a liquidez do sistema financeiro mundial. No entanto, o oxigénio que nos mantém vivos também oxida as nossas células, contribuindo para o seu envelhecimento e morte. Da mesma forma, os défices comerciais contínuos minam a confiança no dólar americano. O oxigénio é indispensável à vida, pois permite que as nossas células produzam energia através da respiração celular. Contudo, este mesmo processo gera radicais livres, que, ao longo do tempo, danificam as células e aceleram o envelhecimento. Ou seja, o que nos mantém vivos também nos desgasta e, eventualmente, nos mata. Da mesma forma, o que tem sustentado o sistema monetário global, o dólar americano, parece estar a deteriorar-se progressivamente, podendo levar ao fim da sua hegemonia.

Entretanto, os EUA continuam a comprar bens e serviços ao resto do mundo quase gratuitamente, contrariando, em certa medida, a famosa frase de Milton Friedman: “não há almoços grátis”. Os EUA imprimem dólares “do nada”, a um custo ínfimo, e adquirem produtos ao estrangeiro. Esta vantagem existe porque os EUA “possuem a máquina de fazer dólares”, um privilégio de que têm beneficiado ao longo de décadas. No entanto, a China procura atualmente afastar-se e acabar com essa prerrogativa norte-americana, reduzindo a dependência do dólar.

Quando Donald Trump defende que os EUA devem reduzir o seu défice comercial, impulsionando medidas protecionistas, talvez não tenha plena consciência de que aquilo que os EUA compram ao estrangeiro a mais do que vendem é, na prática, pago quase gratuitamente, através de dólares emitidos pela sua própria “impressora monetária”, a Fed. Os dólares imprimidos pela Fed não só representam a maior exportação dos EUA, como também são a mais eficiente. Os EUA exportam algo que praticamente não lhes custa nada a produzir – moeda fiduciária –, em troca de bens e recursos tangíveis, de valor muito superior e essenciais para a economia real.

Além disso, os EUA financiam as suas despesas públicas com moeda “criada do nada” pelo seu banco central, a Fed, através da monetização da dívida soberana. Para além disso, uma parte significativa dessa dívida é adquirida pelo resto do mundo, que necessita de dólares para transações internacionais. Estes dólares, por sua vez, são emitidos pela Fed e distribuídos globalmente através dos défices comerciais dos EUA, perpetuando assim o seu papel dominante no sistema monetário internacional. No entanto, à medida que a economia chinesa cresce e se aproxima da dos EUA, a China começa a libertar-se das amarras do dólar e a procurar alternativas. Para já, tudo indica que essa alternativa será o ouro.

Se esta tendência de valorização do ouro continuar, então pode-se estar a assistir ao princípio do fim do dólar como reserva mundial, não nos próximos anos, porque isso não é assim tão rápido, mas nas próximas décadas. De realçar que as emissões de dívida dos EUA de mais longo prazo, a 30 anos, têm tido algumas dificuldades na colocação nos últimos dois anos, evidenciando uma diminuição do apetite dos investidores por este tipo de ativos, em contraste com a recetividade que existia no passado. Além disso, apenas a Moody’s dá a notação máxima à dívida soberana dos EUA “AAA”, mas já reviu a perspetiva para negativa em novembro de 2023.