Tiros nos pés de uma Justiça acossada

O propósito de qualquer investigação por parte do Ministério Público é apurar a verdade. Para isso, convém agir com discrição, em segredo, procurando através dos seus meios técnicos e legais encontrar factos, indícios fortes, provas que levem a decidir num de dois sentidos: prosseguir e acusar, ou não prosseguir e não acusar. O resto é […]

Abr 19, 2025 - 02:34
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Tiros nos pés de uma Justiça acossada

O propósito de qualquer investigação por parte do Ministério Público é apurar a verdade. Para isso, convém agir com discrição, em segredo, procurando através dos seus meios técnicos e legais encontrar factos, indícios fortes, provas que levem a decidir num de dois sentidos: prosseguir e acusar, ou não prosseguir e não acusar. O resto é folclore.

O parágrafo eventualmente inocente de Lucília Gago acerca de António Costa, no âmbito da Operação Influencer, partilha um traço comum e perigoso com as atuais “averiguações preventivas” a Luís Montenegro e, mais recentemente, a Pedro Nuno Santos.

No primeiro caso, não acredito que o célebre parágrafo a dizer que prosseguia uma investigação a eventuais práticas criminosas de António Costa tivesse como objetivo derrubar o primeiro-ministro. Acho mesmo que foi uma pura leviandade e movida por um crasso erro de leitura dos interesses do País e do próprio papel que a Justiça, em sentido amplo deve ter: serviu apenas para ninguém poder vir a acusar, mais tarde, de estar a haver uma investigação ao primeiro-ministro e a Procuradora de então o ter tentado esconder.

No caso de Montenegro e da Spinumviva, na ausência de ação ou de provas fortes que sustentassem uma acusação ou até um inquérito-crime, o novo Procurador Amadeu Guerra cedeu à pressão mediática, com medo da imagem de que não estava a fazer nada e com isso procurava proteger o atual primeiro-ministro. Foi buscar à gaveta um mecanismo cheio de pó de tanta falta de uso tem, chamado “averiguação preventiva”. Na prática, isto significa apenas que as autoridades não têm grande coisa em termos de indícios mas vão prestar atenção ao que se anda a dizer e a escrever, para ver se há ali alguma coisa. E serve, apenas, para mostrar para fora que está a fazer alguma coisa e não está a proteger deliberadamente alguém.

Agora a roleta do disparate calhou no número de Pedro Nuno Santos, depois de ter sido remetida à Procuradoria uma notícia que tem mais de um ano, à qual o líder socialista respondeu na altura. Aparentemente sem factos novos acrescentados ao papel da revista na qual a história foi impressa, sem outros indícios – fortes ou fracos – e sem que fique minimamente claro se está aqui algum crime em causa – que pudesse depois vir a ser provado ou não. Bastou esse envio, não se sabe se em correio azul ou de outra cor, para que lá saltasse o anúncio público de mais uma “averiguação preventiva”, agora sobre o outro candidato a primeiro-ministro.

O resultado é simples para a opinião pública: os dois candidatos a liderar o País estão a ser investigados por serem corruptos. O problema é que não estão.

Os portugueses nunca ouviram falar da averiguação preventiva nem sabem a diferença entre isso, um inquérito-crime, ou para muitos entre isso e uma acusação ou uma condenação. E Amadeu Guerra tem obrigação de saber isso. O que está a dizer, para muitos portugueses, é que eles estão a ser investigados por serem corruptos. Ponto.

Amadeu Guerra abriu a caixa de Pandora quando desenterrou, por receio de ser acusado de inação ou de estar a proteger quem o nomeou, a famigerada “averiguação preventiva” e a comunicou publicamente. Não tinha de o fazer, fez porque quis, porque quis dizer ao País que estava a fazer alguma coisa. Mal seria! Nós partimos do princípio – ou devemos partir – que as autoridades independentes estão atentas e estão a fazer o seu trabalho, que muitas vezes não leva a nada de concreto. Isso, também isso, é a Justiça a funcionar, quando não se acusa, quando não se encontra crime, quando não se encontram provas. Não ter nada disso, não conseguir fazer nada disso, e dizer que se está a investigar sabendo que para a opinião pública o efeito é o mesmo não serve para nada de útil. É, apenas, uma enorme irresponsabilidade.

Depois desse precedente com Montenegro, Amadeu Guerra deu o flanco e abriu a armadilha na qual ele próprio caiu. Alguém enviou agora a notícia velha sobre Pedro Nuno Santos e os jornalistas, avisados desse envio, fizeram a pergunta, à qual o Procurador, dentro do buraco que ele próprio cavou, não podia dar outra resposta: abriu também uma “averiguação preventiva”. Não interessa se os casos são diferentes em tudo, no tema, na gravidade, nos indícios: se fez para um, tinha de fazer para outro, para não ser acusado de ter dois pesos e duas medidas, de estar a favorecer um face ao outro. Amanhã, se alguém enviar seja o que for para a Rua da Escola Politécnica e qualquer jornalista perguntar, a resposta terá de ser a mesma, de que foi aberta uma “averiguação preventiva”. Teremos todo um País a ser averiguado na praça pública, com ou sem indícios fortes.

Nestes dois casos, como no parágrafo sobre Costa no comunicado da Operação Influencer, a PGR só teve uma preocupação: proteger-se de críticas. E se a Justiça deve cuidar da sua imagem pública, como uma entidade atenta e atuante, também deve entender que o seu papel é mais amplo do que isso, e que não deve contribuir para degradar ativamente o funcionamento do Estado de Direito. Que é o que está a fazer.

Com isto, Amadeu Guerra está a dizer, na prática, que os casos de Montenegro e de Pedro Nuno são iguais. E está a dar aos populistas de serviço aquilo que mais adoram: poder meter todos no mesmo saco, os “corruptos”, e dizer que o sistema está podre e tem de ser derrubado, naturalmente pelos salvadores aos quais basta juntar água. André Ventura, que não tem solução para coisa alguma além da gritaria e da demagogia, já deve ter mandado imprimir novos cartazes com as caras de Pedro Nuno e de Montenegro.

Não é nada fácil à Justiça navegar nestes tempos mediáticos tão rápidos, tão pressionantes e tão exigentes. Mas a PGR não é uma rede social nem deve atuar para elas. Precisa de cabeça fria, responsabilidade e capacidade de resistir aos que a querem instrumentalizar para fins políticos.

Ao Ministério Público pede-se que investigue o que entender que deve investigar e que seja consequente com o que encontrar. Se chegar a alguma conclusão, num sentido ou noutro, que o divulgue, pelas vias oficiais e sem tabus, e aja de acordo com o resultado apurado.

Vir anunciar que está a investigar, mesmo que “preventivamente”, em cima de qualquer coisa que lhe chegue, é a via fácil, de lavar as mãos de qualquer decisão, mas é também a via mais perigosa. O ar está irrespirável e as autoridades estão, sem essa intenção, a contribuir para este estado de coisas.

Que investigue e esteja calada, até que tenha algo para dizer.

Algo diferente disso só serve para minar a democracia, o mesmo sistema que permite, e bem, que as autoridades judiciárias sejam independentes. Ou Amadeu Guerra acha que, se André Ventura alguma vez fosse primeiro-ministro, essa autonomia seria de alguma forma respeitada?