O novo jazz não cheira a mofo. É fresco e sobe ao palco do Coliseu Club

Há uma nova onda de projectos que trazem uma abordagem refrescante ao jazz. O género ganha espaço num ciclo de concertos, o Santo Antão Jazz Clube, já este sábado.

Abr 26, 2025 - 22:06
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O novo jazz não cheira a mofo. É fresco e sobe ao palco do Coliseu Club
O novo jazz não cheira a mofo. É fresco e sobe ao palco do Coliseu Club

Há um novo sítio onde se pode ouvir novo jazz. O Coliseu Club — sala de espectáculos que se situa dentro do Coliseu de Lisboa — vai receber a primeira noite do Santo Antão Jazz Clube, este sábado (19 de Abril), com concertos de Yakuza e Samalandra, dois dos nomes que melhor representam este novo movimento.  

Esta iniciativa é promovida pelo blogue de música Rimas e Batidas e conta com a curadoria do seu fundador, o jornalista Rui Miguel Abreu — que vai encerrar a noite com um DJ Set. Esta foi a forma que encontrou para dar palco a este estilo refrescante e de ver ao vivo projectos e artistas dos quais é fã. 

Mas o que é o novo jazz? Porque é que é um movimento e porque é que se tem vindo a disseminar em Portugal? Este estilo separa-se do mais tradicional pela forma como se mistura com outros estilo para criar algo novo. Apesar desta capacidade para se fundir com outros elementos não ser novidade — no final dos anos 60 assistimos ao crescimento do jazz fusion — este referia-se a géneros como o rock, funk ou blues.  

No novo jazz, existe um maior interesse por “pedir emprestado” ao hip-hop, à electrónica ou ao rock psicadélico. É o que encontramos na música de grupos como os BadBadNotGood, que surgiram no início da década de 2010. Eles foram exímios a sentir o pulso destes sons contemporâneos que encantam as novas gerações e a misturá-los com o que aprenderam no programa de jazz da Humber College, no Canadá. A influência de discos como Sour Soul (2015) ou IV (2016) ainda são sentidos nos dias que correm. 

“Neste momento observamos uma inversão de paradigma”, diz à Time Out Rui Miguel Abreu. “Há muitos produtores de hip-hop que se formaram a ouvir discos de jazz. Agora, há uma nova geração de músicos de jazz que se formaram enquanto artistas a ouvir discos de hip-hop", explica.   

“Quero acreditar que alguém como o Shabaka Hutchings [saxofonista de grupos como Shabaka and the Ancestors, Sons of Kemet ou The Comet Is Coming], aos 16 anos, estava a dirigir-se para a ir para a Guildhall School of Music and Drama, de metro, enquanto ouvia coisas como dubstep no seu MP3”, descreve.  

Para o jornalista da Blitz, esta é uma realidade que também se observa em Portugal. “Esta geração que estudou em instituições como o Hot Club, ou nas universidades em que se ensina jazz, o mais natural é que, no fim de um dia de aulas, um aluno acabe a noite num bar a ouvir outros tipos de música”, refere. “São coisas que deixam marca. Portanto, diria que a diferença desta geração é, antes de mais nada, a internet."

Hoje em dia, estes estudantes têm acesso a todas as lendas do passado – Charlie Parker, Duke Ellington, John Coltrane, Miles Davis, Theolonius Monk, no entanto, não se limitam a aprender o cânone. "Eles combinam o estudo dessas referências com uma vivência no presente e isso tem efeitos na música. Portanto, o que define esta nova geração de músicos é exatamente essa generosidade. Eles adquiriram técnicas a estudar jazz, mas não se coíbem de ouvir hip-hop, electrónica, rock psicadélico ou o que quer que seja que lhes alimente a imaginação e a criatividade”, argumenta. “Isto acaba por gerar música que é muito pouco conforme com as regras. Escapa para lá daquilo que são as margens admitidas de um estilo. Para mim, essa é a música que me entusiasma. A que desafia convenções, que é irrequieta, que se recusa a ficar num lugar apenas durante muito tempo”, confessa. 

