Quando o certo e o errado se confundem

Reflexões sobre cultura organizacional, identidade profissional e o custo invisível da adaptação.É um baita esforço conseguir equilibrar tantos pesos diferentesJá entrou em uma nova empresa e sentiu que, apesar de toda sua bagagem, parecia não saber mais como se mover? Como se tudo o que te trouxe até ali fosse colocado em dúvida? É sobre isso que quero falar neste artigo.Não é um desabafo, ainda que venha de um lugar pessoal. Também não é uma solução pronta, porque ela não existe. O que você vai encontrar aqui é uma reflexão sincera sobre o que acontece quando o profissional que somos encontra uma cultura que nos desafia a reaprender quem somos — e como atuamos — em um novo contexto.Começar em uma nova empresa é como atravessar uma fronteira invisível. Você carrega na bagagem anos de experiência, repertório técnico, maturidade emocional, mas, ao cruzar a porta de entrada, percebe que está em um novo território.A língua até se parece com a que você já conhece, mas os códigos mudam: o que é valorizado, o que é percebido como relevante, quem tem voz, quem escuta, quem lidera; tudo isso assume novas formas.Nessas horas, currículo, cargo e conquistas passadas não te blindam do desconforto. Pelo contrário: é justamente quem tem mais estrada que sente com mais força o peso da reinvenção.Quando cheguei em uma nova organização, percebi isso logo de cara. Ainda que a cultura verbalizada fosse alinhada aos meus valores — colaboração, escuta ativa, centralidade no cliente — a vivência prática exigia outras competências: velocidade de articulação, presença estratégica e domínio da lógica política interna.Esse descompasso entre o que se comunica e o que se vive me levou a uma fricção intensa, silenciosa e transformadora. Porque não se tratava apenas de me adaptar a uma nova empresa; era, de algum modo, um embate entre o profissional que sou e o que o sistema esperava que eu fosse.E tudo isso não aconteceu de uma hora para outra. Essa foi uma travessia de meses. Dez, para ser mais preciso. Uma jornada longa, feita de avanços e recaídas, de descobertas e resistências, de conversas internas e silêncios externos. E talvez a parte mais importante: de reconciliação com o que eu já sabia sobre mim, mas que o contexto me fez duvidar.­Cultura declarada x Cultura percebidaMuitas empresas sabem exatamente o que gostariam de ser. Têm manifestos bem escritos, valores estampados nas paredes e discursos alinhados em vídeos institucionais. Mas entre o ideal e o real existe um desvio — e é nele que moram os ruídos mais difíceis de lidar.Uma empresa pode se posicionar como diversa, colaborativa, com alta valorização do aprendizado contínuo e da autonomia. Mas, no cotidiano, o que pode ganhar espaço é outra dinâmica: saber se posicionar nas reuniões certas, com as pessoas certas, no tempo certo.É como se o valor real estivesse na performance social, não apenas na entrega de valor.Essas contradições culturais não são exclusividades de uma empresa. Elas fazem parte da natureza de muitas organizações em crescimento, que buscam amadurecer rápido e, no caminho, convivem com tensões entre discurso e prática.Mas para quem chega de fora, isso gera confusão. O que é esperado? Ser estratégico ou ser rápido? Ser profundo ou ser pragmático? Focar no cliente ou no stakeholder interno? Essas escolhas são raramente explicitadas. E quando os critérios de sucesso estão nas entrelinhas, é fácil se perder.Esse tipo de ambiguidade, quando somado ao peso da reinvenção pessoal, cria uma espécie de “evolução acidental”: um conceito que explorei em outro momento da minha trajetória. São mudanças que surgem da fricção, do incômodo, da exposição a contextos nos quais o repertório anterior não é suficiente. Mudanças que não são planejadas, mas que, com o tempo, revelam caminhos de crescimento.E talvez essa seja uma das maiores riquezas desse tipo de experiência: ela obriga você a olhar para lacunas que você não sabia que existiam. Obriga você a se movimentar para não ser engolido. E, com isso, você cresce em direções que não estavam no plano original.­Quando o feedback questiona quem você éFeedback é uma ferramenta poderosa. Quando usada com contexto, intenção e escuta. Mas quando vem desconectado da realidade vivida ou de maneira genérica, pode causar mais ruído do que clareza.Receber a frase: “Talvez você precise refletir se se encaixa na cultura da empresa” — depois de meses de trabalho sério, entregas consistentes e esforços de conexão — não foi apenas um alerta. Foi um golpe.Não por orgulho, mas porque ela dizia, nas entrelinhas: “O que você traz pode não ter lugar aqui.”Esse tipo de feedback não aponta para um comportamento pontual. Ele toca na identidade. Ele convida (ou força) uma revisão de si, e isso tem um custo emocional altíssimo.Você começa a duvidar do seu impacto, da sua forma de contribuir, até da sua trajetória. Surge a pergunta incômoda: será que tudo o que me trouxe até aqui já não é suficiente?E com ela, o peso da insegurança: será que estou fa

