Adrian Younge reverencia música brasileira em show com Céu, Luiza Lian, Carlos Dafé, Hyldon, Marcos Valle e Samantha Schmutz

“Vocês estão prontos para testemunhar meu sonho?” Essa foi a pergunta feita em português por um visivelmente emocionado Adrian Younge para a plateia do teatro Cultura Artística

Mai 10, 2025 - 05:27
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Adrian Younge reverencia música brasileira em show com Céu, Luiza Lian, Carlos Dafé, Hyldon, Marcos Valle e Samantha Schmutz

texto de Fabio Machado
fotos de Cauê Diniz

“Vocês estão prontos para testemunhar meu sonho?” Essa foi a pergunta feita em português por um visivelmente emocionado Adrian Younge para a plateia do Teatro Cultura Artística que o aguardava para o início de uma apresentação singular, por vários motivos.

O mais óbvio é por ser parte da tour que celebra o lançamento de “Something About April III” (2025), disco mais recente do produtor e compositor norte-americano que finca raízes sólidas no Brasil: as letras foram escritas em português pelo próprio Adrian, que também reuniu outros músicos e cantores daqui para traduzir seu sonho em sons neste disco e também ao vivo no palco deste teatro no centro de São Paulo. Uma formação que reúne músicos do Brasil e do exterior, com direito a uma “orquestra de 40 peças” (conforme anunciado no cartaz do show).

Para completar, Adrian também fazia aniversário no dia. Ou seja: um turbilhão de sentimentos e participações que deixavam realmente uma atmosfera de sonho nas dependências do teatro (isso desde o início, com as luzes apagadas e o público embalado pela seleção de clássicos do soul, funk e hip hop feito pelo DJ J.Rocc).

Adrian Younge e Leo Moraes

Desde o início, a primeira sensação ao entrar na sala é a imponência do teatro, reaberto ao público em 2024 após extensas obras de reconstrução (e que presenciou um desmaio de Patti Smith em janeiro). O piso de madeira ainda brilha. Seja nos balcões ao redor da sala ou nos demais lugares, a impressão é que você terá uma experiência com acústica impecável. E foi o que aconteceu quando os primeiros acordes da orquestra e banda regidas por Adrian Younge ecoaram pela sala, manifestando finalmente seu sonho.

E está longe de ser um sonho “tranquilo”: Adrian se movimenta pelo palco a todo momento (quase deslizando a la Michael Jackson algumas vezes) enquanto rege a orquestra, interage com os músicos, e parece sentir cada acorde, cada frequência e cada voz por ali. E as vozes são muitas, cada uma emprestando seu timbre e interpretação particular para as canções escolhidas – a exemplo de Loren Oden, cantor norte-americano e colaborador antigo de Younge cuja voz repleta de referências soul brilha em praticamente todo o set, seja solo ou em dueto com as brasileiras Luiza Lian, Céu e Samantha Schmutz.

Loren Oden e Luiza Lian

As cantoras também tiveram destaque em diferentes momentos do show: Luiza logo no início, cantando com maestria músicas dos álbuns mais antigos de Younge; Samantha equilibrou potência e romance em “Nossa Cor “(faixa do disco “Linear Labs: São Paulo” lançado em 2024) e “More than Love” (outra parceria com Younge, ainda a ser lançada); e Céu energizou os presentes com “Reescreve” e “Novela” (esta última faixa-título do disco feito em Los Angeles com Adrian Younge e Pupilo), além de fazer um excelente “momento Motown” em “Pôxa, Meu Amor”, a primeira canção de “Something About April III” a aparecer no set. Tudo isso com o reforço de um time de backing vocals formado por Sthe Araújo, Manu Julian, Antonio Pinto, Miguel Lian e o já citado Loren Oden.

Ao longo da apresentação, Adrian faz questão de agradecer ao público em português e inglês, numa entonação grave e às vezes quase sussurrando, como se também estivesse realmente narrando o próprio sonho. E mesmo sendo o regente de todos ali, ele sabe a importância de dar espaço a todos no time, não apenas aos nomes mais famosos. Seja em agradecimentos ou dando o devido espaço para solos e brincadeiras com os outros membros da banda e da orquestra, como no impecável solo de saxofone da espanhola Alicia Carmiña, que ganhou o público indo até a frente e fazendo o clássico jogo de pergunta e resposta com a melodia (“eu toco e vocês cantam”). Também vale citar os momentos solo de Sam Reid (teclados), Manoela Wunder (viola) e Tylana Renga (violino). Ou mesmo para a presença de palco e estilo únicos de Jack Waterson (guitarras), outro parceiro de longa data de Younge.

