Uma jornada pelo mundo dos golpes amorosos

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Mai 14, 2025 - 00:40
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Uma jornada pelo mundo dos golpes amorosos

Tradução de Isa Mara Lando
Ilustrações de Kumé Pather

 

Natasha Bridges bombardeava perfis de homens no Facebook com uma mesma mensagem. Oi. Oi. Oi. Oi. Muitos a ignoravam, mas, surpreendentemente, muitos lhe respondiam. Ainda mais surpreendente era a rapidez com que alguns pareciam se apaixonar por ela.

Você seria capaz de amar um homem mais velho?

Foi o que perguntou um sujeito chamado James,* depois de apenas algumas horas conversando pelo aplicativo. Ele contou que tinha 56 anos e gostava de andar na sua moto Harley-Davidson. Depois de enviar a Natasha fotos da moto, ele descreveu como faria sexo oral nela (sem que ela tivesse pedido).

Outros homens exibiam comportamento semelhante. Diziam a Natasha que ela era linda, que gostavam do seu sorriso, da sua conversa sedutora, e que mal podiam esperar para conhecê-la pessoalmente. Havia também uns tipos mais sentimentais, como Brett:

Não sei se algum dia vou voltar a ser feliz. Acho que meu único sonho é ter uma mulher especial ao meu lado.

Já falei isso há uns dias, mas faz muito tempo que não te vejo. Pode me mandar umas fotos? Eu ia adorar te ver.

Natasha ignorou o pedido de Brett e não respondeu à sua última mensagem amorosa. Esse silêncio poderia ser interpretado como uma crueldade com o rapaz apaixonado. Mas considerando a verdade – isto é, que Natasha Bridges simplesmente não existe –, cruel mesmo seria ela ter continuado a conversa.

A pessoa que enviava mensagens para Brett, James e dezenas de outros americanos não era uma mulher e não se chamava Natasha. Era, em vez disso, um rapaz chamado Richard – mas que prefere o apelido Biggy. Ele tinha 28 anos e era nigeriano. As fotos do seu perfil no Facebook, onde ele se fazia passar por Natasha – uma mãe solteira de 32 anos, moradora de Wisconsin, nos Estados Unidos, interessada em economia e criptomoedas – tinham sido roubadas das redes sociais de uma mulher real chamada Jennifer. Biggy usava diferentes perfis para enganar e seduzir desconhecidos. Em uma de suas contas, ele fingia ser um personal trainer; em outra, um militar americano que morava no exterior.

Eu sabia disso tudo porque Biggy estava sentado no sofá do meu quarto de hotel em Lagos, jogando o videogame Pro Evolution Soccer 17, enquanto eu lia no seu iPhone as mensagens que ele tinha enviado a vários estrangeiros desavisados. Quando perguntei por que ele tinha ignorado Brett, Biggy deu de ombros. Marcou, no videogame, mais um gol para a Austrália contra o Japão na final da Copa da Ásia. “Brother, é o que te falei. Ser um ‘Yahoo Boy’ é muito estressante”, ele respondeu, sem tirar os olhos do jogo. “Você acha que é fácil fazer alguém se apaixonar por você? É o mesmo esforço que na vida real, mas com uma diferença: você tem que fazer isso fingindo ser outra pessoa.” 

Na Nigéria, os Yahoo Boys são criminosos conhecidos por dar golpes na internet. O nome é uma referência à plataforma de e-mails Yahoo, que era muito popular na Nigéria na década de 2000 e sempre utilizada em esquemas assim. No crime, em si, não há novidade: os Yahoo Boys são a encarnação mais recente de um tipo de golpista que, no passado, era conhecido como “419” (na Nigéria, esse é o número do artigo do código penal que tipifica as fraudes). Esses pioneiros do golpe enviavam cartas pelo correio – e, mais tarde, por e-mail – prometendo ajudar pessoas desconhecidas a ficarem ricas, contanto que, pra isso, elas dessem algum dinheiro adiantado. Biggy, por sua vez, é um tipo específico de Yahoo Boy: um “golpista do amor”, que finge ser outra pessoa para seduzir estrangeiros, tanto homens quanto mulheres, e convencê-los a enviar dinheiro para ele.

A especialidade de Biggy é criar intimidade. Ele investe tempo construindo o que parece ser um relacionamento real, com momentos emotivos e prosaicos. Faz elogios a suas vítimas, conta piadas, demonstra interesse. “O mais importante para um Yahoo Boy é manter a conversa viva”, ele me disse. “Namorar é questão de paciência. Leva muito tempo para um cliente começar a confiar em você.”

“Cliente.” Os Yahoo Boys, como eu logo pude ver, adoram eufemismos.

Biggy calculou que, em dez anos atuando como namorado fake, já tinha embolsado ao menos 30 mil dólares de suas vítimas. Pessoas que queriam ser amadas. Pessoas como minha mãe.

Oi Sílvia, como vai? Aqui é o Brian. A gente se conheceu pelo Tinder. Espero que esteja tendo um dia maravilhoso. Para mim, seria um prazer se pudéssemos nos conhecer melhor. Respondendo à sua pergunta, já fui casado, mas agora me divorciei e estou sozinho.

Espero ter notícias suas em breve! 

Um abraço caloroso 

Brian Adkins

Carmel, NY 10512

bcmakins@aol.com

Minha mãe, Sílvia, pode ser considerada uma mulher bem-sucedida por vários parâmetros. É dentista, abriu um consultório na Espanha antes dos 30 e, nos vinte anos que se seguiram, atendeu cerca de 10 mil pacientes. Casou-se e teve três meninos – sou o caçula. Em 2003, quando tinha 44 anos, se divorciou do meu pai, num processo complicado que custou muito dinheiro. Depois da separação, meus irmãos e eu moramos com ela em vários apartamentos alugados em Madri. Durante muito tempo, o único bem que ela possuía era um velho Citroën C1. A maior parte da sua renda era gasta com alimentação, educação e férias anuais conosco. Ela sempre dizia: “Livros e viagens – aconteça o que acontecer, sempre haverá dinheiro para isso na minha casa.”

Um dia, em dezembro de 2015, notei que ela estava mais radiante do que o normal. No almoço de domingo, nos contou que estava se relacionando com uma pessoa. Tinham se conhecido no Tinder, um aplicativo de namoro que eu a incentivei a usar. O homem se chamava Brian e era um militar americano de 52 anos, bonitão, divorciado. Ela nos disse que sentia uma conexão verdadeira com ele, e que esse sentimento era recíproco.

Num primeiro momento, eu e meus irmãos não demos muita bola. Jaime e Miguel tinham vinte e poucos anos, estavam começando suas carreiras. Eu tinha 19 e era o único que ainda morava com a nossa mãe, mas vivia ocupado com a faculdade. Para nós, o novo romance dela era só um ruído de fundo, uma novidade pouco importante. Mais tarde, porém, ela nos contou que Brian estava em missão na Síria. Meu irmão Miguel, que é piloto da Força Aérea Espanhola, tripudiou dela: “Fala sério, você acredita mesmo nisso? É muito esquisito!”

