“Mais acessível e democrático”. É o que espera ser a nova Sala Estúdio Valentim de Barros
A nova sala de espectáculos da cidade está inserida nos Jardins do Bombarda e inaugura quinta-feira. Até domingo, há programação especial e uma peça para ver.


Foi no antigo hospital psiquiátrico Miguel Bombarda que Valentim de Barros esteve internado ao longo de quase cinco décadas. Foi o primeiro bailarino português a internacionalizar-se, mas passou a maior parte da sua vida aprisionado neste estabelecimento, porque era homossexual, o que, até 1990, era considerado uma doença mental. Chegou a ser submetido a uma leucotomia e acabou por morrer no dia em que recebeu alta, em 1986. Agora, no mesmo lugar onde Valentim esteve internado todos aqueles anos, nasce a Sala Estúdio Valentim de Barros – uma nova sala de espectáculos na cidade, que procura homenagear o seu legado.
A sala, que ocupa um antigo telheiro do hospital, encerrado desde 2011, insere-se nos Jardins do Bombarda, inaugurados em Junho do ano passado. O projecto ocupa parte do edificado do Miguel Bombarda (para o qual está previsto um futuro projecto imobiliário) e é dinamizado pela cooperativa LARGO Residências, em parceria com a Estamo, a entidade pública que gere o património imobiliário nacional. A associação mudou-se para este espaço depois de ter sido obrigada a abandonar o Quartel do Largo do Cabeço de Bola, onde operou durante dois anos após ter saído do Largo do Intendente, que tinha ocupado nos 11 anos anteriores.
Os Jardins do Bombarda, que acolhem vários projectos artísticos, além de um restaurante, um bar e um pinhal, chegam agora à sua última fase de reabilitação com a inauguração da Sala Estúdio Valentim de Barros. “A primeira fase foi construir os espaços de trabalho, a segunda foi abrir as portas em Junho [de 2024] à população e a uma programação cultural, enquanto projectávamos esta terceira fase, que é a sala de espectáculos”, explica-nos Marta Silva, directora da LARGO Residências, enquanto nos guia pela sala, ainda na fase final de obras.
Quando uma cooperativa e um teatro nacional se juntam
Para projectar e financiar esta nova sala de espectáculos, a LARGO contou com a parceria do Teatro Nacional D. Maria II. As negociações começaram em Maio de 2024, entre Junho e Setembro fechou-se o projecto de arquitectura e lançou-se o concurso de obra, e em Outubro arrancou a empreitada. “Nós já seguimos o trabalho da LARGO há bastante tempo, desde que estava no Intendente e depois no Quartel do Largo do Cabeço de Bola e agora nos Jardins do Bombarda, e sempre tivemos uma enorme admiração por aquele ecossistema. E quando visitámos o espaço, ainda antes de ele abrir, muito antes da inauguração dos Jardins do Bombarda, percebemos logo que havia ali um potencial enorme para fazermos uma parceria”, afirma Rui Catarino, do conselho de administração do D. Maria II, ao telefone com a Time Out.
Com o edifício-mãe ainda fechado para obras, tendo a sua reabertura apontada para o primeiro trimestre de 2026, a Sala Estúdio Valentim de Barros representa novas oportunidades para o teatro que, para a programação de 2025, decidiu concentrar as apresentações em Lisboa. “A parceria permite-nos dispor de um espaço até ao final do ano de 2025 para a nossa programação exclusiva, que complementa a nossa parceria com a EGEAC Lisboa Cultura, em que estamos a apresentar seis projectos no Teatro Variedades. De certa forma, o Teatro Variedades substitui a nossa Sala Garrett, embora tenha menos lotação e menos condições técnicas, e a Sala Estúdio Valentim de Barros substitui, de certa maneira, a nossa Sala Estúdio Amélia Rey Colaço/ Robles Monteiro no D. Maria II”, diz Rui Catarino.
Para a cooperativa, este trabalho conjunto também representa inúmeras possibilidades – “Acredito que a parceria com o teatro nacional traga uma visibilidade, um público adicional e consolide esta dimensão institucional, política e de comportamento público que o projecto pode merecer, para não ser visto como algo que é ‘dos da cultura’. Não, é um pedacinho de sociedade aqui representada”, acredita a responsável da LARGO. Além de que “estes acordos público-comunitários acabam por ser uma solução interessante para a sustentabilidade das cidades e o facto de eles [D. Maria II] serem residentes que são também um organismo do Estado reforça ainda mais esta cumplicidade, que é importante que exista”, realça.