A nova geração 

Encontramo-nos com Débora King (teclas/voz), Tiago Martins (baixo/samples) e João Neves (bateria), os três membros que formam Samalandra, no Café Dias, um simpático estabelecimento no Alto de Santo Amaro onde, todas as quintas-feiras, — apesar do pouco espaço — acontecem concertos de jazz. Os três músicos estudaram jazz, em instituições como Hot Club, a Escola Superior de Música de Lisboa (ESML), a JBJazz Clube, e têm licenciaturas ligadas a este estilo musical. O grupo mistura elementos de música de dança e hip-hop nas suas canções, com divertidos títulos como “ARTIFICIÊNCIA INTELIGENCIAL”, “CHELIA” ou “GRAFITITI”. Estas “rasteiras” são um reflexo do som em constante mudança e imprevisível do trio. 

“O jazz está-se sempre a reinventar. Desde a sua concepção que é a característica, além da improvisação, mais marcante. Vês isso em figuras como o Miles Davis que definiu muitas eras deste estilo”, diz Tiago.  

Sobre a designação novo jazz, o baixista — que actua ainda com os Expresso Transatlântico e Femme Falafel — diz não terem a preocupação em fazer algo “novo”, o mais importante é serem fiéis a si próprios. “Não sei se somos o novo jazz... somos o jazz possível", afirma entre risos. “Para uma pessoa que esteja habituada só ao jazz tradicional, se calhar o nosso som parece muito fora da norma, mas nós ouvimos muita coisa que está próxima deste registo."

Outro dos grupos é aquele com quem vão partilhar palco no Coliseu Club, os Yakuza. Formados por Afonso Sêrro, (teclista, Mazarin e Atalia Airlines), André Santos (baixista, AFTA3000), e Pedro Ferreira (guitarrista, Quelle Dead Gazelle), ao contrário dos colegas que fazem parte desta vaga de bandas, são auto-ditadas, mas não é por isso que são menos conceituados. O disco mais recente, 2, lançado no ano passado, foi distinguido por publicações como a Blitz, Altamont ou Rimas e Batidas como um dos melhores álbuns nacionais de 2024.  

“Consigo perceber de onde é que vem esta associação [ao movimento novo jazz]”, revela André. “Isso está mais ligado ao primeiro álbum de Yakuza, AILERON, onde adoptámos estética musical. Entretanto, nos novos lançamentos [onde está incluído um disco ao vivo gravado no Festival Iminente, de 2022], sinto que estamos um bocado fora dessa linha musical. Diria que estamos mais próximos de uma banda rock. Mas percebo porque é que fomos parar a esse saco e não estamos contra essa designação. Acho que é bastante digno”, explica. 

Na música dos Yakuza, há espaço para guitarras com distorção, baterias rock, teclados espaciais e instrumentos de sopro mais ligados à tradição do jazz. No entanto, AFTA3000 reconhece que existem limitações que os afastam dos grupos mais convencionais. “Este estilo é muito dado ao virtuosismo, coisa que nós não somos. A nossa dinâmica a tocar ao vivo é tocar músicas com uma estrutura mais ou menos definida. Diria que é mais aí que nos aproximamos do jazz. Pela liberdade que temos para improvisar e não estarmos presos a estruturas”, descreve.  

Onde começa e acaba a tradição?

O que separa estes grupos daqueles que estão mais colados à tradição? “Se calhar é melhor perguntar o que nos une”, desafia o baixista dos Yakuza. “Apesar dos nossos backgrounds diferentes, todos gostamos de jazz e de ouvir músicos virtuosos. O jazz sempre teve esta capacidade para misturar diferentes ingredientes numa panela e ver o que dá. Acho que é isso que nos aproxima”. 

Os Samalandra destacam também o amor pela improvisação e a capacidade para surpreender o ouvinte, no entanto, recordam elementos que não podem faltar na sua música, como a preocupação em ser dançável e uma estrutura que se assemelhe a uma canção. As referências também são outras. Quando perguntamos o que Débora, João e Tiago estão a ouvir, somos bombardeados de nomes como Flying Lotus (produtor de uma electrónica experimental cuja tia-avó é a lendária Alice Coltrane), Louis Cole, Ben Flocks ou Jason Lindner, mas também por imensos portugueses como Mané Fernandes (que se tornou numa espécie de mentor do grupo), Bruno Pernadas, Margarida Campelo, Memória de Peixe ou Femme Falafel. 

Samalandra
Raquel CorreiaSamalandra

Uma das razões pelas quais esta cena musical está a proliferar é pela partilha e colaborações entre músicos. Por exemplo, Débora já actuou com Femme Falafel quando esta precisava de um teclista. No concerto do Santo Antão Jazz Clube, os Samalandra e Yakuza piscaram o olho à possibilidade de dividirem palco e fazerem uma colaboração. Esta troca de ideias ajuda a criar uma cena mais saudável, mas será que tem oportunidade de extravasar para outro circuito? 

