“Homem com H”, a lágrima do pai e o cinema nacional maiúsculo
"Homem com H" busca a sensorialidade. Logo de início, o rico som da mata absorve o pequeno Ney. Esmir busca essa proximidade de espectador com o que se apresenta na tela.

texto de Ismael Machado
No dia em que tentei – e não consegui – assistir a “Homem com H”, um jovem rapaz, certamente não-heteronormativo, atendia a pedidos de posar para fotos. Isso porque ele estava com o rosto pintado como Ney Matogrosso na época dos Secos & Molhados. É fácil entender a identificação de Ney Matogrosso com as novas gerações que, pelo menos em Belém, correram ao cine Líbero Luxardo para assistir ao badalado filme escrito e dirigido por Esmir Filho. Ney, mesmo superando a casa dos 80 anos, exala uma rebeldia libertária sexual e comportamental muito necessária em época de um neoconservadorismo violento e castrador. A figura performática de Ney, que atravessou gerações, é sempre aliada em tempos obscuros.
Digo não ter conseguido assistir porque os ingressos esgotaram rapidamente. É uma frustração alegre a que me acometeu, afinal, ingressos esgotados a uma obra nacional é de comemorar. Dois dias depois conseguimos. E a pergunta que se impõe de cara é se o longa-metragem vale o burburinho e a exaltação entusiasmada proliferadas em textos e vídeos Brasil afora?
Sim, é a resposta imediata, afinal, é quase impossível não se deixar levar pela trajetória singular de Ney que se apresenta na tela. O cantor já faz parte de nossas vidas e quem foi ao cinema traz essa simpatia arraigada e que se transforma em cumplicidade diante da história apresentada.
Mas, ao mesmo tempo, o bom filme de Esmir não é, longe disso, uma obra-prima, ou mesmo tão superior a outras cinebiografias nacionais já vistas anteriormente, como os longas sobre Cazuza, Tim Maia e Gal, para ficar em três exemplos. Claro, cada um tem sua especificidade e até o risco comparativo pode ser injusto e inglório, mas é apenas para ressaltar que, sim, “Homem com H”, é muito interessante e vale cada centavo suado, ainda assim, é necessário se ter mais comedimento com os adjetivos lançados a ele nos últimos dias.
“Homem com H” busca a sensorialidade. Logo de início, o rico som da mata absorve o pequeno Ney. Esmir busca essa proximidade de espectador com o que se apresenta na tela. As tomadas bem próximas ao rosto, ao corpo, aos movimentos de Ney são constantes ao longo do filme. Para dar conta de tanta vida, tanta história, fases da vida do artista são pinçadas muito rapidamente. É assim na transição do jovem militar para a capital Brasília. E é assim que se desenham os saltos de São Paulo para o Rio de Janeiro e – para os fãs, até um pouco frustrante, mas compreensível – bem pouco dos Secos & Molhados.
O filme foi um presente para Jesuíta Barbosa. É comovente o quanto se percebe o mergulho do ator sobre um personagem tão complexo. Nem sempre, no entanto, Jesuíta acerta o tom. Há um certo exagero em alguns momentos, quando beira o caricato, mas é inegável que a simbiose ator-personagem teve mais pontos altos que falhos. Não é fácil ser Ney Matogrosso, convenhamos.
Há duas coisas que chamam a atenção de uma forma mais profunda. A primeira é a constatação de que, aos poucos, estamos novamente nos libertando da prisão e do medo de mergulhar em cenas de sexo. O medo do cerceamento – inclusive de setores militantes da esquerda – retraiu bastante o sexo nas telas. Receio de cancelamentos, boicotes, denúncias etc havia travado o corpo nu no cinema brasileiro. “Motel Destino” já tinha se mostrado um pouco uma antítese a isso, uma reação. “Homem com H” aprofunda esse destemor. Ainda bem.
O outro elemento é que, inevitavelmente, nossas ações e transgressões sempre acabam tendo como pano de fundo, cenário original, a família, a relação entre filhos e pais e mães. A necessidade do afeto, da aceitação, do abraço, da palavra de apoio, do reconhecimento, do carinho e do olhar compreensivo, às vezes até cúmplice de nossos pais e nossas mães, sempre nos acompanha ao longo de nossa trajetória. Faz parte de nosso crescimento. Com dor ou sem. Com cicatrizes ou feridas abertas.
Isso se mostra em “Homem com H”. Dá até para pensar que se o filme fosse todo centrado nessa relação entre o Matogrosso pai e o Matogrosso filho que incorpora aquele sobrenome tão pesado em sua trilha errática no mundo artístico, ele não perderia em nada. Rômulo Braga e Jesuíta Barbosa entregam muito, muito, nessas cenas. O filho quer, sim, o aceite do pai que, por sua vez, quer aceitar o filho. E esses caminhos que circulam violentamente em paralelo se encontram como um desague de um rio que leva esse nome Matogrosso, lavando feridas, curando certas dores, limpando o que de sujo ficou na memória. É nesse sentido que “Homem com H” mais toca, como a lágrima que mal consegue abandonar o olho de Matogrosso pai.
“Homem com H” reafirma o bom momento que o cinema nacional vem passando. Ele estreou praticamente na mesma semana que o devorador de mundos Donald Trump anunciou tarifas de 100% para filmes estrangeiros nos Estados Unidos. E nós, sucumbindo a lobbies de grandes plataformas de streaming para se livrar de taxas e obrigações em nosso território. Que sobrevivamos a tudo isso. Com a força de histórias como a de Ney Matogrosso e tantos mais.
– Ismael Machado é escritor, jornalista e, por que não, cineasta. Publicou cinco livros e é ganhador de 12 prêmios jornalísticos. Roteirista dos longas documentários “Soldados do Araguaia” e “Na Fronteira do Fim do Mundo” e da série documental “Ubuntu, a partilha quilombola“.