A transformação deste espaço foi assim financiada pelo Teatro Nacional D. Maria II, pela LARGO Residências e por um grupo de 50 investidores sociais, que financiaram não só a sala de espectáculos, como também os restantes espaços dos Jardins do Bombarda. “Resolvemos fazer uma campanha de investidores sociais, juntando pessoas ou projectos que podiam investir. Portanto o nosso empréstimo é a pessoas, singulares e colectivas, com prazo de três anos e com 3% de juros ao ano”, explica Marta Silva, sublinhando como a acção, cuja divulgação foi direccionada a quem segue o trabalho da cooperativa, foi pensada numa dinâmica que vai mais além do investimento financeiro.
“Não queremos uma relação com estes investidores apenas de juros. Também são pessoas que se envolvem nas actividades, não obrigatoriamente, mas com essa possibilidade. Vários deles já o fizeram, o que dá ainda um maior sentimento de pertença ao projecto. A LARGO é um motor, mas não é o actor principal. É um motor central que depois dá vida e viabiliza que muitas organizações, muitos vizinhos e muitas pessoas possam usar este espaço como seu, porque, afinal, sendo propriedade do Governo, o Governo somos todos nós”, defende a responsável.
De salão de festas a barracão a sala estúdio
Antes de ser a Sala Estúdio Valentim de Barros, este espaço viveu muitas vidas. Em tempos, foi um salão para festas de Natal do antigo hospital psiquiátrico, em que o próprio Valentim de Barros chegou a participar, quer fosse em peças ou declamações de poesia. Mais tarde, no início dos anos 2000, foi casa do Teatro Praga, da qual, inclusive, fez parte Pedro Penim, o actual director artístico do D. Maria II. Há cerca de 20 anos, a companhia acabou por ser obrigada a abandonar o espaço.
“Era uma coisa muito diferente, um barracão que não tinha divisórias nenhumas. Não me lembro sequer de haver uma separação lá dentro. E entrava-se pela entrada principal do hospital, esta zona era só mato”, recorda a realizadora e jornalista Maria João Guardão, que está a preparar um documentário sobre os Jardins do Bombarda, dos ensaios e peças da companhia que viu neste sítio. “O Teatro Praga tem um lado muito experimental nos seus trabalhos, no sentido de ultrapassar as barreiras. Eles funcionam e funcionavam muito assim, principalmente aqui que não havia separação entre público e artistas. Essa inexistência de fronteiras era muito reveladora do que era um teatro dentro de um perímetro de um hospital psiquiátrico”, nota.
Hoje, porém, a configuração da sala é inevitavelmente diferente. À entrada, na zona do foyer, a parede branca estará coberta com uma peça, feita em lençóis, de Valentim de Barros. Faz parte do acervo do Hospital Miguel Bombarda, juntamente com outras centenas de desenhos, fotografias e até registos médicos, os quais estão a ser alvo de inventariação por parte de uma equipa do Centro Hospitalar São José. “Não só está ligada ao nome de Valentim, mas também está ligada ao trabalho que este grupo de classificação do acervo está a fazer. É extremamente importante, porque está intimamente ligado àquilo que pode ser o futuro de parte deste complexo do Miguel Bombarda, nomeadamente das zonas classificadas, para garantir que tenham um uso museológico e cultural”, afirma Marta Silva.
Passando a entrada, encontramos uma black box, com uma bancada retrátil para cerca de 100 pessoas. Mesmo que para já a sala esteja a ser ocupada pelo teatro nacional, a ideia foi criar um espaço polivalente, que sirva qualquer tipo de apresentação artística ou cultural, entre concertos, performances, peças, encontros ou conferências. E, por isso, terminada a programação já definida até ao final do ano, esta sala passa a fazer parte dos recursos dos Jardins do Bombarda, da LARGO ou de parceiros residentes, com uma direcção artística e curadoria partilhada, de forma a tentar ser “um equipamento cultural mais acessível e democrático”. “Conceitos diversos, desde o mais inicial ao mais institucional e antigo, vão poder conviver. Até porque, raramente, se consegue aceder a equipamentos clássicos com as condições técnicas de um auditório destes com pouca antecedência”, afirma, antevendo que a programação futura seja feita com prazos mais curtos do que os de um teatro nacional ou municipal.
Neste sentido, Rui Catarino não descarta a hipótese de voltar, no futuro, à Sala Estúdio Valentim de Barros, “um activo muito importante para as artes performativas em Lisboa”. “Até ao final de 2025, é nossa, é da utilização exclusiva da programação do D. Maria II, mas depois criará muitas oportunidades de trabalho, quer com o D. Maria II, quer com comunidades independentes, quer com as entidades que já fazem parte do ecossistema da LARGO Residências, no sentido de enriquecer a vida cultural da cidade”, diz, reforçando a preocupação do teatro em trabalhar também fora dos espaços institucionais, tal como tem acontecido com programas como a Odisseia Nacional.