Minha mãe, dali em diante, passou a ser mais cautelosa ao compartilhar notícias do Brian conosco. Ela falava sobretudo comigo. Chegou a me mostrar e-mails longos e apaixonados que havia trocado com o namorado. Ela estudou inglês na escola, mas usava o Google Tradutor para conseguir se expressar melhor. Notei que as mensagens do Brian também continham erros de gramática, embora ele dissesse ser americano. Mas eu pensava: “E daí?”

“Às vezes eu digo ao Brian: ‘Você está indo muito rápido!’”, minha mãe comentou comigo, a certa altura. Pouco tempo antes, ela tinha enviado para ele a seguinte mensagem:

Espero que tenhamos muitos finais de ano juntos. Acho que o amor de um casal é o caminho a seguir, tenho certeza de que nosso começo está indo bem e estou gostando de tudo isso. Estamos em situações diferentes, minha vida é muito confortável, a sua não, estou cercada de amigos e família, e você só tem outros homens ao seu redor, todos cansados da situação, assim como você. E assim… Compreendo que você se apegue a mim, e de certa forma gosto muito disso. Mas, por outro lado, fico um pouco ansiosa com a responsabilidade de ser tudo isso que você espera de mim. 

Embora minha mãe hesitasse, a alegria que ela sentia era maior do que tudo. Um dia ela chegou em casa com dois anéis: um para ela, outro para o Brian. “Ele está vindo para a Espanha!”, ela anunciou, sorridente. Brian havia dito que planejava sair do Exército.

Foi só então que eu e meus irmãos começamos a demonstrar nossa preocupação. Perguntamos se ela já havia conversado com Brian por vídeo. Quando ela respondeu que não, a gente percebeu que aquilo era realmente muito suspeito. Como era possível que, com exceção de algumas poucas fotos, ela nunca tivesse visto a pessoa que dizia amá-la? Acabamos brigando por causa disso, e minha mãe, magoada porque seus filhos não estavam lhe dando apoio, se trancou no quarto, dizendo: “Vou conversar com meu namorado.”

Em janeiro de 2016, cerca de um mês depois de Brian ter conhecido minha mãe no Tinder, Jaime me enviou uma mensagem. Eu estava na faculdade, estudando para uma prova de microeconomia. “Carlos, temos que fazer alguma coisa.” Dava para perceber que meu irmão estava nervoso. “Esse cara disse para a mamãe que vai enviar a ela umas barras de ouro maciço que encontrou num esconderijo de terroristas. Isso é um golpe!”

Larguei meus livros na hora e fiz algo que já deveria ter feito àquela altura: pesquisei no Google por “golpes” e “soldados americanos”. Apareceram dezenas de resultados. Me deparei com todo tipo de alerta sobre golpistas, muitos deles de países da África Subsaariana, que fingiam estar apaixonados por suas vítimas e depois de um tempo lhes pediam dinheiro. Alguns diziam que podiam enviar ouro e pedras preciosas para construir uma nova vida com o parceiro – bastava apenas que a pessoa custeasse o frete. Depois que a vítima enviava o dinheiro, das duas uma: ou o golpista continuava inventando histórias para conseguir mais grana (caso achasse que isso era possível), ou simplesmente desaparecia.

Estava na cara que minha mãe tinha virado alvo de um desses golpistas – o que, para mim, era difícil de aceitar. Eu tinha certeza de que ela era mais esperta do que as pessoas que eu via no noticiário, gente que entregou as economias de uma vida inteira para criminosos na internet. Para que minha mãe não tivesse qualquer dúvida, fui atrás de provas concretas para convencê-la. Fiz algumas pesquisas e descobri um aplicativo que conseguia rastrear a localização de um remetente de e-mail usando o endereço de IP do computador. Com isso, bastava eu entrar no Gmail da minha mãe e ver de onde Brian vinha enviando suas mensagens.

Enquanto eu fazia essa pesquisa, Jaime saiu para almoçar com a nossa mãe e resolveu confrontá-la. Disse que ela obviamente vinha conversando com um namorado fake, um golpista. Ela ficou confusa. Brian tinha enviado muitos e-mails e fotos de si mesmo, dizendo estar apaixonado. Como poderia não ser real? “Mãe, sinto muito”, disse Jaime, “mas não existe barra de ouro nenhuma, nem vai existir. Fim de papo.”

Quando cheguei em casa naquela noite, minha mãe estava sozinha e muito chateada. Não parecia pronta para abandonar aquela fantasia e queria acreditar que tudo não passava de um mal-entendido. Sentamos no sofá e, usando o aplicativo que eu havia baixado, mostrei a ela que era possível rastrear a origem de um e-mail. Dei como exemplo uma mensagem que eu havia recebido do meu pai, que morava na China: “Viu? Ele me enviou esse e-mail de Xangai.” Ela então me deu a senha do seu Gmail e eu pus o aplicativo para rodar. Conclusão: os e-mails de Brian não tinham vindo da Síria, e sim de Lagos, na Nigéria.

Na hora, minha mãe ficou tão pálida quanto a parede branca atrás dela. Não falou nada por alguns segundos, até que disse baixinho, cheia de vergonha: “Como eu sou boba…”

Depois de alguns dias, porém, ela já parecia ter superado o baque. Apagou a maioria dos e-mails enviados pelo Brian e também os aplicativos de namoro. “Não quero mais saber de homens por um tempo”, ela me disse, rindo. Continuou mergulhada no trabalho e, meses depois, foi até entrevistada por um jornal espanhol sobre sua clínica de odontologia. Passado um bom tempo, voltou a namorar, mas não de forma séria. De vez em quando, me dizia: “Acho que recebi uma mensagem de outro golpista.” Ela agora achava graça da situação.

Em fevereiro de 2020, quatro anos depois do caso Brian, me mudei para um apartamento com um amigo. Eu tinha 24 anos e já trabalhava como jornalista. Jaime morava na Alemanha e Miguel estava em Badajoz, a 320 km de Madri. Eu sabia que esse momento seria difícil para minha mãe, sozinha pela primeira vez em muitos anos. Para piorar, duas semanas depois de eu ter saído de casa, o primeiro-ministro declarou estado de emergência: era a pandemia de Covid, e a Espanha foi um dos países mais atingidos pela primeira onda do vírus.

Sozinha durante três meses de confinamento obrigatório, minha mãe ficou ansiosa e deprimida. Passei então a violar o isolamento social para ficar três dias por semana ao lado dela. Lembro de dirigir pelas ruas desertas de Madri, na esperança de evitar a polícia, zangado com meus irmãos por não estarem perto para ajudá-la também, zangado com o mundo por me colocar nessa situação e zangado comigo mesmo por estar zangado. Enquanto jantávamos, nós assistíamos ao noticiário na tevê e minha mãe falava de sua solidão. Acabamos brigando algumas vezes. Ela me dizia: “Você não entende o que é sentir que ninguém precisa de você.” Eu pensava que eu devia ser invisível, então.

