A burocracia europeia vs a política e o milagre europeu
O funcionamento e as lógicas internas dos órgãos europeus estão envoltos numa muito significativa complexidade. A necessidade de serem criados cursos superiores sobre Estudos Europeus prova isso mesmo. Já desde há muito que os cidadãos comuns sentem dificuldade em opinar sobre o projecto europeu sem correr o risco de cometer uma ou muitas incorrecções. À distância ou de perto, é fácil de ver que aquilo é burocracia elevada ao nível de ciência espacial. Uma das consequências deste nível de burocracia é o efectivo distanciamento entre os cidadãos e as instituições europeias. Uma outra consequência é a fauna que se desenvolveu nos corredores do poder, com os seus hábitos e inevitáveis vícios. Pelo que vejo, este nível de burocracia obedece a uma lógica de travões e contra-poderes, ou seja, a burocracia europeia é uma forma de limitar e até impedir que o projecto europeu fique nas mãos de políticos voluntariosos. Menos burocracia levaria a que todos ficássemos expostos a fricções muito mais acentuadas entre os 27. Acredito que menos burocracia daria mais margem aos políticos e isso aproximar-nos-ia do federalismo, que entusiasma alguns e assusta muitos mais. A Europa avançou sempre de crise em crise. A questão da paz na Ucrânia irá exigir que a UE se reinvente mais uma vez. Fora da agitação que uma ameaça existencial deste dimensão pode provocar, as rotinas europeias anestesiam os políticos e os europeus, e o marasmo instala-se. Nos momentos mais críticos, a burocracia europeia verga-se à política. Isso aconteceu na crise das dívidas soberanas, no Brexit, durante a crise migratória e na pandemia. A invasão da Ucrânia e a crise energética daí decorrente está a ser mais um desses momentos definidores. Aqueles que, por incapacidade pessoal em tomar decisões, preferem ser governados por líderes fortes, irritam-se muito com a burocracia europeia, mas irritam-se muito mais com os políticos europeus que não decidem de acordo com as suas preferências. Entre os apreciadores de líderes fortes, ser contra a União Europeia é a mais pura das sinalizações de virtude. Veja-se a frase de Orbán aqui trazida em boa hora pelo Pedro Correia. Tudo o que não corre de acordo com as preferências dessas forças mais próximas do autoritarismo, sejam elas de esquerda ou sejam de direita, a União Europeia é sempre a culpada. Ora porque permite, ora porque proíbe. Ora porque há imigrantes a mais, ora porque há bebés a menos, ora por causa da inflação, ora por causa das taxas de juro altas, ora porque não tem forças armadas, ora porque se as tivesse não podia decidir o que fazer com elas. Os outros grandes blocos económicos irritam-se igualmente com a União Europeia. Ora porque nunca sabem bem a quem se dirigir para negociar, ora porque são afectados pela regulação europeia, ora porque invejam um mercado da sua dimensão, ora porque não conseguem fazer o mesmo com os seus vizinhos, ora porque vivem bem pior do que os europeus. Como é que 20 países conseguem confiar uns nos outros o suficiente para partilhar uma moeda? Como é que 27 países que falam 24 línguas diferentes se conseguem entender? Basta ver que no continente americano existem 11 países com cerca de 460 milhões de habitantes que partilham o castelhano e o melhor que conseguem é andar sempre à cabeçada uns com os outros. Do Norte de África até ao Médio Oriente, 19 países contíguos, com cerca de 360 milhões de habitantes, partilham a língua árabe. Sobre o entendimento entre eles, nem é preciso falar. O projecto europeu é realmente muito irritante. Não tenho a menor dúvida que a União Europeia irá mudar, até porque perante os desafios com que teve de lidar, nunca deixou de o fazer. E como em tudo na vida, talvez um dia acabe, mas se isso acontecer todos ficaremos a perder. A União Europeia é um objecto político altamente improvável, cheio de defeitos, com tantos que só me faz lembrar os defeitos da própria democracia, e tal como com ela todas as alternativas são piores. Adenda: Parece que foi combinado. Hoje no The Telegraph: "Trump: EU was formed to screw USA – and they’ve done a good job of it".