Há espaço para todos? 

André Santos fica reticente sobre a possibilidade de os Yakuza conseguirem tocar num festival de jazz tradicional. “Ia ser um desafio se nos colocassem num line-up de jazz”, desabafa. “Já pensámos nisso. Esses convites podem eventualmente surgir, até por este rótulo que nos colocaram. Estávamos nessa, sim, mas sentimos que não somos capazes de ter momentos de solos, coisas que se calhar um público nesse contexto iria gostar de ver”. 

Os Samalandra sentem que poderiam receber convites deste tipo, mas reconhecem que o seu público é maioritariamente mais jovem e “alternativo”. “As pessoas que estão mais por dentro do jazz tradicional não estão assim tão interessadas em ouvir a nossa música, na verdade”, reconhece Débora. E o que acham os outros músicos? Para Lana Gasparøtti — teclista e vocalista luso-croata, natural de Lagos, que actua a solo e com Pedro Mafama ou Femme Falafel — a versatilidade do seu som permite actuar nos mais variados palcos.

“Com este projecto, tenho a abertura para actuar num barzinho de jazz, num clube ou até mesmo num auditório. Mas também já fui convidada para actuar em festivais de Verão e até de música electrónica”, descreve a artista — que fez a primeira parte de Air no EDP Cool Jazz — cuja música incorpora elementos de drum ‘n’ bass e psytrance e bebe de influências como Jamiroquai ou Prodigy.  

“Uma pessoa mais ligada à tradição ouve a minha música e diz: ‘isto não tem nada a ver com jazz’. As minhas harmonias podem não ser as mais óbvias, mas existem elementos — como a improvisação, a sonoridade ou a forma como o grupo está constituído —, mas gosto de pensar que estou a fazer jazz”, diz a autora de Dimensions (2024). 

No caso dos Ocenpsiea — quarteto que se conheceu em jam sessions no Conservatório de Braga — estes sentem que a sua música começou a evoluir mais fora da Academia e começaram a estar mais à vontade para usar elementos como a música folclórica, rock ou o hip-hop, que lhes valeu colaborações com artistas como David Bruno, PZ ou Adolfo Luxúria Canibal.  

“Algo de que tenho muito orgulho é que a nossa música consegue enquadrar-se em vários contextos”, diz-nos João Nuno Vilaça. “Já tocámos em festivais de jazz clássico e em contextos mais de rock, como o Paredes de Coura ou o Suave Fest. Temos conseguido enquadrar-nos e adaptar-nos a qualquer contexto pela flexibilidade do nosso estilo de música”, explica, referindo que é por isso que colaboram com artistas ligados ao jazz ou a outros estilos.  

No entanto, este espírito eclético é algo que ainda afasta alguns (possíveis) fãs. “Eu diria que quem ouve regularmente a nossa música não é bem uma pessoa que só ouve rock ou uma pessoa que só ouve jazz. É uma pessoa que ouve um bocado de tudo e consegue apreciar toda a variedade que tentamos imprimir num só álbum. Aqueles que estão mais ligados a uma vertente mais clássica ouvem só as nossas músicas que têm mais esta sonoridade.  

O padroeiro que vai unir gerações? 

Rui Miguel Abreu diz-nos que não é a pessoa mais optimista do mundo, por isso, não espera que o Santo Antão Jazz Clube cumpra todos os seus objectivos. Por exemplo, não consegue prometer que vá conseguir juntar diferentes tipos de públicos nas várias sessões que irá organizar. Por isso, os planos que espera cumprir são aqueles que estão ao seu alcance. Por enquanto, as sessões deste ciclo de concertos vão alternar-se entre esta nova geração e músicos mais tradicionais, “com velinhas nas mesas, como num típico clube de jazz.”

O próximo espectáculo no Coliseu Club, que acontecerá a 15 de Maio, será protagonizado por dois saxofonistas. Uma das maiores figuras do jazz português da actualidade, Ricardo Toscano, e uma das suas grandes promessas, o artista João Mortágua. “Se calhar, o público mais tradicional — que reconhece no Toscano e no Mortágua um grande valor enquanto grandes músicos do jazz —, de repente, fica com curiosidade de ir investigar as bandas novas de que nunca ouviram falar”, refere o jornalista. “Se isso acontecer, ficarei muito feliz. É sinal que conseguimos mostrar às pessoas que jazz não é só uma coisa. Pode ser muito”.