Me peguei pensando no Brian naquele momento, me perguntando por que minha mãe nunca havia desconfiado dele. Ela era uma mulher inteligente, independente, a âncora da nossa família, a força constante nos nossos altos e baixos. Como ela largou a âncora e ficou tão solta? O que eu não tinha visto? Era como se houvesse um espelho na minha mente: quando eu punha a tristeza da minha mãe diante dele, o reflexo que eu via era do golpista. Mas eu não sabia como era o tal Brian, qual era o seu nome verdadeiro ou como ele praticava esses golpes.

Em meados de 2021, falei para minha mãe que eu queria ir à Nigéria para procurar esse enganador. Ela estava na cozinha, preparando algo para comer. Fiquei com receio de que ela reagisse mal. “Se eu não encontrar o cara”, acrescentei logo em seguida, “vou tentar pelo menos entender por que ele fez o que fez”. Minha mãe me olhou, sorrindo, e disse: “Toda vez que ouço All of Me, do John Legend, eu me lembro dele. Ele dedicou essa música para mim.”

 

Meu contato na Nigéria, Bukky Omoseni, estava me esperando no aeroporto de Lagos quando cheguei, quase à meia-noite, em março de 2022. Bukky, dali em diante, seria meu fixer, como são chamadas as pessoas que, num país estrangeiro, exercem a função de intérprete e assistente para jornalistas. Eu o conheci por intermédio de um colega e sabia, de antemão, que Bukky achava improvável que encontrássemos o tal Brian. 

“É como encontrar uma agulha num palheiro”, ele me disse por telefone, quando eu ainda estava em Madri. Bukky provavelmente estava certo. Ninguém até hoje conseguiu estimar quantos “golpistas do amor” existem na Nigéria, mas é possível que sejam centenas de milhares. A única pista que eu tinha era o endereço de e-mail que Brian havia usado para falar com minha mãe. Mandei uma mensagem fingindo ser ela, dizendo que estava com saudades, mas o e-mail voltou.

Bukky, embora não tivesse fé na minha investigação, prometeu que me colocaria em contato com outros golpistas, e cumpriu a palavra: quando pousei no aeroporto, ao lado dele estava Biggy. Esse jovem rapaz, que Bukky dizia ser seu “assistente”, tem esse apelido por causa do rapper americano Biggie Smalls, mais conhecido como Notorious B.I.G., morto em 1997. Biggy tinha mesmo uma leve semelhança com o rapper, que, segundo ele, era seu “mentor” na vida. “Ele é o notório Biggie, eu sou o glorioso Biggy”, ele me disse, brincando.

O motorista de Bukky, chamado Skulls (crânios), nos levou até o hotel onde eu me hospedaria, em Ikeja, capital do estado de Lagos. Era um prédio de dois andares com um pátio, uma boate e uma piscina coberta no térreo. Quando entramos no meu quarto, dava para sentir as paredes tremerem – a festa que rolava no andar de baixo estava a todo vapor. Um garçom do hotel bateu à porta. Trazia uma garrafa de uísque e um balde de gelo. “Vamos comemorar”, disse Bukky, animado. “O Carlos chegou!” 

A bebida agilizou a conversa. Depois de dois copos, descemos para a boate, onde mulheres dançavam, uma banda tocava afrobeat e homens jogavam dinheiro no chão. Bukky se enturmou com um grupo de cantores iorubás e eu me sentei no sofá com Biggy, que bebia e fumava em silêncio. Tentei puxar conversa, mas a música estava muito alta. Pedi a ele um cigarro, para ter algo para fazer enquanto observava a cena.

Na manhã seguinte, Bukky começou a se comportar de um jeito estranho. Foi ao banco depositar dinheiro, mas não conseguiu se lembrar da senha da sua conta. Quando voltou ao hotel, parecia indisposto, repetindo sem parar uma só palavra: “Setembro. Setembro. Setembro.” Eu não sabia se ele ainda estava bêbado da noite anterior ou se tinha consumido alguma droga. Biggy me acalmou e disse: “Ele deve estar com malária.”

Bukky caiu num sono agitado. De tempos em tempos, acordava e me pedia desculpas. Eu implorava para que fôssemos a um médico, mas ele dizia que já estava se sentindo melhor e logo voltava a dormir. Ficamos nesse vaivém durante vários dias. (Ele acabou indo para o hospital; mais tarde, sua mãe me contou que ele teve malária e febre tifoide.) 

Foi assim que acabei passando a maior parte do tempo com Biggy. Quando eu não estava entrevistando algum dos outros Yahoo Boys que conheci na viagem – uma dúzia, ao todo –, ficávamos no meu quarto assistindo a filmes antigos de Hollywood e reprises do futebol inglês. Biggy se tornou meu guia não oficial em Lagos, a maior cidade do estado e de toda a África.

Certo dia, saímos para tomar café da manhã. Era domingo e as ruas estavam cheias. Os moradores de Lagos abominam a preguiça. Como diz um ditado no idioma pidgin, “I no come Lagos come count bridge” (Não vim a Lagos para contar pontes.) A frase faz referência à geografia da cidade, marcada por uma laguna costeira e muitas pontes. Enquanto eu e Biggy caminhávamos entre as barracas que vendiam alimentos, animais e todo tipo de produto que se possa imaginar, era possível sentir o espírito do empreendedorismo local.

Perguntei ao Biggy: “Quer comer alguma coisa internacional? Pizza? Sushi?”

– Já está cansado de arroz jollof, cara? –, ele respondeu

– Não! Adoro. Mas talvez você queira experimentar algo diferente.

– Nunca provei sushi, mas não gosto de comida chinesa.

– Sushi não é comida chinesa, é japonesa.

– O quê? Você está bêbado?! – gritou Biggy, se fazendo ouvir por toda a rua. – Sushi é comida chinesa! Todo mundo sabe disso.

Decidimos comer pizza.

Biggy era um tipo corpulento, de barba bem cuidada e roupas elegantes. Naquele dia, vestia boné Adidas e camiseta de um time de beisebol de Toronto. Circulava por Ikeja como se fosse o dono do pedaço, embora morasse a uma hora de distância dali, num bairro operário. Acenava para todos que faziam contato visual com ele. A certa altura desacelerou o passo, segurou meu braço e disse, com sua voz grave: “Olhe ali.” Ele apontou discretamente para dois jovens com dreadlocks nos cabelos e roupas de grife que estavam entrando em um Lexus. “Esses caras são envolvidos com o Yahoo.”

Basta mencionar as palavras Yahoo Boys na frente de um nigeriano para entender como esses vigaristas se tornaram um assunto nacional. Muita gente os enxerga como jovens de má índole, que escolheram uma vida de crimes, surrupiando dinheiro de estrangeiros e manchando a reputação do país. “Eles estão cegos pela ganância, pelo desejo de ganhar dinheiro rápido”, me disse Ademola Adeeko, um comentarista político nigeriano. De um policial de alto escalão, ouvi que a culpa é da educação que eles recebem: “A questão não é o que a polícia pode ou não fazer. Só os pais podem orientá-los direito.”