O funcionamento e as lógicas internas dos órgãos europeus estão envoltos numa muito significativa complexidade. A necessidade de serem criados cursos superiores sobre Estudos Europeus prova isso mesmo. Já desde há muito que os cidadãos comuns sentem dificuldade em opinar sobre o projecto europeu sem correr o risco de cometer uma ou muitas incorrecções. À distância ou de perto, é fácil de ver que aquilo é burocracia elevada ao nível de ciência espacial.
Uma das consequências deste nível de burocracia é o efectivo distanciamento entre os cidadãos e as instituições europeias. Uma outra consequência é a fauna que se desenvolveu nos corredores do poder, com os seus hábitos e inevitáveis vícios.
Pelo que vejo, este nível de burocracia obedece a uma lógica de travões e contra-poderes, ou seja, a burocracia europeia é uma forma de limitar e até impedir que o projecto europeu fique nas mãos de políticos voluntariosos. Menos burocracia levaria a que todos ficássemos expostos a fricções muito mais acentuadas entre os 27. Acredito que menos burocracia daria mais margem aos políticos e isso aproximar-nos-ia do federalismo, que entusiasma alguns e assusta muitos mais.
A Europa avançou sempre de crise em crise. A questão da paz na Ucrânia irá exigir que a UE se reinvente mais uma vez. Fora da agitação que uma ameaça existencial deste dimensão pode provocar, as rotinas europeias anestesiam os políticos e os europeus, e o marasmo instala-se. Nos momentos mais críticos, a burocracia europeia verga-se à política. Isso aconteceu na crise das dívidas soberanas, no Brexit, durante a crise migratória e na pandemia. A invasão da Ucrânia e a crise energética daí decorrente está a ser mais um desses momentos definidores.
Aqueles que, por incapacidade pessoal em tomar decisões, preferem ser governados por líderes fortes, irritam-se muito com a burocracia europeia, mas irritam-se muito mais com os políticos europeus que não decidem de acordo com as suas preferências. Entre os apreciadores de líderes fortes, ser contra a União Europeia é a mais pura das sinalizações de virtude. Veja-se a frase de Orbán aqui trazida em boa hora pelo Pedro Correia. Tudo o que não corre de acordo com as preferências dessas forças mais próximas do autoritarismo, sejam elas de esquerda ou sejam de direita, a União Europeia é sempre a culpada. Ora porque permite, ora porque proíbe. Ora porque há imigrantes a mais, ora porque há bebés a menos, ora por causa da inflação, ora por causa das taxas de juro altas, ora porque não tem forças armadas, ora porque se as tivesse não podia decidir o que fazer com elas.
Os outros grandes blocos económicos irritam-se igualmente com a União Europeia. Ora porque nunca sabem bem a quem se dirigir para negociar, ora porque são afectados pela regulação europeia, ora porque invejam um mercado da sua dimensão, ora porque não conseguem fazer o mesmo com os seus vizinhos, ora porque vivem bem pior do que os europeus. Como é que 20 países conseguem confiar uns nos outros o suficiente para partilhar uma moeda? Como é que 27 países que falam 24 línguas diferentes se conseguem entender? Basta ver que no continente americano existem 11 países com cerca de 460 milhões de habitantes que partilham o castelhano e o melhor que conseguem é andar sempre à cabeçada uns com os outros. Do Norte de África até ao Médio Oriente, 19 países contíguos, com cerca de 360 milhões de habitantes, partilham a língua árabe. Sobre o entendimento entre eles, nem é preciso falar. O projecto europeu é realmente muito irritante.
Não tenho a menor dúvida que a União Europeia irá mudar, até porque perante os desafios com que teve de lidar, nunca deixou de o fazer. E como em tudo na vida, talvez um dia acabe, mas se isso acontecer todos ficaremos a perder.
A União Europeia é um objecto político altamente improvável, cheio de defeitos, com tantos que só me faz lembrar os defeitos da própria democracia, e tal como com ela todas as alternativas são piores.
Adenda:
Parece que foi combinado.
Hoje no The Telegraph:
"Trump: EU was formed to screw USA – and they’ve done a good job of it".