Lugar de desacordo

Maria Rita Kehl ainda estava no colegial, em 1968, quando levou um colega de classe à sua casa para juntos fazerem um trabalho. Seu avô, Renato Kehl, então com 79 anos, a chamou de canto e perguntou se o rapaz era judeu. A questão era irrelevante para ela, mas condizente com aquilo que o médico Renato havia defendido ao longo da vida como membro da Sociedade Eugênica de São Paulo – ele era tido por personalidades brasileiras, entre elas o escritor Monteiro Lobato, como “o pai da eugenia no Brasil” no início do século XX. A eugenia é uma ideologia que defende a seletividade genética e hereditária de forma compulsória na população para definir um dito “aperfeiçoamento” humano, misturando capacitismo, colonialismo, sexismo, xenofobia e o racismo científico que estava na moda no início do século XX.  Assim, Maria Rita Kehl cresceu circundada por uma incômoda sombra. No início de fevereiro, essa sombra veio à tona depois de uma entrevista concedida pela psicanalista a Leandro Demori, da TV Brasil. O imbróglio aconteceu quando a intelectual passou a discorrer sobre os movimentos identitários. Identitarismo é um neologismo empregado para designar movimentos sociais cujos objetivos estão em torno de defender grupos minoritários (sociais ou numéricos). Raça e gênero são os principais demandantes – movimentos LGBTQIA+, negro, feminista, por exemplo. The post Lugar de desacordo first appeared on revista piauí.

Abr 29, 2025 - 13:56
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Lugar de desacordo

Maria Rita Kehl ainda estava no colegial, em 1968, quando levou um colega de classe à sua casa para juntos fazerem um trabalho. Seu avô, Renato Kehl, então com 79 anos, a chamou de canto e perguntou se o rapaz era judeu. A questão era irrelevante para ela, mas condizente com aquilo que o médico Renato havia defendido ao longo da vida como membro da Sociedade Eugênica de São Paulo – ele era tido por personalidades brasileiras, entre elas o escritor Monteiro Lobato, como “o pai da eugenia no Brasil” no início do século XX. A eugenia é uma ideologia que defende a seletividade genética e hereditária de forma compulsória na população para definir um dito “aperfeiçoamento” humano, misturando capacitismo, colonialismo, sexismo, xenofobia e o racismo científico que estava na moda no início do século XX. 

Assim, Maria Rita Kehl cresceu circundada por uma incômoda sombra. No início de fevereiro, essa sombra veio à tona depois de uma entrevista concedida pela psicanalista a Leandro Demori, da TV Brasil. O imbróglio aconteceu quando a intelectual passou a discorrer sobre os movimentos identitários. Identitarismo é um neologismo empregado para designar movimentos sociais cujos objetivos estão em torno de defender grupos minoritários (sociais ou numéricos). Raça e gênero são os principais demandantes – movimentos LGBTQIA+, negro, feminista, por exemplo.

Na entrevista, Kehl dizia, em suma, que “os movimentos identitários estagnaram o diálogo”. Para ela, as reivindicações dos ditos identitários “são nichos narcísicos”. Narciso é o personagem da mitologia grega que, de tão apaixonado por si, acabou definhando na beira de um lago depois de ver sua imagem refletida na água. É o filho do deus Cefiso que despreza tudo o que lhe parece diferente. A conversa prosseguiu. Para exemplificar a polarização dos identitários, Kehl disse o seguinte: “Eu, mulher branca, de classe média, descendente de alemão, posso criticar um negro, se ele estiver espancando o filho dele.”

 

As declarações, incluindo a associação infeliz, repercutiram. Não só pelo conteúdo, mas também pela história de quem as proferiu. De um lado, seus críticos associaram o posicionamento da psicanalista ao supremacismo do avô. Levi Kaique Ferreira, educador antirracista que tem mais de 100 mil seguidores no Instagram, argumentou que a opinião de Kehl é uma tentativa de impedir o avanço dos movimentos sociais. 

