Grupos de novo rock. Há uma geração a tirar o pó às guitarras

Hetta, bbb Hairdryer ou Desire Haze podem não ser nomes familiares para o grande público, mas a sua música merece ouvidos atentos. Hugo Geada quis perceber o que une e o que separa a mais recente fornada nacional de bandas de guitarras.

Abr 26, 2025 - 22:06
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Grupos de novo rock. Há uma geração a tirar o pó às guitarras
Grupos de novo rock. Há uma geração a tirar o pó às guitarras

Este artigo foi originalmente publicado na revista Time Out Lisboa, edição 672 — Inverno 2025

Um mosh pit onde é preciso proteger o nariz para não sair a sangrar. Um quarteto que dá concertos de costas para o público. Uma banda com um poeta – de crista loira – que declama sobre um homem, Pedro Gato, que levou uma galinha morta e depenada para uma tasca para impressionar uma mulher. Tudo isto pode ser visto em palcos portugueses, numa altura em que parece que ter uma banda e fazer música de guitarra voltou a ser boa ideia. Há salas abarrotadas para ver grupos como bbb Hairdryer, Hetta, Clauthewitch ou Cortada. 

“Quando estávamos a crescer, não era cool ter bandas”, recorda Elisa, a fundadora de bbb Hairdryer, que encheram o B.Leza na apresentação do mais recente disco. “As pessoas estavam mais ocupadas a fazer trap, beats ou electrónica nos seus quartos”, continua.

Pedro Pimenta Almeida, ou Dusmond, dos Cortada, concorda. “Até à pandemia, estava-se a perder esta cena das bandas com guitarras”, explica. “Com o fim do confinamento, surge uma nova vaga de pessoas que querem voltar a tocar, principalmente em banda e com um som mais aberto.”

Que música de guitarra vem a ser esta? Descende do rock e do punk, mas explora os limites destas linguagens e dos instrumentos musicais – há cordas violentadas por chaves de fendas ou tornadas irreconhecíveis pelos pedais de efeitos, pela electrónica. As bandas combinam elementos dos mais variados estilos, como hardcore, shoegaze, psicadelismo, dream-pop, noise, jazz e o que mais for preciso; os músicos revezam-se em diferentes formações, cada uma a fazer a sua mistura.

Luís Barreto é membro de O Triunfo dos Acéfalos e dos bcc, que abriram para bbb Hairdryer em Dezembro. Quando começou a gravar e a editar músicas no Bandcamp, aos 18 anos, fazia tudo sozinho. Em 2019, conheceu Bugs. Apesar de, numa fase inicial, a colaboração se resumir a uma ajuda durante as actuações, acabou por se tornar parte fulcral de O Triunfo dos Acéfalos. 

“Quando trabalhas sozinho, é muito fácil ficares preso em certas ideias, o que acaba por ser um exercício um bocado masturbatório. O Bugs tem imensas ideias, e isso não me permite estagnar”, descreve o músico de Santo Tirso. “É bom existir este espírito de camaradagem.” Luís não está sozinho neste pensamento.

Um novo movimento

Entre os principais representantes deste novo movimento estão nomes como os Hetta, banda de screamo, entre o pós-hardcore e o noise rock, que está a ganhar bastante expressão no circuito internacional, ou os bbb Hairdryer, que que fariam Kurt Cobain corar com a sua exploração do grunge e, no final de 2024, editaram o primeiro disco com a actual formação, A Single Mother / A Single Woman / An Only Child, descrito como queercore. 

Membro de uma geração mais velha, o baterista Hélio Morais, de bandas como Linda Martini, Paus e If Lucy Fell, refere que as bandas de rock nunca desapareceram. “Passei, e ainda passo, muito tempo nos estúdios da HAUS e estou sempre a ver grupos a ensaiar”, defende. Mas reconhece que, nos últimos tempos, tiveram muito menos protagonismo. 

