O julgamento que pode separar Instagram e WhatsApp da Meta
Os julgamentos de casos antitruste nos tribunais estadunidenses talvez sejam a maior contribuição do país à humanidade depois dos ovos beneditinos e da Hollywood dos anos dourados. Nesta segunda (14), teve início um dos mais aguardados dos últimos tempos, em que a Federal Trade Commission (FTC, espécie de Cade dos EUA) acusa a Meta de […]

Os julgamentos de casos antitruste nos tribunais estadunidenses talvez sejam a maior contribuição do país à humanidade depois dos ovos beneditinos e da Hollywood dos anos dourados.
Nesta segunda (14), teve início um dos mais aguardados dos últimos tempos, em que a Federal Trade Commission (FTC, espécie de Cade dos EUA) acusa a Meta de monopolizar o mercado de redes sociais pessoais, barrando concorrentes em potencial com as aquisições bilionárias de Instagram e WhatsApp. Um dos possíveis “remédios” é o desmembramento da empresa, restabelecendo Instagram e WhatsApp como alternativas independentes e rivais do Facebook.
O sistema jurídico estadunidense, do tipo “common law”, é a antítese do brasileiro, “civil law”. Se aqui a Justiça depende de leis para embasar cada detalhe de uma sentença, lá são os precedentes que balizam os julgamentos. Em casos “sui generis”, há muita margem para deliberações.
Como é o caso de uma das questões nucleares aqui, a da definição do mercado da Meta. A FTC levantou a tese de que a empresa detém o monopólio do chamado mercado de “serviços de redes sociais pessoais” (PSN, na sigla em inglês), que distingue as plataformas sociais usadas para manter contato com “amigos e familiares” de outras mais segmentadas, como LinkedIn (profissional), TikTok (vídeos curtos) e Nextdoor (vizinhos).
Pode parecer um detalhe bobo, mas é um vital: se a tese da FTC colar, a participação da Meta no mercado de PSN fica enorme. Se a da Meta prevalecer, esse mercado se expande e dilui um bocado as fatias de Facebook, Instagram e WhatsApp.
A outra frente de batalha é a das aquisições a peso de ouro que Mark Zuckerberg fez de rivais que, àquela altura, na primeira metade dos anos 2010, despontavam como grandes rivais em potencial do Facebook.
A Meta alega que as aquisições de Instagram (US$ 1 bilhão em 2012) e WhatsApp (US$ 19 bilhões em 2014) foram benéficas aos usuários e não resultaram na piora dos serviços oferecidos por ela.
Aqui, também, o “modus operandi” das big techs impõe ineditismos às leis antitruste estadunidenses, que sempre se pautaram pelos preços pagos pelo consumidor final. O que não se aplica às plataformas sociais, visto que elas são gratuitas.
A FTC argumenta que o “preço” pago pelos consumidores pelas práticas anticompetitivas da Meta é o chamado “imposto da carga de anúncios”, ou seja, o aumento expressivo da quantidade de anúncios em relação ao conteúdo orgânico, o que seria um sinal de degradação dos serviços.
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Esses julgamentos são uma rara oportunidade de apreciar falta de escrúpulos do alto escalão de empresas poderosas, como a Meta, em toda a sua glória, em estado bruto. As regras de transparência a que empresas de capital aberto se precisam se submeter faz com que toda a comunicação corporativa seja preservada. Daí que a FTC — e, agora, todos nós — tenhamos acesso a trocas de e-mails reveladoras entre Zuck e seus generais.
O maior trunfo da FTC são os e-mails incriminadores do próprio Zuck. Há que se dar o braço a torcer à sua clareza de raciocínio e disposição para criar provas contra si mesmo.
Em 2018, por exemplo, ele reclamou que a “carga de anúncios” no Facebook era maior que no Instagram, e que “deveríamos até ter uma carga de anúncios maior no IG [Instagram] enquanto temos esse desafio [de baixo engajamento no Facebook] para que possamos substituir alguns anúncios por [Pessoas que você talvez conheça] no FB [Facebook] para contornar os problemas que estamos vendo”.
Em outra mensagem, direcionada ao conselho administrativo da empresa, Zuck referiu-se à “carga de anúncios” como uma “taxa” ou “imposto”, ou seja, algo que as pessoas pagariam (com sua atenção) em troca do conteúdo orgânico que as atraem aos aplicativos. É um contraste absoluto com o discurso oficial da Meta, de que as pessoas gostam e/ou preferem anúncios segmentados.
Também em 2018, Zuck flertou com a ideia de separar o Instagram em uma nova empresa, por iniciativa própria, dizendo que apesar dos temores essa saída costuma ser benéfica e que as “sinergias” costumam ser superestimadas por executivos, e que, de qualquer forma, já havia uma pressão para o desmembramento — no que, presume-se, seria uma admissão da monopolização do mercado?
Há outras mensagens, mais reveladoras, da aquisição do Instagram:
“Mesmo que algum novo concorrente[] surja, comprar o Instagram, Path, Foursquare etc. agora nos dará um ano ou mais para integrar suas dinâmicas antes que alguém possa se aproximar de suas escalas novamente. Nesse intervalo, se incorporarmos a mecânica social que eles estavam usando, esses novos produtos não terão muita tração, pois já teremos sua mecânica implantada em larga escala.” (Início de 2012.)
“Sim, lembro de seu post interno sobre como o Instagram era o que nos ameaçava e não o Google+. Você tinha razão. Um lance com startups, porém, é que quase sempre você pode adquiri-las. Acho que esse é um resultado bom para todos.” (Abril de 2012.)
“[…] o Instagram estava crescendo tão mais rápido que nós que tivemos que comprá-lo por US$ 1 bilhão.” (Novembro de 2012.)
Bom demais!
Em uma estratégia ousada, os advogados da FTC chamaram Zuck para prestar o primeiro depoimento. Deve ser entretenimento da melhor qualidade vê-lo tergiversar na tentativa de contradizer o seu eu do passado de tal modo que as duas posições soem coerentes.
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A acusação da FTC contra a Meta foi feita há anos, durante o governo de Joe Biden. A eleição de Donald Trump deve ter feito brilhar os olhos de Zuck diante da possibilidade de anulação do processo, e ele nem fez questão de disfarçar esse intuito, encontrando-se regularmente com o próprio Trump, doando US$ 1 milhão para a posse do presidente e pagando US$ 25 milhões para encerrar um processo movido por Trump contra a Meta. O CEO da Meta também ofereceu US$ 450 milhões e, depois, quase US 1 bilhão à FTC para acabar com o processo antitruste, como noticiado pelo Wall Street Journal.
“Mark comprou uma saída da competição, então não me surpreende que ele ache que possa comprar uma saída da aplicação da lei”, disse a ex-chefe da FTC, Lina Khan, ao WSJ. “O remédio que ele propõe, tal qual sua estratégia de mercado, é: ‘deixe o meu monopólio ilegal continuar monopolizando.’”
Quando o principal representante da parte acusada move mundos para evitar um julgamento, é sinal de que ele talvez não confie tanto em seus argumentos de defesa.
O julgamento deve durar até julho. Depois, esperaremos mais algum tempo (meses?) para a decisão da Justiça e, em seguida e em caso de condenação, virão as negociações para a aplicação dos remédios. Em outras palavras, vai demorar.
Se o inglês não for problema, recomendo muito a cobertura que a newsletter Big Tech on Trial está fazendo do caso. Na falta de transmissões ao vivo das sessões (e, mesmo que houvesse, de paciência para acompanhá-las na íntegra), é uma leitura diária detalhada, didática e divertida também — quase tanto quanto um bom clássico hollywoodiano.