Os defensores da psicanalista, por outro lado, lembraram sua atuação no campo progressista, como membro da Comissão Nacional da Verdade (indicada pela ex-presidente Dilma Rousseff), e os atendimentos gratuitos aos integrantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). No site da Folha de S.Paulo, o professor de antropologia da UFRJ Rodrigo Toniol disse que “transformar sistematicamente antigos aliados em inimigos faz com que a autoimplosão [da esquerda] seja apenas questão de tempo”. 

Em entrevista à piauí, o psicanalista Douglas Barros, autor de O que é identitarismo, publicado no ano passado pela editora Boitempo, concordou com a análise de Kehl ao dizer que o conceito  trata da interrupção de trocas, uma “forma de gestão da vida social que torna individuais questões que, muitas vezes, dizem respeito à coletividade”. Mas criticou a colega por associar negros à violência no exemplo usado, pois “reforça o imaginário do negro violento que não desenvolveu a capacidade de reprimir os próprios impulsos”.

 

Para além das polêmicas, Kehl defendeu na entrevista à TV Brasil que o termo identitarismo seja trocado por ‘identificação’, já que isso permitiria que ela, mesmo não sendo parte de um grupo, pudesse se identificar com demandas, opinar sobre seus rumos e apontar possíveis equívocos. Também pediu a união das pessoas em torno de interesses comuns, mas disse ver com ressalva não poder falar sobre questões que fogem do seu “lugar de fala”. “Entre os diferentes, a gente se enriquece. Entre os iguais, se conforta.” 

Antes mesmo de fazer as considerações, a psicanalista avisou que não tinha repertório sobre o assunto. A ponderação, no entanto, não impediu que a polêmica se instaurasse. Semanas depois, na conversa com a piauí em uma chamada de vídeo, complementou: “Não tenho grandes reflexões filosóficas sobre o tema, é até meio tosco.”

Essa não foi a primeira vez que Kehl falou – e polemizou – sobre a atuação dos movimentos identitários. Em 2020, ela escreveu um texto em sua página no Facebook intitulado Lugar de cale-se. Na ocasião, ela defendia – posição que defende ferrenhamente até hoje – que o cancelamento é o oposto do diálogo. Parece recorrer a Voltaire, o iluminista do século XVIII, com uma frase que lhe é atribuída, mas que a origem é desconhecida: “Posso não concordar com nenhuma palavra do que você diz, mas defendo até a morte seu direito de dizê-las.” Ela chega à conclusão de que o comportamento, frequentemente visto em redes sociais, faria o filósofo se remexer no túmulo. Mais que cancelar alguém, o tal lugar de fala lhe causa ainda mais revolta. 

 

O texto era uma defesa aos ataques que a historiadora Lilia Schwarcz estava recebendo por seu artigo de opinião sobre o então recente filme de Beyoncé, Black is king, que segue a via-crucis de Simba, um menino negro que vai atrás de suas origens. A adaptação livre de O Rei Leão foi lançada em streaming em meio ao desenrolar do movimento Black Lives Matter, nos Estados Unidos. A cantora pop, na visão de Schwarcz, colocava muita pompa e “estampa de oncinha” na luta antirracista. Ela argumentou que talvez “seja hora de Beyoncé sair um pouco da sua sala de jantar e deixar a história começar outra vez, e em outro sentido”.  O comentário da autora, celebrada pelo impacto de seu trabalho de pesquisa em temas de racismo e desigualdade,  provocou ruído nas redes – mais audível que o causado pelas reflexões de Kehl. Schwarcz, depois, disse que escutou as críticas e que escrever o texto foi um erro.

Frente às críticas que a historiadora paulistana recebeu, o texto de Kehl, cujo título alude aoconhecido conceito de “lugar de fala”, defendia o direito de Lilia se manifestar acerca do tema, mesmo que o seu lugar de fala não lhe permitisse. Conclui, por fim, que o seu lugar é o da “identificação com a dor dos outros”. Por isso, quase cinco anos mais tarde, Demori lhe fez a pergunta que a colocou, novamente, na discussão – e que custou a ela uma certa dor de cabeça.

