Mães de UTI: relatos de luta e amor por seus bebês prematuros

Ancoradas na resiliência, elas vivenciam os dias de internação como os mais marcantes da sua vida e se tornam símbolos de força

Mai 10, 2025 - 14:33
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Mães de UTI: relatos de luta e amor por seus bebês prematuros

Ouvir o choro que anuncia a descoberta de um novo mundo, ver pela primeira vez o rosto idealizado entre as pistas do ultrassom, sentir o cheiro e a pele — o primeiro encontro de uma mãe com o seu filho pode ser sonhado de diferentes maneiras, mas o que há de comum entre elas é o desejo de que tudo ocorra bem. Quando isso não acontece, pode ser o início de uma jornada cercada pela angústia e pelo medo.

As mães de UTI, como são chamadas aquelas que passam pela experiência de acompanhar seus recém-nascidos em uma unidade de terapia intensiva, experimentam uma realidade marcada pela incerteza. 

A educadora pedagógica Audrey Piccioli, de 39 anos, vivia a primeira gravidez com a plenitude de um quadro saudável até chegar ao quinto mês, quando começou a ter contrações e sentiu que algo estava estranho. No hospital, descobriu que já estava com oito centímetros de dilatação. Àquela altura, com apenas 25 semanas de formação, a pequena Mikaela não estava nem perto do período ideal para nascer, que é por volta das 40 semanas. 

Os médicos tentaram fazer com que a gestação avançasse até, pelo menos, à 28ª semana e iniciaram as medicações para acelerar o desenvolvimento pulmonar da bebê, que costuma acontecer no oitavo e nono mês de gravidez.

Mas, contrariando as expectativas, já no terceiro dia de internação Mikaela nasceu e chorou — o choro era o sinal de que os pulmões estavam respondendo. Pesando apenas 700 gramas e medindo 29 centímetros, ela foi imediatamente levada para a UTI neonatal, onde ficou 90 dias internada.

“Ela era muito pequena, de um jeito que você não acredita que é possível. Os dedos dela pareciam palitos de dente”, afirma Audrey. “Não pude dar de mamar para minha filha. Dormia com o barulho do monitor, fechava o olho e escutava o barulho da bomba de leite.”

Por ano, cerca de 340 mil bebês nascem prematuros no Brasil, segundo o Ministério da Saúde
Por ano, cerca de 340 mil bebês nascem prematuros no Brasil, segundo o Ministério da SaúdeCatarina Moura/CLAUDIA
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Ao contrário de Audrey, a jornalista Mariana Nadai, de 40 anos, soube desde o primeiro ultrassom morfológico que seria uma mãe de UTI. Era também a sua primeira gravidez e, logo de cara, recebeu duas surpresas: a primeira é de que seriam dois bebês e, a segunda, é que por se tratar de um tipo raro de gravidez gemelar, seus filhos precisariam ir para a UTI logo após o nascimento.

Segundo o Painel USP de Gêmeos, a chamada gestação monocoriônica-monoamniótica, também conhecida como mono-mono, acontece com apenas 2% dos gêmeos monozigóticos ou “idênticos”. Gêmeos mono-mono dividem também a mesma placenta.

Nesses casos, o principal risco é de que os cordões umbilicais se entrelacem em um nó, o que interromperia o fornecimento de nutrientes e de oxigênio para os bebês. 

Com uma gravidez nesses termos, Mariana soube que os filhos precisariam nascer prematuros e, com a orientação da sua obstetra, decidiu que o momento ideal seria durante a 32ª semana, antes do oitavo mês. “Ao mesmo tempo, tive que processar que seria mãe de gêmeos, mãe de UTI, com filhos nascendo prematuros, um monte de coisa. Fiquei uma semana chorando todos os dias”, lembra. 