Abr 14, 2025 - 11:37
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Quando o certo e o errado se confundem

Reflexões sobre cultura organizacional, identidade profissional e o custo invisível da adaptação.

Imagem em preto e branco de pedras empilhadas em equilíbrio sobre uma base frágil, simbolizando a tensão entre diferentes forças. A cena transmite visualmente o esforço de encontrar equilíbrio entre identidade e adaptação em ambientes desafiadores.
É um baita esforço conseguir equilibrar tantos pesos diferentes

Já entrou em uma nova empresa e sentiu que, apesar de toda sua bagagem, parecia não saber mais como se mover? Como se tudo o que te trouxe até ali fosse colocado em dúvida? É sobre isso que quero falar neste artigo.

Não é um desabafo, ainda que venha de um lugar pessoal. Também não é uma solução pronta, porque ela não existe. O que você vai encontrar aqui é uma reflexão sincera sobre o que acontece quando o profissional que somos encontra uma cultura que nos desafia a reaprender quem somos — e como atuamos — em um novo contexto.

Começar em uma nova empresa é como atravessar uma fronteira invisível. Você carrega na bagagem anos de experiência, repertório técnico, maturidade emocional, mas, ao cruzar a porta de entrada, percebe que está em um novo território.

A língua até se parece com a que você já conhece, mas os códigos mudam: o que é valorizado, o que é percebido como relevante, quem tem voz, quem escuta, quem lidera; tudo isso assume novas formas.

Nessas horas, currículo, cargo e conquistas passadas não te blindam do desconforto. Pelo contrário: é justamente quem tem mais estrada que sente com mais força o peso da reinvenção.

Quando cheguei em uma nova organização, percebi isso logo de cara. Ainda que a cultura verbalizada fosse alinhada aos meus valores — colaboração, escuta ativa, centralidade no cliente — a vivência prática exigia outras competências: velocidade de articulação, presença estratégica e domínio da lógica política interna.

Esse descompasso entre o que se comunica e o que se vive me levou a uma fricção intensa, silenciosa e transformadora. Porque não se tratava apenas de me adaptar a uma nova empresa; era, de algum modo, um embate entre o profissional que sou e o que o sistema esperava que eu fosse.

E tudo isso não aconteceu de uma hora para outra. Essa foi uma travessia de meses. Dez, para ser mais preciso. Uma jornada longa, feita de avanços e recaídas, de descobertas e resistências, de conversas internas e silêncios externos. E talvez a parte mais importante: de reconciliação com o que eu já sabia sobre mim, mas que o contexto me fez duvidar.

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Cultura declarada x Cultura percebida

Muitas empresas sabem exatamente o que gostariam de ser. Têm manifestos bem escritos, valores estampados nas paredes e discursos alinhados em vídeos institucionais. Mas entre o ideal e o real existe um desvio — e é nele que moram os ruídos mais difíceis de lidar.

Uma empresa pode se posicionar como diversa, colaborativa, com alta valorização do aprendizado contínuo e da autonomia. Mas, no cotidiano, o que pode ganhar espaço é outra dinâmica: saber se posicionar nas reuniões certas, com as pessoas certas, no tempo certo.