Alicia Camiña

Ao assistir o show, a impressão é que os músicos conseguem imprimir sua identidade nos solos sem esquecer do papel de cada um como parte do conjunto: cada membro da orquestra e da banda contribui para uma experiência cinematográfica ao executar os arranjos de Younge com precisão. E de alguma forma, tudo flui com um clima descontraído no palco, aquela sensação especial quase como uma jam session de que se quisessem, eles poderiam estar gravando um disco ali naquele momento, com o público como testemunha ocular.

Mas a noite ainda reservava mais surpresas para o público. Após mais uma sequência de músicas de “Something About April III”, Younge rasgou elogios e pediu palmas para a participação de Carlos Dafé, que praticamente botou a platéia para dançar nas cadeiras fazendo “Amor enfeitiçado” e “Bloco da Harmonia”. Dali pra frente, o jogo já estava ganho – tanto para Younge, realizado por tocar com um ídolo e amigo, como por todos os presentes no Cultura Artística. O clima se manteve quando o próximo convidado foi anunciado: Hyldon, que fez questão de chamar Adrian de “brother” antes de tocar “Olhos Castanhos” e “As Dores do Mundo” (essa cantada em peso pelo público).

Marcos Valle

Na sequência, outro convidado de peso: Marcos Valle, músico considerado por Adrian o principal incentivador do selo Jazz is Dead (responsável por lançar discos e realizar shows com alguns dos grandes nomes da música brasileira, como Azymuth e os próprios Hyldon e Marcos Valle). Valle sentou em frente ao teclado Fender Rhodes e fez uma bela versão de “Gotta Love Again”, acompanhado pela voz de Loren Oden. Uma sequência muito bonita que mostra a reverência de Adrian Younge para com a música brasileira e os artistas daqui que nem sempre tiveram o devido reconhecimento. Conforme dito pelo próprio Younge durante a apresentação: “Eu queria fazer isso porque vocês (brasileiros) deram tanta cultura pro mundo, mas acho que não receberam tanto de volta. Então isso é pra vocês”.

Já próximos do encerramento, Younge fez mais duas músicas próprias (“Sound of a Man” e “Shot me in the Heart”) com performance irrepreensível da orquestra e também do baterista Marcelo Bucatter, que mostrou desenvoltura não só em levadas típicas da música brasileira, mas também nos grooves musculares herdados do blues, do hip hop e da soul music presentes nos arranjos.

Loren Oden e Céu

E a última música foi um toque de mestre: “Na rua, na chuva, na fazenda”, hit de Hyldon cantado por ele e todos os outros convidados com o coro em peso da plateia. Um final mais do que especial para Adrian, ainda mais com o “Parabéns a você” (com direito a bolo) emendado no final. “Eu não tenho palavras para esta noite. Esta noite, meu sonho se tornou realidade”. A emoção tomou conta do praticamente brasileiro Adrian Younge – e na real, de todos que estavam presenciando esse espetáculo.

No início, ele também havia comentado que nunca iria imaginar que uma criança preta de Los Angeles que brincava de fazer beats no quarto chegaria até aqui: em meio a ícones da música de um país estrangeiro, mas ainda assim tão familiar. Os sonhos não envelhecem, e de alguma forma eles se realizam de forma ainda mais fantástica do que o esperado.

Carlos Dafé

Setlist:
moon traveling
human absence
thunderstrike
Turn down the sound
it’s me
First step on the moon
Reverie
visual assault
portshute
sirens
depois do amor
nossa cor
More than love
Novela
Reescreve
Poxa meu amor
Ainda preciso do Sol
nós somos as estrelas
o som do amor
Esperando por você
Música na minha fantasia
Amor enfeitiçado
Bloco da harmonia
Olhos castanhos
As dores do mundo
Gotta love again
Wanda Vidal

Bis:
sound of a man
shot me in the heart
Na chuva na rua na fazenda

– Fabio Machado é músico e jornalista (não necessariamente nessa ordem). Baixista na Falsos Conejos, Mevoi, Thrills & the Chase e outros projetos.