Pobreza menstrual atinge milhões de pessoas no Brasil

Mesmo com os avanços trazidos por novas políticas sociais, o constrangimento por não ter condições de comprar um absorvente expõe desigualdades no acesso à saúde e higiene

Abr 27, 2025 - 08:30
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Pobreza menstrual atinge milhões de pessoas no Brasil

Apesar de ser um processo natural e vivido por mais da metade da população, a menstruação ainda é envolta por tabus, desinformação e, principalmente, desigualdade. No Brasil, a pobreza menstrual afeta milhares de pessoas que não têm acesso adequado a itens de higiene, banheiros e informação. Para combater essa realidade, o Governo Federal lançou, em 2023, o Programa Dignidade Menstrual, que prevê a distribuição gratuita de absorventes para pessoas entre 10 e 49 anos em situação de vulnerabilidade.

O programa é resultado de uma articulação entre os Ministérios da Saúde, das Mulheres, da Justiça e Segurança Pública, da Educação, dos Direitos Humanos e da Cidadania, e do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome, e foi instituído pelo Decreto nº 11.432. Desde o início da distribuição, em janeiro de 2024, mais de 1,7 milhão de pessoas foram beneficiadas, segundo dados do Ministério da Saúde. A maior parte está no Nordeste, onde a Bahia e o Ceará lideram os atendimentos. Já o Sudeste, além de ter alta demanda, concentra a maior quantidade de farmácias populares do país, ponto de retirada dos absorventes.

No Brasil, o estudo Pobreza Menstrual no Brasil: desigualdade e violações de direitos, realizado pelo Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA) e o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) revela que 713 mil meninas vivem em casas sem banheiro ou chuveiro, e mais de 4 milhões não têm acesso a itens básicos de higiene nas escolas.

A desigualdade no acesso também é apontada por organismos internacionais. Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), ao menos 500 milhões de pessoas no mundo vivem sem condições mínimas de higiene para um período menstrual seguro.

Foi a partir do incômodo com esse cenário que Luana Escamilla, hoje com 21 anos, criou, ainda aos 16, a ONG Fluxo sem Tabu. Inspirada por um documentário sobre pobreza menstrual na Índia, ela percebeu que o tema ainda era invisível no Brasil. "Todo tabu é mantido vivo pelo silêncio. E se tem tanto silêncio em cima de um assunto, a gente não consegue resolver ele", afirma.

O Fluxo nasceu em meio à pandemia, cresceu pelas redes sociais e já atendeu mais de 26 mil mulheres. As ações vão desde a distribuição de kits de higiene até a instalação de uma vending machine de absorventes em Paraisópolis, em São Paulo, onde 400 mulheres são atendidas mensalmente de forma totalmente gratuita. Além disso, a ONG realiza ações educativas com ginecologistas e trabalha para ampliar o debate sobre saúde menstrual na comunidade.

Em abril, Luana foi uma das embaixadoras do Brazil Conference, evento realizado na Harvard University, onde representou a região sudeste e compartilhou sua trajetória. "Falei sobre o projeto e principalmente sobre a capacidade dos jovens em fazer mudanças e como temos que incentivá-los", conta.

Consequências

Um dos desafios enfrentados por quem vive a pobreza menstrual está relacionado à saúde. A ginecologista Luana Lima explica que, além do sangramento, o período menstrual pode trazer uma série de sintomas causados pelas oscilações hormonais. "É muito comum sentir algum desconforto na pelve, cólica, alteração do hábito intestinal e do humor, como irritabilidade. Algumas pessoas têm compulsão por doces ou mudança no paladar", descreve.

Esses sintomas se tornam ainda mais difíceis de enfrentar em contextos de vulnerabilidade. Nesses casos, a ausência de absorventes leva ao uso de alternativas perigosas. "Muitos acabam utilizando papel higiênico, miolo de pão ou tecidos sujos, o que pode causar infecções. Como a vagina está em contato direto com o meio externo, esses materiais podem contaminar o útero, subir pelas trompas e comprometer, inclusive, a fertilidade", alerta a médica.

O constrangimento em falar sobre menstruação e a dificuldade de acesso à orientação impede muitas pessoas de procurar ajuda médica. Lima destaca que é fundamental levar informação, especialmente para espaços como abrigos e comunidades. "São informações bem básicas mesmo, mas que temos que divulgar", diz.

Apesar de avanços importantes, como o Programa Dignidade Menstrual, a realidade de pessoas em situação de rua ainda impõe desafios significativos. Júlia Valladão, assistente social do projeto Formas da Rua, uma parceria entre o Instituto No Setor e o Nupop da Fiocruz, aponta que, embora a distribuição gratuita de absorventes seja um passo fundamental, o acesso ao benefício nem sempre é simples.

"Para ter acesso aos absorventes é necessário portar documento com foto, mas a maioria das pessoas em situação de rua não tem esse documento ou perdeu, foi roubado, rasgou com o tempo. Na minha opinião, é uma falha do programa não ter um cadastro já com a foto da pessoa em que você possa só informar seu CPF", critica.

O Instituto No Setor atua no Setor Comercial Sul, em Brasília, onde possui diversas ações, entre elas banheiros comunitários. A partir desse espaço, passou a receber doações de absorventes para distribuir às pessoas que menstruam e não têm meios de cuidar da própria higiene. "Receber um absorvente é só uma parte. É preciso ter acesso à higiene básica: poder se lavar, trocar de roupa íntima, lavar o que sujou. Sem isso, aumentam os riscos de infecções fúngicas e bacterianas", alerta Valladão.

Bruna Santos conhece bem essa realidade. Ela, que além de ser educadora social no projeto também atua nos coletivos Tulipa e Aroeira, voltados à redução de danos, viveu em situação de rua por 15 anos no mesmo local onde trabalha atualmente. "Quando não tinha doação, a gente ia nas portas das farmácias pedir. Mas quando não conseguia, cortava uma roupa e usava como pano para segurar a menstruação. Isso é a estratégia de sobrevivência na rua", relembra.

Santos viu sua vida mudar em 2015, quando os banheiros comunitários foram instalados no Setor Comercial Sul. Ali, ela se sentiu vista pela primeira vez e passou a se aproximar dos organizadores da ONG. Aos 30 anos, devolve esse acolhimento a outras pessoas. "Ninguém me enxergava, a sociedade passava por cima de mim. Estar trabalhando e fortalecendo essas pessoas é gostoso demais".

*Estagiária sob a supervisão de Edla Lula