É como se o valor real estivesse na performance social, não apenas na entrega de valor.

Essas contradições culturais não são exclusividades de uma empresa. Elas fazem parte da natureza de muitas organizações em crescimento, que buscam amadurecer rápido e, no caminho, convivem com tensões entre discurso e prática.

Mas para quem chega de fora, isso gera confusão. O que é esperado? Ser estratégico ou ser rápido? Ser profundo ou ser pragmático? Focar no cliente ou no stakeholder interno? Essas escolhas são raramente explicitadas. E quando os critérios de sucesso estão nas entrelinhas, é fácil se perder.

Esse tipo de ambiguidade, quando somado ao peso da reinvenção pessoal, cria uma espécie de “evolução acidental”: um conceito que explorei em outro momento da minha trajetória. São mudanças que surgem da fricção, do incômodo, da exposição a contextos nos quais o repertório anterior não é suficiente. Mudanças que não são planejadas, mas que, com o tempo, revelam caminhos de crescimento.

E talvez essa seja uma das maiores riquezas desse tipo de experiência: ela obriga você a olhar para lacunas que você não sabia que existiam. Obriga você a se movimentar para não ser engolido. E, com isso, você cresce em direções que não estavam no plano original.

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Quando o feedback questiona quem você é

Feedback é uma ferramenta poderosa. Quando usada com contexto, intenção e escuta. Mas quando vem desconectado da realidade vivida ou de maneira genérica, pode causar mais ruído do que clareza.

Receber a frase: “Talvez você precise refletir se se encaixa na cultura da empresa” — depois de meses de trabalho sério, entregas consistentes e esforços de conexão — não foi apenas um alerta. Foi um golpe.

Não por orgulho, mas porque ela dizia, nas entrelinhas: “O que você traz pode não ter lugar aqui.”

Esse tipo de feedback não aponta para um comportamento pontual. Ele toca na identidade. Ele convida (ou força) uma revisão de si, e isso tem um custo emocional altíssimo.

Você começa a duvidar do seu impacto, da sua forma de contribuir, até da sua trajetória. Surge a pergunta incômoda: será que tudo o que me trouxe até aqui já não é suficiente?

E com ela, o peso da insegurança: será que estou falhando em algo que nem consigo nomear?

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O efeito invisível da fricção cultural

O impacto real dessa fricção não aparece nos OKRs. Ele se manifesta em silêncios: você começa a falar menos, propor menos, aparecer menos. Não por falta de vontade, mas porque sente que está fora de sintonia.

Isso gera isolamento emocional; uma espécie de autoexílio. Você passa a observar mais do que interagir, medir palavras, evitar exposição. A cada reunião, a cada projeto, a dúvida se repete: É o momento certo de entrar? Será que estou atrapalhando? Será que vou ser mal interpretado?

E enquanto você lida com esse ruído interno, continua entregando. Só que agora com menos brilho, menos confiança, menos presença.

Esse ciclo silencioso é corrosivo. E mais comum do que se imagina, principalmente em culturas organizacionais que valorizam o “brilho externo” mais do que a contribuição concreta e estruturada.

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Reconstruir a partir de dentro

A virada não foi mágica. Nem imediata. Foi fruto de muita escuta interna, conversas honestas com pessoas de confiança e uma decisão consciente: eu precisava encontrar uma forma de me adaptar sem me anular.

Comecei aos poucos, com pequenos gestos. Nada grandioso, mas cada um com uma intenção clara. Passei a dar mais visibilidade ao que estava sendo construído, não como estratégia de marketing pessoal, mas como forma de integrar e conectar. Reformulei a maneira como apresentava minhas ideias — menos denso, mais direto, sem perder profundidade. Fui ocupando espaços que antes evitava, não por obrigação, mas por entender que presença também é uma ponte de legitimidade.

Usei a comunicação como ferramenta de reconstrução. Escutei mais, argumentei menos. Comecei a fazer perguntas antes de dar respostas. Documentei conhecimento com mais cuidado, não apenas para mim, mas como um convite para colaboração real.