Mas parte da opinião pública vê os Yahoo Boys como rapazes que não tiveram chance na vida. A Nigéria tem uma taxa de desemprego estimada em 53,4% entre os jovens de 15 a 34 anos, e uma renda mensal média que continua mais ou menos igual desde 1980. Muita gente reclama que o governo é mergulhado em corrupção, e que isso é muito mais grave do que fazem os Yahoo Boys. “Os golpistas roubam dos gringos e gastam o dinheiro aqui”, me disse um músico de Lagos. “Já os políticos roubam de nós e gastam no exterior.” Um Yahoo Boy com quem conversei me disse o seguinte: “Você vai se candidatar a um emprego que paga 25 mil nairas [moeda nigeriana], quando um saco de arroz custa 30 mil nairas? A inflação está descontrolada, os preços estão disparando. A única coisa que os jovens podem fazer para sobreviver é entrar para o Yahoo. Nenhum trabalho de escritório vai te dar o dinheiro que esse esquema pode dar”. 

Foi por isso que, em 2012, Biggy “entrou para a malandragem”, como ele diz. Com 19 anos na época, ele notou que alguns amigos tinham começado a usar roupas caras, bons relógios e celulares. Eram, claro, os Yahoo Boys. Biggy prontamente aderiu ao esquema. “Comecei a fazer isso para ter uma vida melhor, porque esse país está fodido”, ele me disse. “Somos pessoas inteligentes, não somos trambiqueiros. Você seria capaz de inventar uma história, contá-la a alguém que nunca te viu na vida e fazer essa pessoa te mandar dinheiro?”

O golpe romântico, especialidade de Biggy, começa com a criação (ou compra, ou invasão) de uma conta em rede social. Por meio dela, o golpista finge ser outra pessoa – na maioria dos casos, um americano branco, bonitão e solteiro. O primeiro perfil criado por Biggy se chamava Frederick Bolten, um soldado americano baseado no Afeganistão. Biggy me explicou que é melhor usar uma conta falsa que já exista há algum tempo, porque isso faz ela parecer real. Quando criou o perfil de Natasha Bridges, ele entrou em vários grupos de americanos no Facebook e pediu aos integrantes que adicionassem Natasha como amiga. Assim, parecia que ela tinha muitos conhecidos, como uma pessoa normal. Depois desse movimento inicial, Biggy ficou dois anos sem mexer na conta, até começar a disparar mensagens para centenas de desconhecidos.

Pense um pouco: você talvez já tenha recebido uma mensagem dessas no Instagram, Facebook, WhatsApp ou algum aplicativo de namoro, perguntando como vai você, ou elogiando a sua foto de perfil. Você pode até ter achado graça e zombado disso com os amigos. Os golpistas sabem que a maioria das pessoas não vai respondê-los, mas eventualmente alguém responde. Essa pessoa vira um “cliente”, como dizem os Yahoo Boys, e aí começa o golpe.

Quando ainda era um novato, Biggy não sabia bem o que fazer quando a pessoa do outro lado respondia. “Como devo iniciar uma conversa?”, ele pensava. “Como posso construir um relacionamento com um desconhecido?” Logo descobriu que tinha um dom. Era capaz de explorar diferentes camadas de emoções e fazer as pessoas se apaixonarem por ele rapidamente. Notou que um simples “Como foi o seu dia, baby?” podia ter uma importância enorme para o cliente, e que fazê-lo rir era crucial. “É preciso ter um bom senso de humor”, disse Biggy. “Se a pessoa fizer uma piada, você tem que fazer também.” É preciso, além disso, estar pronto para avançar. Abaixo, uma conversa ilustrativa que ele, “Natasha”, teve com um homem que chamaremos aqui de Bob:

– Estou lutando contra o Pai Tempo e a Mãe Natureza. E estou perdendo as duas corridas –, disse Bob.

– Bem, não dá para correr as duas, você tem que escolher uma –, respondeu Natasha.

– Qual delas é mais importante?

– Bem, a que te faz feliz.

– Hmmmm. O que te faz feliz?

– Conseguir lidar com meus assuntos financeiros sem estresse.

O tempo necessário para ganhar confiança varia de cliente para cliente. “Pode demorar um mês, uma semana, dois dias”, me disse Smart Billion, amigo de Biggy e golpista como ele. “O que você precisa fazer é falar, falar e continuar falando, sem parar.” O fato é que, uma vez estabelecida uma relação de intimidade, sempre vai surgir um pretexto que pode ser usado para pedir dinheiro. O golpista vai dizer que teve uma emergência médica ou uma despesa jurídica inesperada, ou que gostaria de comprar uma passagem de avião para se encontrar com a vítima. “Mas não seja idiota. Não peça 50 dólares depois de apenas dois dias conversando”, disse Biggy. “Seria um grande sinal de alerta.”

Encarnando Natasha, uma das estratégias de Biggy era pedir dinheiro para contratar uma babá. Dizia que queria visitar a pessoa, mas que para isso precisava que alguém cuidasse de sua filha. A simples menção a dinheiro faz com que algumas vítimas desconfiem e larguem a conversa, mas outras já estão tão envolvidas emocionalmente que dão ao golpista tudo o que ele pedir, sem exigir muitos esclarecimentos. Elas não se importam com o fato de nunca terem encontrado a pessoa que está lhes pedindo dinheiro, uma pessoa que se expressa frequentemente por meio de clichês, com mensagens repletas de erros de digitação – um problema que, segundo Biggy, se deve ao fato de que os golpistas ficam sobrecarregados com muitas conversas simultâneas. (O inglês é o idioma oficial da Nigéria e muitos Yahoo Boys têm formação universitária.)

Alguns Yahoo Boys são tão bem-sucedidos que levam uma vida luxuosa para os padrões de Lagos. É o caso daqueles rapazes que vimos embarcando num Lexus e de muitos outros que lotam as boates chiques da cidade, toda semana, em noitadas regadas a Moët & Chandon. Essa ostentação transformou os golpistas em símbolos poderosos, que, para algumas pessoas, inspiram orgulho, e não vergonha. Na cultura hip-hop da Nigéria, por exemplo, eles são sinônimos de prestígio. Yahoo Boyz e Am I a Yahoo Boy são dois exemplos de músicas que somam milhões de visualizações no YouTube.

Alguns músicos tratam os Yahoo Boys como heróis populares – os Robin Hood dos tempos modernos, tirando dinheiro de quem tem muito. Como diz uma das músicas de Xbusta, rapper nigeriano, No job for street / No pay, no way, how boys eat /… Dem no go, go do Yahoo if dem get choice. (Sem trabalho na rua / Sem salário, não tem jeito, como os rapazes vão comer? / Eles não vão fazer o Yahoo, se tiverem escolha.) Em 2019, Naira Marley, um cantor famoso de hip-hop, defendeu publicamente os Yahoo Boys, dizendo que não faziam nada de errado. Ele deu a entender que os golpes são um preço que o Ocidente tem a pagar pelo legado da escravidão e do colonialismo. Sua declaração repercutiu e causou furor entre os nigerianos, sobretudo depois que ele foi preso por acusações de fraude pela internet. (O caso ainda está tramitando na Justiça.)