Para ela, a internação seria algo quase protocolar, para acompanhar o fim do desenvolvimento dos filhos. Os gêmeos Pedro e Gabriel nasceram na data marcada e, por alguns minutos, Mariana pôde pegá-los no colo antes que eles fossem levados para a UTI e lá permanecessem por 51 dias. 

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“Meu marido e eu estávamos bem confiantes de que nada extraordinário iria acontecer, porque os bebês estavam bem. Mas no primeiro dia eles foram entubados e isso foi bastante impressionante. Daí a gente foi vendo que não era só para amadurecer os pulmões e que o sistema digestivo também não estava completamente formado”, diz. 

Por um fio

O bebê recém-nascido está internado, mas a mãe recebeu alta alguns dias após o parto. O próximo passo, então, é voltar para casa. Mas como fazer isso de braços vazios? Apesar de terem histórias diferentes, Audrey e Mariana descrevem esse dia como o pior de todos.

“Fui pra casa, vi o quartinho deles arrumado e chorei muito. Então era essa a realidade, voltei para casa e não tinha meus filhos comigo”, lembra Mariana.

Ao recordar, Audrey se emociona, quase como se voltasse para aquele momento. “Fui o caminho inteiro desconsolada. Quando cheguei e vi o quarto, o berço, foi o dia mais difícil da minha vida. Nunca vou esquecer dessa sensação”, conta. 

A nova rotina, ao contrário do que esperavam, não era a de troca de fraldas, noites insones e possíveis dificuldades com a amamentação — perrengues que passaram a desejar como nunca. O que viveram foram dias ininterruptos de plantões no hospital, onde chegavam por volta das sete da manhã e ficavam até tarde da noite, enquanto esperavam por boas notícias. “A vida fica em suspenso, você só quer saber do seu filho”, afirma Mariana. 

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Até que Mikaela tivesse 23 dias de vida, Audrey só pôde vê-la através do acrílico da incubadora. Foi nesse período que decidiu que, nos momentos em que pudesse estar com a filha, jamais choraria de tristeza ou de desespero.

“Entrei num mantra. Nunca chorei na frente dela que não fosse de felicidade. Na primeira vez que fui vê-la, pensei que de maneira alguma poderia levar lágrimas, porque ela já está matando um leão por dia para ficar com a gente”, conta. 

Apesar de todas as complicações que podem acometer um recém-nascido nessas condições, o médico pediatra e neonatologista Nelson Douglas Ejzenbaum explica que os avanços da medicina têm permitido cada vez mais desfechos positivos. 
Apesar de todas as complicações que podem acometer um recém-nascido nessas condições, os avanços da medicina têm permitido cada vez mais desfechos positivosCatarina Moura/CLAUDIA

Senso de comunidade

Foi a necessidade de resiliência que uniu Audrey e Mariana. Elas se conheceram na maternidade onde tiveram seus filhos, em São Paulo, na chamada “salinha das mães”.

O espaço, reservado para que elas pudessem esperar com mais conforto pelas notícias do dia, acabava funcionando como uma rede de apoio mútuo entre as mães que viviam, ainda que de maneiras distintas, o mesmo pesadelo. 

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Ainda hoje, Audrey chama de “coleguinhas” os bebês que ficaram internados no mesmo período que Mikaela. “Você aprende a não julgar e a celebrar. É um amor que você cria com aquelas mães e com aqueles nenéns, que parece que são seus sobrinhos. Você consegue celebrar cada vitória. A gente se apega porque é difícil ficar com pessoas que não sabem da sua dor”, diz. 

Ao mesmo tempo que comemoravam cada vitória, sofriam em conjunto pelas perdas. Quando fala da única morte que ocorreu no período de internação dos filhos, Mariana ainda pensa no plural. “Uma das mães, que também teve gêmeos, perdeu um dos filhos e o outro ainda estava lá. Foi o único bebê que a gente perdeu”, lembra. 

