Cinema: “Presença”, de Steven Soderbergh, conta pontos por inovação e elenco (mas perde por roteiro)
“Presença” é um filme pontuado por bons momentos e ideias inovadoras, mesmo apesar de, em vários pontos, gerar apenas uma desconfortável sensação de deslocamento e ausência.

texto de Davi Caro
Lançado no Brasil no início deste abril último, após chegar às salas de cinema dos EUA em janeiro, “Presença” (“Presence”, 2025) se vale de uma estratégia de marketing dúbia, que alguns poderiam até chamar de enganosa: desde o lançamento do primeiro trailer, nos últimos meses do ano passado, o novo longa do diretor Steven Soderbergh é facilmente enxergado como um filme de terror graças às suas implicações sobrenaturais. O filme em si, no entanto, é muito mais que isso. Usando elementos de suspense a fim de contar uma história de drama familiar e tragédia, a produção se encarrega de fazer muito mais do que simplesmente representar uma narrativa repetitiva e/ou previsível. Se tais objetivos são, de fato, alcançados… é uma outra questão.
Desde o início, as decisões criativas da produção chocam os mais incautos ao colocar o peso do protagonismo sobre os ombros de uma figura invisível (a homônima “presença”) conforme esta entidade – e os espectadores, através do uso de tomadas POV que se estendem durante toda a película – é apresentada aos novos moradores da casa na qual habita. A família Payne, formada por Chris e Rebekah (Chris Payne e Lucy Liu, respectivamente) e seus filhos, Tyler (Eddy Maday) e Chloe (Callina Liang) vê em sua mudança uma oportunidade de superação desta última, que passou pelo trauma de perder Nadia, sua melhor amiga, de uma forma súbita e misteriosa. Em meio a disfunções que criam rupturas na família – salientando a forma controladora com a qual a matriarca conduz a relação com os filhos ao mesmo tempo em que lida com potenciais consequências para atividades ilegais que cometeu no trabalho (o que leva o marido a considerar o divórcio), ou o comportamento tóxico do filho para com os colegas de escola, assim como em relação à própria irmã – Chloe parece gradualmente se dar conta da existência de uma entidade sobrenatural dentro da casa.
A dificuldade de seus familiares em lidar com as questões enfrentadas pela jovem, apesar do relutante, embora sincero apoio que encontra em seu pai, acabam também levando à aproximação da garota de Ryan (West Mulholland), um novo amigo de Tyler, cuja dissimulação fica cada vez mais evidente à entidade, e ao espectador. Ao mesmo tempo em que observa a rotina desafiadora desta família, a observadora figura central se mostra em busca de entender seu próprio propósito, interagindo com o ambiente ao mesmo tempo em que desenvolve um interesse maior em Chloe – algo que se confunde com um senso de proteção que a menina não encontra em mais ninguém na família. À medida que as fissuras familiares se tornam cada vez mais intransponíveis, a missão da misteriosa presença se torna mais clara, assim como sua trágica origem.
O principal mérito de “Presença” fica evidente desde a intrigante sequência de abertura do longa, conforme somos apresentados à casa vazia, às escuras, em completo silêncio. A fluidez do movimento de câmeras, associadas à ambientação confinada da moradia, fazem com que os espaços da própria casa se transformem em personagens por si só, conforme as interações com o reduzido elenco tomam forma. A escolha do ângulo pelo qual a história é contada não apenas cria um senso de imersão maior graças à sua inovação – em uma espécie de conclusão lógica ao conceito de “steadycam” inventado por Sam Raimi para seu antológico “A Morte do Demônio” (1981) – como também possibilita a criação de uma espécie de cumplicidade entre o poltergeist protagonista e a audiência do filme, testemunha ocular dos desdobramentos e das ações, muitas vezes abomináveis, que tomam forma dentro da casa.
O elenco, embora tecnicamente relegado à uma posição de coadjuvante, não passa em branco: Chris Payne esbanja comprometimento em seu papel de pai dedicado e preocupado, ao mesmo tempo em que batalha contra o ceticismo tão inerente à sua parceira. Lucy Liu, por outro lado, alterna passagens boas com momentos pouco espontâneos, ao ponto de seu desempenho no desfecho do filme ser capaz de pegar de surpresa os menos atentos (ou menos cativados). Eddy Maday encarna Tyler de forma bastante tridimensional, apesar de uma participação mais limitada. A riqueza de seu personagem, entretanto, fica realmente em evidência quando pareada com a performance de Callina Liang, cuja Chloe é capaz de contornar arquétipos e encontrar um tipo muito particular de magnetismo, o que justifica sua posição como “co-protagonista”. O mesmo não pode ser dito, porém, do Ryan de West Mulholland, cuja caracterização beira o caricatural. Idem para a médium Lisa (Natalie Woolams-Torres), que possui apenas duas breves e esquecíveis aparições com desempenho fraco, que fica longe de ser o maior problema de um filme cujo foco é tão bem centrado.
Na verdade, o maior problema mora no enredo do filme em si: escrito pelo laureado David Koepp (cujo currículo enfileira sucessos como o primeiro “Jurassic Park”, ou o “Homem Aranha” do já citado Sam Raimi), o roteiro se encaixa bem com a proposta de direção executada por Steven Soderbergh, ao menos em trechos mais decisivos. O desenvolvimento da trama, porém, é menos focado, conforme alude a desenvolvimentos alheios e não explorados de personagens, e peca em resoluções pouco ou nada explicadas que, ao final, parecem apressadas. A trilha sonora, sob a coordenação de Zack Ryan, também é um aspecto que mereceria revisão: para uma produção que valoriza tanto o silêncio e sons ambientes, as poucas passagens sonorizadas se mostram exageradas e capazes de distrair mesmo o mais disposto dos espectadores.
O que fica é a sensação de que “Presença” é um filme capaz de ser melhor apreciado uma segunda vez, transitando entre gêneros e fazendo bom uso de elementos de horror e suspense para contar uma história de drama familiar. Quase como o “Sexto Sentido” de M. Night Shyamalan, que se beneficia de sutis pistas em direção a seu chocante clímax, este novo filme de Soderbergh também consegue explorar o potencial de intercalar trechos mais sutis com passagens mais tensas e enervantes. É difícil, no entanto, esperar de um público cada vez mais exigente e impaciente a consideração de rever um filme deste tipo. Uma lástima, assim, que um longa de tamanho potencial, e que poderia se beneficiar com o devido tempo, possa eventualmente ser relegado ao esquecimento que segue vitimando tantas boas produções ano após ano. “Presença”, é, em suma, um filme pontuado por bons momentos e ideias inovadoras, mesmo apesar de, em vários pontos, gerar apenas uma desconfortável sensação de deslocamento e (sem trocadilhos) ausência.
– Davi Caro é professor, tradutor, músico, escritor e estudante de Jornalismo. Leia mais textos dele aqui.