“O rock foi perdendo destaque nos festivais e na imprensa. Mas isso talvez tenha sido reflexo de uma maior diversidade de propostas, além de, particularmente no pós-pandemia, o culto da personalidade instigado pelas redes sociais ter virado a atenção das pessoas para artistas a solo, independentemente de serem pop, afro ou hip-hop”. 

O que explica, então, este ressurgimento? “O interesse pelo punk, rock e música de guitarra mostra que estamos a entrar num novo ciclo”, acredita Francisco Cabrita, vocalista dos Chat GRP. “É um ressurgimento que acontece também por influências externas, graças ao aparecimento de bandas como os Idles ou os Viagra Boys. Isso inspira novas pessoas a fazer música e, quanto mais vemos gente a tocar, mais vontade temos de criar música”. 

Este efeito de bola de neve e o espírito de camaradagem, de norte a sul de Portugal, facilita a proliferação de novas bandas. Foi assim que os Chat GRP tiveram a sua primeira grande oportunidade. “Existe uma comunidade que nos ajuda a sentir mais integrados”, diz José Rego, o baixista da banda, também com uma carreira a solo. “O nosso primeiro concerto fez parte da festa de apresentação do segundo disco dos Máquina. Apesar de não termos nada gravado, apostaram em nós e permitiram que fizéssemos o nosso primeiro espectáculo”. 

Uma maior representação

Este ecossistema permitiu a proliferação de inúmeras bandas, mas também de vozes a que não estávamos habituados a ouvir, incluindo as de artistas queer como Elisa, que se identifica como mulher trans. Ou Desire Haze e Clauthewitch, cujas vocalistas, Laura Olim e Cláudia Noite, respectivamente, dão a cara aos seus projectos. “O rock ainda é dominado pelo machismo, mas sinto que isso está a passar para o outro lado. Conheço muitas mulheres que estão a ouvir Deftones”, exemplifica Elisa. 

Apesar de não acreditar que está a fazer algo novo em relação à sua música – “só existem umas cinco canções originais no mundo” –, a fundadora de bbb Hairdryer acredita que pode servir de inspiração para outras pessoas. “Temos jovens queer que nos seguem e que talvez nem soubessem que gostavam de rock, mas que precisavam de uma voz diferente e com a qual se pudessem relacionar. É importante conseguirmos falar para mais pessoas além do macho da guitarra”. 

Já a vocalista dos Desire Haze considera importante marcar o seu espaço e tentar trilhar um caminho que conduza à mudança.  “Quando começámos a tocar e a estar mais integrados na bolha cultural do Porto, senti que havia pouca representação de mulheres. Faz falta uma certa sensibilidade feminina, e é importante contrariar esta tendência”, defende Laura. 

Cláudia recorda que o espaço das mulheres no rock é uma batalha que dura há décadas e que ainda não está ganha. “Enquanto mulher e ser humano, sinto o privilégio de ter nascido num lugar onde tenho os direitos e a segurança para fazer a arte que gosto. No entanto, o contexto português ainda tem um longo caminho a percorrer em relação à discriminação contra mulheres na música. Por exemplo, os casos de assédio de professores no Hot Clube mostram como este problema é generalizado nos espaços artísticos. Além disso, há uma discrepância evidente entre o número de artistas femininas e masculinos nos festivais de Verão”, lembra a cabecilha de Clauthewitch. “Mas acredito que as coisas estão a mudar.”

De facto, as coisas estão a mudar. Quando parece que o estilo musical está a estagnar, surgem novas pessoas com novas perspectivas. Até a velha guitarra pode ser reinventada. 

“O rock é muito abrangente. Pode ser electrónico ou modulado. Vejam o caso dos Model/Actriz: Jack Wetmore não toca guitarra de forma convencional. Ele usa as partes menos óbvias e não faz acordes”, ilustra José Rego. “Esta exploração electrónica do instrumento mais acessível que temos é a prova de que a guitarra nunca estagna. Quem estagna são as pessoas. Os instrumentos podem ser reinventados de mil e uma formas.”