 

A definição de identitarismo como conhecemos hoje começou a pipocar nos Estados Unidos em 1974. O coletivo socialista Combahee River de mulheres negras lésbicas, que atuou em Boston até os anos 1980, defendia a criação de políticas voltadas para a emancipação de sua base – visto que ocupava uma encruzilhada de questões sociais (sexismo, racismo, etc). Além disso, queria um feminismo que desse conta dos problemas que vão além do gênero. “Tanto forças reacionárias externas quanto o racismo e o elitismo dentro do próprio movimento [feminista] serviram para ofuscar nossa participação”, escrevem as integrantes do grupo num manifesto publicado em abril de 1977.

Enquanto Marx fala da luta de classes, lançando luz no antagonismo que há entre operários e burgueses, um par de anos depois o filósofo francês Michel Foucault vai complexificar essas estruturas de poder. Daí que vários autores contemporâneos, como Grada Kilomba, escritora e psicóloga portuguesa, vão beber do conceito de biopolítica (termo vastamente discutido por Foucault, que designa a forma como estados regulam a vida de certas populações) para escrever sobre o sofrimento que atravessa mais uns do que outros. As organizadoras do coletivo de Boston já entendiam essa intersecção de questões sociopolíticas. No Brasil, o termo ganhou força apenas na década passada, quando influenciadores e youtubers que falavam sobre os múltiplos fatores enfrentados por minorias abordaram o conceito.

Acauam Oliveira, professor da pós-graduação em letras da Universidade de Pernambuco, elencou à piauí alguns problemas em torno da repercussão da entrevista de Kehl. O primeiro deles é que o foco da análise não deve ser o passado da autora ou de sua família, mas essencialmente o que ela disse – a vinculação entre corpos negros e a violência ou a crítica ao modo como movimentos identitários atuam. Para ele, o que tem acontecido com certa frequência nesse tipo de episódio é o deslocamento do debate, que acaba recaindo sobre o que ele define como “fantasia do cancelamento”. 

O segundo ponto é que ninguém escapa ao identitarismo. “Não é só uma questão de grupos particulares, mas uma condição política generalizada”, analisa Oliveira. Assim, pessoas brancas heterossexuais e cisgênero, por exemplo, também formam um núcleo identitário, ainda que essa definição não seja aplicada a elas nos debates sobre o assunto. É o que vemos ao olharmos para a extrema direita: nos Estados Unidos, homens brancos de classe média e heterossexuais formam a base eleitoral mais sólida na eleição de  Donald Trump em 2016 e 2024, segundo pesquisa da Pew Research. Grupo semelhante deu a vitória a Jair Bolsonaro por aqui nas eleições de 2018. 

Oliveira concorda com Kehl ao dizer que a guinada identitária pode gerar uma disputa por conquistas individuais e dificultar o pensamento “em termos macroestruturais”, mas ressalta que o anti-identitarismo proclamado pela psicanalista não explica as mazelas do campo progressista frente o avanço da extrema direita. “Costumam achar que esses partidos [de esquerda] estão fragilizados porque os identitários querem discutir linguagem neutra.” A fragilidade, para ele, se deve a uma política econômica pouco efetiva.

 

Jorge Viana, ex-senador do PT (2011-2019) e presidente da Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos, a ApexBrasil, lembrou em entrevista recente ao Roda Viva, da TV Cultura, de quando Edir Macedo inaugurou o Templo de Salomão em São Paulo, em 2014, com a presença da ex-presidente Dilma Rousseff. Falou disso respondendo à pergunta de um repórter sobre a capilaridade do partido em camadas evangélicas. Atropelando a resposta, um dos entrevistadores pergunta se a dificuldade se deve “às pautas identitárias”. No que, de pronto, Viana responde: “Eu acho que essa pauta foi ruim pra todo mundo”, e reflete que seu partido deveria se repaginar nesse sentido.

Lula, no evento de filiação de Marta Suplicy ao PT, em fevereiro do ano passado, adotou posição parecida. ”Eu quero me lançar porque eu sou branco, porque eu sou mulher, porque eu sou negro, porque eu sou indígena. Está errado!”, disse o presidente à plateia, dando pistas de uma possível estratégia do partido para as eleições do ano que vem. A fala aconteceu pouco tempo depois de eleitores pedirem a indicação de uma mulher negra para, pelo menos, uma das duas vagas do STF. Lula indicou dois homens: Cristiano Zanin e Flávio Dino, autodeclarados branco e pardo.