Biggy me disse que ganha o suficiente para cobrir suas despesas pessoais e o aluguel dos pais. Quando perguntei o que eles pensavam sobre o seu trabalho, Biggy se irritou um pouco: “Não é que eles não se importem, brother, mas você tem uma solução para o desemprego? Se você me disser que eu tenho que parar com esse negócio que faço há anos, você vai me dar um emprego? Que me pague mais do que estou ganhando? Se você não consegue responder a essa pergunta, não pode me julgar.”

 

A história nos mostra que golpes geram outros golpes, e os esquemas vão evoluindo com o tempo. O primeiro “419” de que se tem notícia aconteceu em 1921, de acordo com o livro This Present Darkness: A History of Nigerian Organized Crime, de Stephen Ellis (“A escuridão do presente: uma história do crime organizado na Nigéria”, em tradução livre). Em dezembro daquele ano, P. Crentsil, um ex-funcionário do governo colonial britânico em Lagos, escreveu uma carta para uma pessoa na Costa do Ouro (atual Gana) se apresentando como o “Professor de Maravilhas”. Prometeu que ela seria beneficiada pelos seus poderes mágicos – contanto, é claro, que pagasse um adiantamento.

Crentsil estava apenas reinventando um golpe que, em 1898, o New York Times chamou de “uma das fraudes mais bem-sucedidas conhecidas pelas autoridades policiais”. Chamava-se, na época, de “golpe do prisioneiro espanhol”. Nele, o golpista enviava uma carta dizendo representar um detento que cumpria pena em uma prisão terrível da Espanha e que precisava de dinheiro para pagar a fiança. Aos destinatários das cartas, em geral comerciantes, era prometida uma recompensa financeira num futuro próximo. Pessoas influentes que viviam na Nigéria do período colonial perderam dinheiro com esse golpe.

A incidência da fraude 419 aumentou na década de 1980, quando a participação da Nigéria no mercado de petróleo global diminuiu e a economia nacional se contraiu. Cartas supostamente escritas por príncipes nigerianos ou executivos do petróleo eram enviadas para o mundo todo, criando um problema tão grande para a imagem do país que as embaixadas nigerianas passaram a comprar anúncios de página inteira em jornais europeus para alertar os leitores. Quando surgiu a internet, é claro, os golpistas abandonaram o papel. Antes, muitos deles trabalhavam para grupos organizados, mas agora qualquer um podia agir por conta própria – bastava ter uma conexão de internet, algo fácil de achar nos cibercafés de Lagos. A polícia às vezes fiscalizava esses locais, mas com a popularização da internet doméstica e dos smartphones não havia muito o que pudesse ser feito. Não que a polícia não tenha tentado: há relatos de jovens nigerianos que tiveram seus celulares vistoriados em busca de mensagens trocadas com estrangeiros. Mas a prática resultou no movimento “End Sars” – “Acabem com o Sars” (sigla em inglês para Esquadrão Especial Antirroubo), uma série de protestos em massa contra a brutalidade policial na Nigéria. Em 2020, o governo ordenou que a polícia parasse de confiscar celulares na rua.

Atualmente, cabe à Comissão de Crimes Econômicos e Financeiros da Nigéria (EFCC) reprimir os golpistas e qualquer um que os auxilie. Na fachada da sede da comissão há uma placa que diz: “A EFCC vai pegar você, em qualquer lugar, a qualquer momento.” O recado é acompanhado da imagem de uma águia ameaçadora. Mas a verdade é que a comissão trabalha em vão – se consegue pegar um trambiqueiro aqui, surge outro logo ali. As autoridades estrangeiras, por sua vez, quase não participam desse esforço de coerção: quando as vítimas nos países ocidentais informam à polícia o golpe que sofreram – e elas nem sempre informam –, é quase certo que o criminoso já esteja foragido.

Ainda existem organizações criminosas que comandam redes de golpistas. Biggy me disse que trabalhou para uma delas no começo da carreira. Ele ficava sentado em um apartamento pequeno e lotado, enviando 20 mil mensagens por dia para estrangeiros e ganhando cerca de 30 dólares por mês. Foi, segundo ele, o pior momento da sua vida. Biggy me explicou que é muito mais lucrativo trabalhar sozinho, desde que você possa pagar sua própria internet. Mas isso não quer dizer que você vai enriquecer depressa – se é que vai enriquecer. Lembrei do que Bukky me disse num telefonema antes da minha viagem à Nigéria: “Para cada Yahoo Boy bem-sucedido que ganha 100 mil dólares de uma vítima e consegue comprar uma casa em Lekki” – uma área nobre de Lagos –, “há centenas nas favelas com um celular na mão que não ganham mais do que 100 dólares.”

Biggy me contou que costuma frequentar uma “casa de crack” nos arredores de Lagos, onde cinco ou dez rapazes se reúnem numa sala, conversam sobre os clientes e consomem drogas para se manterem acordados enquanto aplicam os golpes. Os Yahoo Boys costumam trabalhar de madrugada, ajustando-se ao fuso horário dos Estados Unidos. Eles compartilham as experiências entre si. “A gente acende um baseado, ouve música e troca ideias”, disse Biggy.

Ele me contou que, tempos atrás, um de seus amigos estava enganando um motorista de caminhão da Flórida, um homem de 61 anos que, depois de três décadas casado, estava se divorciando da mulher. “Ele disse que está sendo processado pela esposa”, disse o amigo. “Acho que ela vai ganhar a causa e meu cliente vai perder patrimônio. Isso é ruim para mim. Estou triste por ele. Fico dizendo para ele que vai dar tudo certo, que confie em mim e acredite em Deus.” Smart Billion, amigo de Biggy, certa vez ficou três noites sem dormir, conversando o tempo todo com Jennifer, uma americana de Iowa. Ela lhe enviou cerca de 500 dólares e depois o bloqueou nas redes sociais sem dizer nada.

Será que ele tinha cometido algum deslize? Será que Jennifer havia percebido o golpe e por isso decidiu bloqueá-lo? Smart Billion talvez nunca chegue a uma resposta. Mas há Yahoo Boys que, quando se frustram com os golpes, recorrem a forças superiores. Certo dia, pela manhã, Biggy, Skulls e eu fomos de carro até o bairro operário de Ejigbo para encontrar um homem que pratica o chamado “Yahoo plus”. Ele era um sacerdote da tradição juju (um tipo de feitiçaria) que prometia ajudar os golpistas românticos a melhorar seu desempenho.

Encontramos Gbenga no meio da estrada. Ele nos levou até o quintal de um prédio, passando por uma velha porta de metal, enquanto um grupo de crianças nos observava à distância – não deviam estar acostumadas a ver oyinbo (pessoas brancas) por ali. No quintal, havia caixotes com animais vivos e pneus largados no chão de terra. Gbenga trouxe umas cadeiras de plástico para que sentássemos, depois entrou no prédio. Quando voltou, estava diferente: vestia uma calça laranja, um avental e um cinto adornado com pequenos crânios. Carregava nas mãos uma poção feita, segundo ele, com sabão e ovo de cobra – um dos seus produtos mais requisitados. O preço: 250 mil nairas (cerca de 920 reais).

