Somos todos australianos— sobre o consumo da internet

Imagem promocional do filme Eis o Admirável Mundo em Rede (2016)Como é que os mais jovens se envolvem com a internet? Eis uma pergunta de uma só vez cultural e política — este texto foi publicado no Diário de Notícias (4 abril).Se procurarmos na internet as notícias mais recentes sobre o primeiro-ministro da Austrália, podemos encontrar muitos relatos, fotografias e videos sobre o incidente (benigno) que protagonizou numa sessão de campanha eleitoral, na quinta-feira, em Lovedale, New South Wales: ao posar para os fotógrafos, Anthony Albanese escorregou e caiu do estrado em que se encontrava... Entretanto, no mesmo dia, outra notícia sobre Albanese teve no espaço mediático um tratamento incomparavelmente mais discreto — como se prova, uma queda tem sempre boa cotação junto do jornalismo mais preguiçoso.Acontece que o chefe do governo australiano deu uma conferência de imprensa em que estiveram em destaque temas nacionais, como o custo do aluguer das habitações, a par da situação no Médio Oriente e das suas relações com Donald Trump. Com um detalhe importante: ao lado dos jornalistas, o evento contou com algumas crianças, convidadas pelo próprio Albanese para poderem questioná-lo para uma emissão de Behind the News (programa televisivo da ABC australiana, criado em 1968, visando os espectadores com idades entre os 10 e os 13 anos).A certa altura, uma menina de nome Lana, 11 anos de idade, estudante de uma escola primária dos subúrbios de Camberra, questionou o primeiro-ministro: “Considera que as redes sociais têm algum impacto nas crianças?” Albanese não se perdeu em qualquer facilidade retórica: “Certamente que têm, e é por isso que vamos banir as redes sociais para os menores de 16 anos.”Em termos políticos, a afirmação não era nova, ecoando uma decisão do governo australiano anunciada no final do ano passado. Convém, por isso, evitar ceder à histeria de muitos debates televisivos, recusando esse esquematismo sem pensamento que poderá atrair um qualquer alarmismo do género: “Vamos, então, proibir os telemóveis?” De acordo com um texto do próprio Albanese (publicado no site do governo australiano a 21 de novembro de 2024), trata-se de uma “lei concebida para responder às transformações da tecnologia e dos serviços”. De tal modo que o primeiro-ministro não hesita em dar exemplos de plataformas cujas condições de acesso deverão ser atentamente controladas: Snapchat, TikTok, Instagram e X. Aliás, com a subtileza que o distingue, Elon Musk não perdeu a oportunidade de proclamar que o governo australiano é formado por “fascistas” e que os condicionalismos etários previstos pela nova legislação têm como objectivo assegurar “o controlo do acesso à internet por todos os australianos” (sic).Em boa verdade, novos e velhos, somos todos australianos. Não que a legislação do governo de Albanese possa ser encarada como um modelo absoluto, automaticamente transponível para qualquer contexto. O que está em jogo é muito diferente e, no caso português, tanto mais difícil de encarar e pensar quanto assistimos a infinitas batalhas navais sobre o orçamento de Estado, os candidatos presidenciais ou, agora, as eleições legislativas sem que haja um dirigente partidário (ou um comentador) que pronuncie a palavra “cultura”.Porque é de uma tragédia cultural que se trata. Para lá de qualquer estupidez maniqueísta, importa lidar com esta conjuntura em que, da construção do conhecimento à estruturação dos valores individuais e colectivos — chama-se a isso, justamente, cultura —, tudo se transfigurou. O cinema nunca desistiu de nos avisar para o que tem estado a acontecer — recorde-se a contundência analítica da obra-prima de David Fincher, A Rede Social (2010), ou o documentário didáctico de Werner Herzog, Eis o Admirável Mundo em Rede (2016). A ilusão libertária com que muito boa gente, incluindo jornalistas, acolheu a eclosão das redes (ditas) sociais afastou-nos de uma necessária reflexão sobre que sociedade se estava a construir. E também que sociedade aceitamos destruir.