O espaço é ainda provido de dois camarins e duas salas técnicas e, no piso superior, um estúdio, de paredes e tecto pintados de branco. Neste momento, serve de espaço de trabalho para a equipa do teatro nacional, depois servirá como sala de ensaios, para residências artísticas e para pequenos eventos.
A esperança para o futuro
Apesar de este ser um espaço de actuação, à partida, temporário para a LARGO Residências, Marta Silva espera que a actividade dos Jardins do Bombarda seja o ponto de partida para algo que nos mantenha aqui durante muitos anos. “Depois de tudo o que estamos aqui a fazer, também esperamos que, tendo a consciência de que estamos com instalações temporárias e que não interferem naquilo que poderá vir a ser o futuro, esta fruição cultural e social continue nos projectos futuros, connosco ou não.” Até porque “aqui, o projecto não está aprovado, portanto a possibilidade de poder contribuir com uma visão concreta, como se fosse um tubo de ensaio, ou seja não é escrever um projecto, não é entregar uma ideia, nem candidatarmo-nos a uma proposta, é pedir licença para fazer temporariamente. Esse fazer temporário, muitas vezes, é a oportunidade de criar raízes muito mais profundas”, acredita a directora.
A inauguração da Sala Estúdio Valentim de Barros dá-se nesta quinta-feira, 27 de Março, dia em que se assinala o Dia Mundial do Teatro, e o programa de abertura prolonga-se até domingo, 30, com exposições, conversas, concertos, visitas ao Panóptico – Pavilhão de Segurança, e também a estreia de Auto das Anfitriãs, que fica em cena até 13 de Abril.
Um auto de quinhentos bem moderno
O convite veio de Pedro Penim, que decidiu propor a Inês Vaz e Pedro Baptista o Auto chamado dos Enfatriões, um texto de Luís de Camões, para ser o ponto de partida desta peça. Depois, a ideia surgiu: criar uma peça, que é uma festa, uma celebração, no fundo, um encontro que pensa esta história e que pensa o nosso país baseando-se nas referências e símbolos dos dias de hoje.
O espectáculo está inserido no programa Próxima Cena, que procura fazer chegar criações artísticas a várias regiões do país, em especial aos territórios de baixa densidade populacional, e é dirigido a jovens do 3.º ciclo e do ensino secundário, por isso houve uma vontade de encenar uma peça que fosse captivante e que levasse o público a questionar temáticas actuais, ao mesmo tempo que fosse divertida. “Queríamos uma coisa muito contemporânea, da cultura popular, sem questionar. E [queríamos] esta ideia de congregação, de festa como sítio de pensamento. A festa pode ser um sítio de pensamento e o teatro é um sítio de congregação”, afirma Inês Vaz, depois de um ensaio.
Em palco, Cire Ndiaye, Inês Vaz, João Grosso e José Neves interpretam personagens do texto de Camões, que é inspirado no clássico Anfitrião, de Plauto, de forma a que os dois mundos, este que vivemos e o de 1500, se entrelacem e misturem para criar um novo, composto por uma parede amarela e um sinal néon que grita “Alvíssaras!”. É um mundo novo e velho, em que ora estamos num concerto, ora estamos numa peça. As coisas são “cousas”, que tanto se podem “dezir” ou dizer, e com a mesma rapidez da de um vídeo no TikTok, que dura uns míseros dez segundos, fala-se de amor, de relações, do estado do mundo e da vida e, para isso, utiliza-se o inglês e o português como se de uma língua só se tratasse e referências que apenas quem está “cronicamente online” vai entender.
O espectáculo não serve só para fazer rir, também quer mostrar como podemos pegar nos cânones da literatura, naqueles que parecem estar congelados no tempo, para pensarmos e percebermos o mundo à nossa volta. “Não precisamos de sentir essa intimidação com essa ideia dos ícones, do cânone. Não deixa de ser um objecto, falando da obra, que está no mundo como outro qualquer, neste sentido em que é tudo matéria e não temos de ter estas intimidações. Está tudo ligado e em combustão no tempo”, realça Pedro Baptista.
E, ao longo do processo de criação, não foi só em Camões ou em simbolismos dos últimos anos que os encenadores se inspiraram – Valentim de Barros também encontrou o seu lugar em Auto das Anfitriãs. “Há uma parte da Brómia, em que eu falo de um estado constante de excitação e digo ‘se é doença, é condição, é fado, é libertação, não me mandem para o hospital, para a prisão ou para a cozinha, não me tirem que ela é minha, esta força, esta inquietação’, e isto é inspirado em Valentim de Barros e nas pessoas que sofrem de uma condição ou de uma não-normatividade mental, que na altura era uma coisa muito difícil de passar por”, remata Inês.
Jardins do Bombarda (Rua Gomes Freire, 161)
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