Dividiram o ombro, o café, o pão de queijo e o que podia compor a vida entre um plantão e outro. As mães chegaram a criar um grupo no WhatsApp por onde, depois da alta, acompanhavam as evoluções dos filhos e recebiam os convites de cada um dos aniversários que, durante alguns anos, não faltariam em nenhum.

“A Mari e eu ficamos juntas dois meses e parece que a gente se conhece a vida inteira. É uma relação diferente, a intensidade das coisas funciona como um catalisador de espaço tempo, sei coisas da Mari que não sei de um monte de gente”, conta Audrey. 

Prematuridade não é sentença 

Por ano, cerca de 340 mil bebês nascem prematuros no Brasil, segundo o Ministério da Saúde. Apesar de todas as complicações que podem acometer um recém-nascido nessas condições, o médico pediatra e neonatologista Nelson Douglas Ejzenbaum explica que os avanços da medicina têm permitido cada vez mais desfechos positivos. 

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“Hoje, contamos com respiradores de alta frequência, materiais aprimorados para intubação e monitoramento do bebê, além de nutrições mais adequadas. Há uma série de recursos para o cuidado neonatal. Há 20 anos, era impensável retirar um bebê de 700 gramas da UTI, e hoje isso se tornou algo comum”, afirma.

A capacitação dos profissionais também evoluiu. “Atualmente, a gente sabe cuidar melhor de um recém-nascido. Felizmente, o Brasil conta com esses profissionais, tanto em ambulatórios privados quanto no SUS. O mais importante é ter a consciência de que um prematuro exige um acompanhamento de qualidade”, ressalta. 

Ancoradas na resiliência, elas vivenciam os dias de internação como os mais marcantes da sua vida e se tornam símbolos de força
Ancoradas na resiliência, elas vivenciam os dias de internação como os mais marcantes da sua vida e se tornam símbolos de forçaCatarina Moura/CLAUDIA

Sorrir sem perceber

Mesmo tendo nascido em uma condição de prematuridade extrema, Mikaela se recuperou sem sequelas. Durante os 90 dias na UTI, ela passou por uma série de intercorrências que a fizeram ficar conhecida como “a prematura milagre”.

“Por duas vezes pensei que fosse perdê-la”, afirma Audrey. “Resolvi pegar a experiência para tentar mudar, aprendi muito sobre empatia. Quando a única coisa que te resta é a esperança, você se apega e acaba se transformando. É viver pelo agora.”

Tanto Audrey quanto Mariana puderam viver a experiência da “celebração do corredor”, momento de alta dos bebês em que mães e filhos são celebrados, ao saírem do quarto, pelos profissionais e as famílias que ainda aguardavam a sua vez no hospital. 

Para essa ocasião, Mariana pediu que tocassem a música Felicidade, do Marcelo Jeneci, que diz “Você vai rir, sem perceber/Felicidade é só questão de ser”. Os gêmeos sofreram com infecções e paradas cardíacas, então a volta para casa representava, enfim, o começo de uma vida longe dos aparelhos.

“A gente mal dormia quando eles foram pra casa, tinha medo de que eles parassem de respirar de novo”, lembra. Com a rotina se adequando aos poucos, a vida foi entrando na normalidade sem que eles passassem por novos apuros. 

Dez anos depois, Mariana diz que ainda sente as marcas dos dias intranquilos que viveu com os gêmeos na UTI. “Ficou um trauma em mim, ainda tenho uma parte que romantiza esse momento da maternidade, fico pensando que queria engravidar de novo, ter um parto normal, sair do hospital com meus bebês nos braços. Mas tenho medo de reviver tudo.”

Quando olha para Pedro e Gabriel hoje em dia — dois meninos cheios de energia, independentes, ávidos colecionadores de cartas Pokemón —, Mariana pensa no milagre que é vê-los tão saudáveis.

“Será que o fato de serem tão destemidos desde muito pequenos tem a ver com o tempo que passaram sozinhos no hospital? É o tipo de coisa que fico pensando até hoje.”

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