Literatura: “O crematório frio: um relato de Auschwitz”, de József Debreczeni, é um relato brutal
Num relato cru e brutal que não poupa o leitor do horror, da violência e do sadismo, Debreczeni expõe a máquina nazista por dentro

texto de Gabriel Pinheiro
“Se alguém, algum dia, escrever sobre o que acontece lá, será considerado lunático ou um mentiroso pervertido”, escutou o jornalista húngaro József Debreczeni de outro prisioneiro, em sua chegada no campo de Auschwitz. Enquanto esperavam na fila do banho, ambos olhavam para as chaminés de Birkenau, que vomitavam fumaça suja dia e noite, incessantemente. Nem lunáticos, muito menos mentirosos: da queda do Terceiro Reich até a atualidade, diferentes autores e autoras se debruçaram sobre o horror do Holocausto, muitos deles a partir de suas próprias experiências nos inúmeros campos de concentração que se espalharam pelo domínio hitlerista. “O crematório frio: um relato de Auschwitz”, de József Debreczeni, publicado originalmente em 1950, ganha aguardada publicação no Brasil pela Companhia das Letras, com tradução do húngaro por Zsuzsanna Spiry.
“O crematório frio” tem início num comboio de trens. Sem saber o destino que lhes aguarda, mas com suspeitas acerca do que a máquina nazista é capaz, seus passageiros seguem uma viagem deseperançada. O destino, descobrem, é Auschwitz. Mais do que um campo de concentração, uma verdadeira cidade construída com um objetivo mortal. Um sistema fabril e organizado de exploração e escravidão humana: até que toda a humanidade se esvaia daqueles que ali se vêem presos.
Na chegada, o teatro nazista tem início. Após abandonarem todos seus pertences, duas filas são formadas. Na direita, aqueles que se sentem aptos para uma caminhada de dez quilômetros pelas montanhas até o campo. Na esquerda, aqueles que não se sentem fortes o suficiente para tal empreitada serão transportados por caminhão. As duas filas são igualmente longas. A dura caminhada a pé é verdadeira. O trajeto de caminhão, não. O destino real, sobretudo dos mais velhos e mais fracos que estão ali à esquerda, são as câmaras de gás. Um banho mortal. “Está vendo aquelas chaminés ali? É Birkenau. A cidade do crematório. Aquela fumaça ali já é eles. Os que foram para a esquerda.”
József Debreczeni reconstrói todo o seu trajeto dentro dos campos de concentração, partindo da chegada em Auschwitz até seu destino final, o campo hospitalar de Dörnhau, local para onde os prisioneiros demasiadamente fracos eram deixados para morrer. É Dörnhau, onde corpos se empilhavam uns por cima dos outros em beliches, o crematório frio do título. Frio como os cadáveres que passavam a madrugada colados aos corpos dos vivos até o amanhecer quando, enfim, eram recolhidos e desumanamente descartados. Contra as próprias expectativas, é ali que o escritor húngaro será resgatado com a capitulação da Alemanha pelos Aliados. “Não devo estar pesando mais que 35 quilos, minha leveza quase me faz flutuar no ar, acima de meu beliche. Sou uma sombra entre as sombras.”
Num relato cru e brutal, Debreczeni expõe a máquina nazista por dentro, nas diferentes estruturas de poder mantidas nos campos de concentração. O texto do húngaro não poupa o leitor do horror, da violência e do sadismo aos quais os corpos judeus — e de outras minorias encarceradas — eram submetidos dia após dia, ao longo de meses, ao longo de anos. A humanidade de cada ser ali é violentamente arrancada pela fome, pela dor, pelo desespero atroz. “O crematório frio” é uma leitura fundamental para o nosso tempo, mesmo passadas mais de sete décadas de sua escrita. Em tempos de um obscurantismo político assustador, devemos seguir com um olhar atento para o passado para impedir que ele não se repita. “Numa velocidade perigosa, a imundície do lugar nos torna vil. (…) Com gritos desconexos me atiro na lama junto com os outros para lutar por cenouras encontradas na beira da estrada, com os dentes cerrados corro atrás de cada ponta de cigarro jogada no chão”.
– Gabriel Pinheiro é jornalista. Escreve sobre suas leituras também no Instagram: @tgpgabriel.