Nada disso foi uma renúncia da minha essência. Pelo contrário: foi uma tentativa intencional de torná-la compreensível para um sistema que, até então, não sabia como me ler.

Líderes têm o poder de transformar fricções em alavancas — ou em muros intransponíveis. E isso depende menos de ferramentas e mais de sensibilidade.

O tipo de liderança que mais ajuda em contextos como esse é a que enxerga o que não está dito. Que vai além do “você precisa aparecer mais” e pergunta: O que está dificultando sua presença? Ou ainda: Como posso apoiar você a tornar seu impacto mais reconhecível sem distorcer seu jeito de ser?

A maturidade de uma liderança não está apenas em cobrar entrega, mas em ajudar seus liderados a traduzir seu valor para o sistema. Em reconhecer que nem todos operam a partir do mesmo lugar, mas todos podem crescer quando há espaço e escuta.

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Visibilidade não é sinônimo de valor (mas ajuda a reconhecê-lo)

Essa foi uma das lições mais dolorosas e valiosas desse processo: entregar valor e tornar esse valor visível são competências totalmente diferentes — e igualmente importantes.

Muitas vezes, confundimos ausência de visibilidade com ausência de entrega. Mas o que está fora do radar não deixa de existir. Só deixa de ser levado em consideração.

Aprendi que tornar o impacto visível não é autopromoção. É dar contexto. É garantir que aquilo que se faz se conecte com o que os outros estão fazendo. Visibilidade, nesse sentido, é um gesto de integração.

E isso também se aprende. Também se desenvolve. E precisa ser tratado como parte do repertório de quem deseja crescer em ambientes extremamente complexos.

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Adaptar-se com consciência não é se anular

A maior virada de chave foi perceber que adaptação não é submissão. É escolha. É inteligência contextual. É entender as regras do jogo e decidir até onde vale jogar e quando é hora de mudar o tabuleiro.

Não se trata de abrir mão de si. Mas de ajustar o tom, o ritmo, o tempo da fala — sem perder a essência do que se quer dizer.

Hoje, olho para esse processo como um aprendizado profundo sobre mim mesmo, sobre como me comunico e sobre o tipo de cultura na qual eu floresço. Nem toda empresa é para todo mundo. E tudo bem.

“Essa cultura está pronta para reconhecer e valorizar o que eu trago?”

Essa é a pergunta que ainda ecoa.

Imagem em preto e branco de duas pessoas em um escritório usando máscaras de fantasia — uma de cavalo e outra de dinossauro — enquanto gesticulam de forma exagerada. A cena reflete o estranhamento e a desorientação que podem surgir ao tentar se encaixar em uma cultura organizacional com códigos pouco claros ou desconectados da prática.
Mesmo com diferentes estilos é possível manter o ritmo.

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Dançando com a cultura sem perder o ritmo

Cultura organizacional é viva, dinâmica e imperfeita. Ela molda as pessoas, mas também pode ser moldada por elas quando há espaço, escuta e intenção.

Se você está vivendo esse tipo de tensão, saiba: não é fraqueza. É sinal de consciência. E com autoconhecimento, apoio e estratégia, dá para atravessar esse momento sem perder de vista quem você é.

Talvez o certo e o errado não estejam em polos opostos. Talvez estejam apenas em ritmos diferentes.

E o desafio é esse: encontrar um compasso comum, onde você consiga dançar junto — sem perder o seu passo.

Recomendação de leituras

“A coragem de ser imperfeito” — Brené Brown
Sobre vulnerabilidade, autenticidade e pertencimento. Um convite poderoso para se manter inteiro em ambientes de alta exigência emocional e política.

“Design Your Work Life” — Bill Burnett e Dave Evans
Traz ferramentas para redesenhar sua relação com o trabalho a partir de pequenas escolhas conscientes. Um ótimo complemento para quem está repensando encaixe e propósito.

“O mito do carisma” — Olivia Fox Cabane
Explora como a presença, a escuta e a intenção são componentes do impacto pessoal, desmistificando a ideia de que apenas perfis expansivos têm espaço de influência.


Quando o certo e o errado se confundem was originally published in UX Collective