Gbenga nos contou que ganha cerca de 1,25 milhão de nairas (4,6 mil reais) por mês vendendo poções, muitas delas para Yahoo Boys. É um negócio familiar: “Todos os meus antepassados trabalhavam com ervas, e espero que meus filhos façam o mesmo”, ele disse. A certa altura, Gbenga pegou uma panela, derramou nela um líquido de uma garrafa de Fanta reciclada e misturou alguns ovos. Explicou que, se fizer essa poção enquanto olha para a foto da cliente de um Yahoo Boy, garantirá ao golpista “sucesso no amor”.

Beber uma poção mágica não é a única forma de “Yahoo Plus”. Obedecendo à orientação de um sacerdote juju, um jovem pode ser instruído a dormir num cemitério, comer fezes ou latir como um cachorro – tudo na esperança de melhorar seu relacionamento com os clientes e ganhar mais dinheiro. Filmagens desses rituais já viralizaram nas redes sociais e repercutiram no noticiário internacional. Alguns golpistas, é claro, acham isso tudo ridículo. Para eles, o Yahoo Plus é uma grande embromação. Eles chamam os sacerdotes juju de “os 419 dos 419” – isto é, os golpistas dos golpistas.

Os Yahoo Boys se referem a suas vítimas como maga, gíria que significa tolo, idiota, crédulo. Uma das músicas de hip-hop mais populares sobre os golpes virtuais se chama Maga Don Pay (Maga não quer pagar). O tal Brian, que àquela altura eu não estava nem perto de encontrar, provavelmente usava essa palavra ao se referir à minha mãe.

Um dia, enquanto almoçávamos, perguntei a Smart Billion o que ele achava de seus clientes. “Não acho que eles sejam tolos. Para mim, são como meus ajudantes”, ele respondeu, enquanto pegava mais uma fatia de pizza. Biggy havia comprado para nós uma refeição enorme: várias pizzas, caixinhas de asas de frango, refrigerantes e sorvetes. Gastou, ao todo, cerca de 45 mil nairas (166 reais), mais do que a renda mensal de muitos nigerianos. Enquanto conversávamos, ele postou fotos nossas no Snapchat.

Segundo dados da Comissão Federal de Comércio dos Estados Unidos (FTC), os americanos com mais de 60 anos são os que mais perdem dinheiro com fraudes na internet. O cenário deve ser parecido na maioria dos países ocidentais que sofrem com esse tipo de golpe. Mas, segundo Biggy e outros Yahoo Boys com quem conversei, o fator determinante para o esquema dar certo não é a idade da vítima – é a solidão. “Só uma pessoa solitária vai dar atenção a você”, disse Biggy. Para explorar esse ponto fraco, segundo ele, é preciso fingir empatia. “Você tem que inventar uma história dizendo que você também se sente solitário”, ele explicou. “Se você não mostrar que também sofre com a solidão, como vai convencer sua parceira de que vocês têm os mesmos problemas?”

Um estudo recente de Harvard mostrou que mais de um terço dos americanos sofre com “solidão severa”. Entre os jovens adultos, a proporção é de 61%; entre mães com crianças pequenas, 51%. Outros estudos já associaram a solidão a problemas de saúde como alta pressão arterial, demência, ansiedade e paranoia. Ela também pode afetar nosso raciocínio e a forma como interagimos com o mundo. “A solidão é a incapacidade de falar com outra pessoa na sua língua particular”, disse certa vez a escritora chinesa Yiyun Li. “Esse vazio é preenchido pela linguagem pública ou por relações romantizadas.” Não é de se espantar que os golpes românticos tenham proliferado durante a pandemia, quando tantas pessoas ficaram isoladas do convívio social. Segundo a FTC, os americanos tiveram um prejuízo de 1,3 bilhão de dólares com golpes desse tipo em 2021 – um aumento de 80% em relação a 2020 e um salto de seis vezes desde 2017.

Biggy me disse que às vezes se sente como um terapeuta de suas vítimas. “A vida delas seria pior sem mim.” Um exemplo citado por ele é Pamela, “cliente” com quem vinha conversando havia quase três anos. Pamela morava no Texas e era mãe de duas filhas, uma das quais havia morrido em um acidente de carro. Ela achava que Biggy era um americano chamado Christopher. Depois de um certo tempo, apesar de ter dito que estava recebendo auxílio da assistência social, ela começou a enviar dinheiro para Biggy. Foram cerca de 2 mil dólares ao todo, depositados em várias contas, seguindo as orientações dele. Mais de uma vez, Pamela deu a entender que poderia cometer suicídio, de tão triste que estava. Em dezembro de 2021, Biggy respondeu assim a uma dessas ameaças:

Juro por Deus que vou te ajudar, baby.

Não quero te perder nem deixar você morrer.

Não sei se você consegue abrir coinbase e binance [plataformas de compra e venda de criptomoedas], baby.

Vamos fazer isso rápido, minha rainha.

Você está na pior há muito tempo.

Eu te amo.

Algumas semanas depois, quando Biggy lhe desejou um feliz ano novo, Pamela respondeu com amargura:

Que importa que seja ano novo? Outro ano, a mesma merda de sempre.

Mais tarde, em janeiro de 2022, ela ficou bêbada e disparou uma série de mensagens:

Posso não demonstrar, eu sorrio para todo mundo, mas por dentro estou quebrada. Ninguém sabe, eu não falo sobre isso.

O amor que sinto por você nunca vai mudar.

Ler essas mensagens era como folhear o diário de alguém sem a permissão da pessoa. Eu me senti constrangido, envergonhado. Perguntei a Biggy se ele já tinha sentido o mesmo, ou se, pelo menos, se preocupava com Pamela. “Ela não vai se matar”, ele respondeu, lacônico. “Ela quer atenção, só isso.” Parecia que ele estava querendo convencer a si mesmo. E continuou: “A gente tem que fazer o que precisa ser feito, sabe como é? Se eu sentir pena, como vou conseguir dinheiro?” Se a questão era só dinheiro, perguntei, por que ele ainda continuava conversando com Pamela? Ela não lhe enviava nada já fazia um bom tempo, e pelo jeito não pretendia mais enviar.

“Não sei”, ele respondeu.

Biggy disse ter ouvido falar de vítimas que não ficaram zangadas ao descobrir que estavam sendo enganadas. “Quando a pessoa se apaixona por você, quando está completamente apaixonada, ela não dá a mínima. Tem clientes brancas que sabem que você é um vigarista e mesmo assim mandam dinheiro. E ainda dizem: ‘Eu sei que isso é um golpe, mas eu te amo.’” Ele gargalhou ao dizer isso.

 

Biggy me contou que já pensou em abandonar a vida de Yahoo Boy, mas não porque se sinta culpado por enganar as pessoas. “Não quero que meus filhos saibam que o pai deles é um golpista”, explicou. Além disso, ele estava apaixonado por uma nigeriana que conheceu no Facebook e queria constituir família (ela era uma pessoa real, ele me garantiu. Já haviam conversado por vídeo, e Biggy, assim como todas as minhas fontes, me disse que há pouquíssimas mulheres golpistas.) Como muitos Yahoo Boys, ele sonhava em um dia virar um astro do hip-hop. Assim talvez pudesse parar com os golpes.