Abr 26, 2025 - 17:49
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Somos todos australianos— sobre o consumo da internet
Imagem promocional do filme Eis o Admirável Mundo em Rede (2016)

Como é que os mais jovens se envolvem com a internet? Eis uma pergunta de uma só vez cultural e política — este texto foi publicado no Diário de Notícias (4 abril).

Se procurarmos na internet as notícias mais recentes sobre o primeiro-ministro da Austrália, podemos encontrar muitos relatos, fotografias e videos sobre o incidente (benigno) que protagonizou numa sessão de campanha eleitoral, na quinta-feira, em Lovedale, New South Wales: ao posar para os fotógrafos, Anthony Albanese escorregou e caiu do estrado em que se encontrava... Entretanto, no mesmo dia, outra notícia sobre Albanese teve no espaço mediático um tratamento incomparavelmente mais discreto — como se prova, uma queda tem sempre boa cotação junto do jornalismo mais preguiçoso.
Acontece que o chefe do governo australiano deu uma conferência de imprensa em que estiveram em destaque temas nacionais, como o custo do aluguer das habitações, a par da situação no Médio Oriente e das suas relações com Donald Trump. Com um detalhe importante: ao lado dos jornalistas, o evento contou com algumas crianças, convidadas pelo próprio Albanese para poderem questioná-lo para uma emissão de Behind the News (programa televisivo da ABC australiana, criado em 1968, visando os espectadores com idades entre os 10 e os 13 anos).
A certa altura, uma menina de nome Lana, 11 anos de idade, estudante de uma escola primária dos subúrbios de Camberra, questionou o primeiro-ministro: “Considera que as redes sociais têm algum impacto nas crianças?” Albanese não se perdeu em qualquer facilidade retórica: “Certamente que têm, e é por isso que vamos banir as redes sociais para os menores de 16 anos.”
Em termos políticos, a afirmação não era nova, ecoando uma decisão do governo australiano anunciada no final do ano passado. Convém, por isso, evitar ceder à histeria de muitos debates televisivos, recusando esse esquematismo sem pensamento que poderá atrair um qualquer alarmismo do género: “Vamos, então, proibir os telemóveis?” De acordo com um texto do próprio Albanese (publicado no site do governo australiano a 21 de novembro de 2024), trata-se de uma “lei concebida para responder às transformações da tecnologia e dos serviços”. De tal modo que o primeiro-ministro não hesita em dar exemplos de plataformas cujas condições de acesso deverão ser atentamente controladas: Snapchat, TikTok, Instagram e X. Aliás, com a subtileza que o distingue, Elon Musk não perdeu a oportunidade de proclamar que o governo australiano é formado por “fascistas” e que os condicionalismos etários previstos pela nova legislação têm como objectivo assegurar “o controlo do acesso à internet por todos os australianos” (sic).
Em boa verdade, novos e velhos, somos todos australianos. Não que a legislação do governo de Albanese possa ser encarada como um modelo absoluto, automaticamente transponível para qualquer contexto. O que está em jogo é muito diferente e, no caso português, tanto mais difícil de encarar e pensar quanto assistimos a infinitas batalhas navais sobre o orçamento de Estado, os candidatos presidenciais ou, agora, as eleições legislativas sem que haja um dirigente partidário (ou um comentador) que pronuncie a palavra “cultura”.
Porque é de uma tragédia cultural que se trata. Para lá de qualquer estupidez maniqueísta, importa lidar com esta conjuntura em que, da construção do conhecimento à estruturação dos valores individuais e colectivos — chama-se a isso, justamente, cultura —, tudo se transfigurou. O cinema nunca desistiu de nos avisar para o que tem estado a acontecer — recorde-se a contundência analítica da obra-prima de David Fincher, A Rede Social (2010), ou o documentário didáctico de Werner Herzog, Eis o Admirável Mundo em Rede (2016). A ilusão libertária com que muito boa gente, incluindo jornalistas, acolheu a eclosão das redes (ditas) sociais afastou-nos de uma necessária reflexão sobre que sociedade se estava a construir. E também que sociedade aceitamos destruir.