À piauí, Viana defendeu uma repaginação da legenda que vai um pouco além da relação do PT com os grupos identitários (é difícil dizer, inclusive, se o senador vê importância real no tema). Ele diz que o partido deve encontrar maneiras mais eficazes de se comunicar com gerações mais jovens – entender quais são seus interesses. Afirma também que o PT deve ressignificar o diálogo entre os mais pobres, sobretudo no segmento de eleitores evangélicos que ganham até dois salários mínimos.
Viana afirma, por fim, que a legenda enfrenta uma tarefa árdua: conciliar as bandeiras progressistas com um público que ele percebe como pouco ou nada afeiçoado a elas, com urgências econômicas e de outras naturezas. Por isso, diz que deve haver um equilíbrio. “É muito nobre lutar por causas minoritárias, porém a coisa não pode virar uma questão hegemônica.”

Para Lívia Reis, do Instituto de Estudos da Religião (Iser), há um erro nesse diagnóstico. Enquanto o ex-senador diz que pautas identitárias têm peso no distanciamento dessa população com o partido, um estudo realizado por ela em 2022 com mulheres evangélicas mostrou que as principais preocupações estão mais ligadas a questões cotidianas (preço do mercado; precarização da educação e da saúde pública; segurança pública) e menos com bandeiras mais caras à militância. “Isso é secundário”, comenta Reis.

 

Segundo Douglas Belchior, fundador da Uneafro Brasil e cofundador da Coalizão Negra por Direitos, demandas raciais são questões nacionais. Ele argumenta que problemas de saúde pública, educação e segurança, entendidos como universais e que atingem especialmente classes desprivilegiadas, tem um impacto ainda maior entre os negros. (O 18º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, do ano passado, mostrou que 82,7% das pessoas mortas em decorrência de intervenções policiais eram negras.)

Belchior saiu do Psol em 2021, depois de dezesseis anos, acusando seus líderes de contrariar o próprio discurso ao não repartir o poder entre pretos e pobres. Em conversa com a piauí, ele disse que, apesar da esquerda ter abraçado demandas raciais, “os setores médios progressistas o fizeram porque era a agenda da moda”, e que agora ele enxerga um “descenso” da pauta. Ele se candidatou a deputado federal pelo PT em 2022, mas não se elegeu.

Completando duas décadas de existência, o Psol vive um dilema interno para reformular seu programa político. No fim de março, a repórter Gabriela Sá Pessoa narrou alguns dos conflitos que permeiam a sigla, dividida entre uma adesão fiel ao petismo ou a manutenção de um certo afastamento, por vezes crítico, presente em suas trincheiras desde a fundação. No meio disso tudo, o Psol busca fortalecer um projeto que responda às questões das “maiorias sociais” – Paula Coradi, presidente do partido, definiu assim à piauí uma classe formada por mulheres e negros. 

Em vez de colocar na conta de movimentos marcados por gênero e raça o avanço do espectro político oposto, ela avalia que a extrema direita vem angariando espaço por oferecer respostas mais fáceis. “O nosso novo programa quer fazer mais perguntas e não tanto dar respostas.” Após perder a disputa pela prefeitura de São Paulo em 2024 com Guilherme Boulos, o partido, que não venceu nenhuma prefeitura na última eleição municipal, pretende rever suas posições gerais. 

A votação expressiva de Rick Azevedo, o vereador mais votado do Psol no Rio, também tem sido usado como exemplo: com a defesa do fim da jornada de trabalho 6 por 1 (ou seja, com apenas um dia de folga na semana), e sem colocar os fatos de ser negro e gay em primeiro plano na campanha, teve adesão expressiva não nos redutos cariocas do partido, mas em bairros de classe média e média baixa, como mostrou a reportagem de Pedro Tavares.

Coradi pontuou que “pauta identitária” é um jeito pejorativo de minimizar “bandeiras importantíssimas”. Ela reconhece que a percepção geral é de que há uma certa responsabilidade nas sucessivas derrotas de sua sigla por parte do chamado “identitarismo”. Para as eleições de 2026, Conradi adverte que não haverá recuos em relação às bandeiras que apoiam. “Quem diz isso não entendeu nada.”

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