Há casos de Yahoo Boys que abandonaram os trambiques por causa de uma cliente. Visitei um deles, que chamarei de Bamidele, em Abuja, a capital da Nigéria, no final da minha viagem. Ele me contou que morava sozinho desde os 18 anos. Havia se mudado da sua cidade natal, que fica mais ao Sul, porque queria ser cabeleireiro. Conseguiu um emprego na capital em troca de um lugar para morar. Ao chegar, no entanto, ele descobriu que se tratava de um pequeno contêiner. “Estava tão difícil sobreviver que, por um tempo, eu só comi gari”, ele me disse, referindo-se a um tipo de mingau de mandioca. 

Em 2018, um conhecido levou Bamidele para uma casa onde jovens trabalhavam para um grupo criminoso, dando golpes em americanos pela internet. Ele se tornou um Yahoo Boy, mas continuou sem um tostão – seu pagamento era casa e comida. Por fim, conseguiu um emprego remunerado como golpista e aprimorou o talento para iludir vítimas. Ele me disse que convenceu uma cliente holandesa a lhe enviar 3,5 mil dólares. Outra mulher com quem trocou mensagens acabou viajando para o Afeganistão, pensando que poderia encontrá-lo ao vivo.

Bamidele um dia se deparou com uma espanhola chamada Yolanda, que me permitiu citar aqui seu nome verdadeiro (quando conversamos pela primeira vez por telefone, ela me disse que sua história “daria um filme”.) Os dois se conheceram no Instagram, onde Bamidele fingia ser um americano branco. Eles conversaram durante dois meses, até que Yolanda ficou desconfiada e começou a se informar sobre golpes românticos. Ela escreveu uma mensagem para Bamidele em espanhol, traduziu para o idioma iorubá e disparou.

Quando Bamidele leu o que ela havia escrito, ficou vermelho de tão nervoso – seu esquema fora descoberto. Ele tentou negar a verdade, mas Yolanda não era boba. O normal a essa altura seria que Bamidele a bloqueasse, já que o golpe estava perdido, mas antes disso ela o surpreendeu pedindo uma chamada de vídeo. Ele aceitou, e assim teve início uma amizade inusitada. Depois de um tempo, Yolanda viajou até Abuja para conhecê-lo, e ali fundou uma ONG que apoia mulheres e meninas sequestradas pelo grupo terrorista Boko Haram. Ironicamente, ela também concedeu um empréstimo a Bamidele – que, depois de conhecer Yolanda, parou de aplicar golpes e virou motorista de Uber.

Enquanto tomávamos cerveja e comíamos asinhas de frango, em um terraço com vista para o Lago Jabi, contei a Bamidele sobre minha mãe. Como os e-mails do tal Brian tinham vindo de um computador e não de um celular, meu palpite era de que ele trabalhava para um grupo com recursos para fornecer hardware aos funcionários. Bamidele, com seu rosto de menino, riu da minha suposição: “Pode ser qualquer um.” Em seguida, seu tom de voz ficou sério. “Você tem que entender que as vítimas contam tudo para o golpista. Tudo”, ele disse, enfatizando cada sílaba. “Tenho 100% de certeza de que sua mãe contou para esse golpista muitas coisas que você não sabe. Coisas sobre ela mesma que você nunca imaginou na vida. Suas ambições, suas falhas, seus sonhos, seus defeitos. As pessoas estão procurando alguém que as ouça – é só isso, ponto final.”

Fiquei ressentido com a ideia de que um desconhecido poderia saber mais sobre minha mãe do que eu. Mas as palavras dele ecoaram algo que eu já tinha ouvido de Smart Billion. Eu vinha mostrando as mensagens trocadas entre minha mãe e Brian para cada um dos Yahoo Boys que entrevistava, na esperança de que um deles o reconhecesse. “Esse cara é boooooom”, reagiu Smart Billion, admirado com os diálogos. Assim como os outros, ele não fazia a menor ideia de quem era Brian, mas tinha uma opinião formada sobre minha mãe: “Ela estava no ponto.”

Toda a minha vida, desde criança, depois como esposa e como mãe, trabalhando fora, passo a vida inteira cuidando dos outros e agora desejo que alguém cuide de mim.

Eu realmente quero ouvir a sua voz antes que o ano acabe. Quero esse presente seu. Como eu já disse, se você me avisar por e-mail que vai me ligar, eu posso atender, tudo bem. Já vi que o WhatsApp não é uma boa ideia. De qualquer forma, quero que o tempo passe depressa para ficar com você o mais rápido possível.

Cuide-se. Tem alguém na Espanha te esperando!

Un beso, Sílvia

Uma das lembranças mais vívidas da minha infância é de um dia em que minha mãe me levou de mãos dadas para a escola. Eu devia ter uns 7 anos, foi na época em que ela estava se divorciando do meu pai. Lembro que minha mãe olhava para o chão enquanto andávamos, e eu pude notar que ela estava triste. Para animá-la, apertei sua mão, e ela reagiu apertando a minha. Criamos, com os dedos, nossa própria linguagem silenciosa.

Talvez por causa do divórcio, que exigiu muito de todos nós, eu me sentia mais velho do que as outras crianças da minha idade. Vivia, por isso, uma espécie de solidão. Para fazer companhia a mim mesmo, eu inventava histórias. Também passava incontáveis horas com meu PlayStation, fazendo pausas entre os jogos para olhar pela janela de casa e me perguntar se o mundo lá fora estava fugindo ao meu controle. Eu não me sentia triste, mas vazio, como uma caixa de sapatos sem nada dentro.

Minha mãe, passado algum tempo do divórcio, entrou em um namoro que durou anos. Em vez de ficarmos felizes por ela, eu e meus irmãos ficamos irritados. Onde está a mamãe? Quem é esse cara? Não gostamos dele. Às vezes, em vez de sair no sábado à noite, ela convidava o namorado e outras pessoas para virem à nossa casa. Ela preparava bebidas e punha Nina Simone ou Eva Amaral para tocar sem parar. Eu me lembro de estar mais ou menos consciente de que ela fazia isso para não me deixar sozinho. Às vezes ficávamos só nós dois em casa no sábado, jogando Banco Imobiliário por horas e horas, rolando dados e comprando propriedades até tarde da noite.

Quando entrei na faculdade, fiquei menos solitário, mas continuava gostando de passar tempo com minha mãe. Nos fins de semana, pela manhã, eu lia romances e ela fazia joias, com música clássica tocando ao fundo. À tarde, almoçávamos e tomávamos uns drinques. A gente também conversava, é claro, mas eu tinha a impressão de que o nosso relacionamento era baseado em um silêncio confortável. Não precisávamos de palavras para nos comunicar. “Meu último filho”, ela dizia às vezes. “O que vou fazer quando você for embora?”

Depois que terminou aquele namoro longo, minha mãe não teve outra relação séria, e eu nunca entendi o porquê. Ela era inteligente, engraçada e muito bonita, com os olhos hipnóticos que herdou da minha avó. Comecei a imaginar que talvez ela fosse muito exigente (ele é careca) ou que preferisse, na verdade, ficar sozinha (Ele não consegue acompanhar meu ritmo). Acho que, para mim, era mais fácil imaginar essas hipóteses do que dar atenção à minha mãe quando, depois de mais um encontro fracassado, ela chegava em casa e me perguntava: “É esse o preço que tenho que pagar por ter três filhos maravilhosos?”

Acabei mudando de atitude conforme envelheci. Passei a fazer companhia à minha mãe mais por pena do que por qualquer outra coisa. Dizia aos meus amigos que eu ficava triste por ela, que me sentia culpado por deixá-la sozinha em casa. Há uma linha tênue entre a compaixão e a arrogância quando lidamos com os nossos pais, e é fácil transitar entre um e outro.

Também é fácil julgar quem cai num golpe romântico, e eu fiz isso com minha mãe. “Como ela pôde ser tão tola?”, eu me perguntava. Conversando com pessoas que passaram pela mesma situação, entendi que minha reação não ajudava em nada. Entrei em vários grupos de Facebook de apoio a vítimas de golpes. Compartilhei a história da minha mãe e conversei com algumas mulheres que vieram me procurar. Entre elas havia viúvas, divorciadas, aposentadas. Algumas tinham perdido dezenas de milhares de dólares; outras tinham hipotecado a casa para dar ao golpista o dinheiro que ele pedia. Também conversei com parentes de vítimas que ainda estavam encantadas pelos golpistas. Um deles, Zed, lutava para convencer o pai de que ele estava sendo enganado. “Já conversei com ele, mostrei artigos, mandei vídeos de golpistas confessando o que fazem”, ele me disse. Zed postou o e-mail do pai em um grupo de Facebook, pedindo aos outros participantes que relatassem a ele suas experiências.

Muitas vítimas sonhavam um dia se vingar do golpe que sofreram. Mas muitas outras falavam sobre a vergonha que sentiram. Tiveram de ouvir uma mesma pergunta várias vezes, inclusive de si mesmas: Como você foi tão idiota a ponto de cair num golpe assim? “É o crime mais triste do mundo”, me disse uma mulher da Califórnia. Outra me contou que tinha se relacionado com vários golpistas e que fora difícil cortá-los de sua vida. “Eu sentia falta de conversar com meus enganadores”, ela disse, “mas depois percebi que o que me fazia falta não eram eles propriamente, mas sim a forma como preenchiam meu dia”.

Repeti para mim mesmo as palavras de Smart Billion: ela estava pronta.

Ele quis dizer que minha mãe estava pronta para o Brian – ou para alguém, qualquer um que fosse como ele. Por mais que houvesse amor nos silêncios da vida dela, no vínculo com os filhos, ela ansiava por ouvir certas palavras, precisava delas, e por algum tempo Brian as disse. Certa vez ele escreveu:

O que importa é que sinto uma alegria no meu coração por ter te encontrado. É um sentimento tão bonito, eu não me sentia assim havia muito tempo. Você também tem essa sensação de estar novamente no auge? A sensação de estar feliz e, ao mesmo tempo, com medo? Estou aqui cruzando os dedos, esperando o melhor. Quero ser feliz e sei que posso ser feliz com você.

Enquanto eu me despedia de Bamidele, percebi que o objetivo da minha viagem não era só encontrar o tal Brian. No fundo, eu queria resolver o descompasso entre a visão que eu tinha da minha mãe e a visão que ela tinha de si mesma.

 

Bukky, meu fixer adoentado, agora parecia um novo homem. Quando voltei de Abuja para Lagos, pudemos passar juntos meus últimos dias na Nigéria. Totalmente recuperado, ele me levou para conhecer a Nike Art Gallery, um enorme complexo que abriga mais de 8 mil obras de artistas de toda a África. Conversei com a fundadora do projeto, Nike Davies-Okundaye, uma artista famosa pelos seus bordados e tecidos requintados. “Sem amor, sem aventura, de que serve a vida?”, ela me disse.

No último dia de viagem, depois que paguei a conta do hotel, eu e Bukky vimos na rua uma senhora branca, já idosa, de mãos dadas com um nigeriano de vinte e poucos anos. Ficamos especulando se não seria um daqueles casos excepcionais em que a mulher foi enganada, descobriu a farsa, mas viajou para a Nigéria mesmo assim e engatou numa relação de verdade com o golpista. “A gente não seria capaz de inventar uma história assim nem no cinema”, respondeu Bukky.

Sentado no portão de embarque, esperando o voo de volta para casa, abri meu caderno para revisar tudo o que havia anotado na viagem. No primeiro dia, rabisquei, em letras maiúsculas, um provérbio do povo igbo que li em uma entrevista do escritor nigeriano Chinua Achebe: “O mundo é um baile de máscaras, onde todos estão dançando. Quem quiser compreendê-lo não pode ficar parado no mesmo lugar.” Na cultura igbo, os bailes de máscaras incluem acrobacias, danças e trajes que escondem a identidade dos participantes. As fantasias, bonitas e às vezes assustadoras, evocam o reino espiritual. Achebe disse que interpretava o ditado da seguinte forma: “Nós, como habitantes deste mundo, temos que aprender a nos adaptar, a mudar e a nos movimentar.”

Quando reli o provérbio no meu caderno, ele me impactou de uma maneira diferente. Percebi que eu havia passado muito tempo parado no mesmo lugar, vendo as coisas de uma só maneira. Depois de viajar milhares de quilômetros, conheci rapazes que usavam máscaras para manipular as pessoas e tirar delas o que queriam. Mas também me dei conta de que minha mãe tinha sua própria máscara, que vestia quando estava comigo e com meus irmãos para nos proteger e proteger a si mesma. Ela havia jogado fora essa máscara por amor a um estranho – uma decisão que talvez não me caiba compreender.

Minha mãe ouviu atentamente tudo o que lhe contei sobre a viagem, e disse ter sentido compaixão pelos Yahoo Boys: “Entendo por que eles fazem isso.” Mencionou novamente a canção de John Legend que associava a Brian, e naquele momento me dei conta de que ela nunca o tinha culpado por enganá-la. Desde que parou de falar com ele, ela vai toda semana a alguma palestra sobre um livro, uma aula de pintura ou um workshop de arranjos florais, na esperança de conhecer um homem por quem possa se apaixonar. Sente otimismo com a vida. Decepções momentâneas sempre dão lugar a uma nova esperança.

Mantive contato com Biggy pelo WhatsApp. Ele continua aplicando golpes, mas não mais como Natasha Bridges – agora prefere outras identidades. Às vezes me pergunta sobre minha mãe, o que me faz lembrar a última noite em que saímos juntos em Lagos. Estávamos no meu hotel, Biggy enrolava um baseado, e perguntei a ele se tinha algum conselho para minha mãe. Ele riu: “Diga a ela, por favor, para conversar por vídeo.” 

Seguiu-se um longo silêncio, até que Biggy voltou a falar: “Nessa vida você tem que ser cético. Nem tudo que reluz é ouro.”

 


Reportagem publicada originalmente em The Atavist.

*Os nomes das vítimas foram omitidos para preservar suas identidades.

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