Justiça reconhece mulher que deu à luz em casa como vítima de violência obstétrica

Embora não exista uma lei específica sobre violência obstétrica, o CNJ recomenda que desembargadores adotem protocolo elaborado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH)

Fev 28, 2025 - 15:22
 0
Justiça reconhece mulher que deu à luz em casa como vítima de violência obstétrica

Um caso julgado pela 1ª Vara do Juizado Especial Cível e Criminal de Três Lagoas (TJ-MS), no final do ano passado, reconheceu uma mulher grávida que teve alta hospitalar e acabou tendo o filho em casa como vítima de violência obstétrica. A decisão chama a atenção porque não existe uma lei no Brasil que descreva a violência obstétrica como crime. Em situações como essa, em que não existe legislação própria para um crime contra a mulher, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) determina que desembargadores adotem o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, elaborado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH).

“O protocolo pretende que o exercício da função jurisdicional se dê de forma a concretizar um papel de não repetição de estereótipos, de não perpetuação de diferenças, constituindo-se um espaço de rompimento com culturas de discriminação e de preconceitos”, escreveu o CNJ.

No Distrito Federal, foi promulgada uma lei em 2024 que estabelece diretrizes para prevenir e combater a violência obstétrica. Existem, ainda, dois projetos de lei que versam sobre o assunto: Projeto de Lei nº 2082/2022, que propõe tipificar a violência obstétrica como crime e estabelecer meios de prevenção; e o Projeto de Lei nº 422/2023, que sugere incluir a violência obstétrica como violência contra a mulher, passível de punição, nos termos da Lei Maria da Penha.

Detalhes do caso julgado pelo TJ-MS

Em 25 de novembro de 2019, uma mulher gestante procurou o Hospital Nossa Senhora Auxiliadora, em Três Lagoas (MS), com fortes dores. Segundo descrito no processo, o médico responsável pelo atendimento lhe disse que não estava em trabalho de parto e que deveria ir para casa ou, se quisesse, ficar esperando aumento da dilatação na recepção do hospital — e assinou a alta hospitalar dela. A gestante voltou para casa e, cerca de uma hora e meia depois, deu à luz ao seu filho em sua própria cama, com ajuda do marido e uma amiga da família. 

Na decisão da Justiça, por determinação da juíza Janine Rodrigues de Oliveira Trindade, o município e o hospital devem pagar uma indenização de R$ 30 mil para a mulher, que foi reconhecida como uma vítima de violência obstétrica. 

O Correio tentou entrar em contato com o hospital na noite desta quinta-feira (27/2) para ouvir uma posição sobre o caso. A reportagem não conseguiu ser ouvida pela central de atendimento informada no site da instituição. Também foi feito contato pelo e-mail da ouvidoria do hospital abrindo espaço para manifestação. Em caso de resposta, o texto será atualizado.

A reportagem também tentou contato com a prefeitura de Três Lagoas e com a Secretaria de Saúde do estado de Mato Grosso do Sul, mas até o momento não obteve resposta. Caso ocorram manifestações, o texto será atualizado.

Violência obstétrica em definição

De acordo com a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, a violência obstétrica “abarca todas as situações de tratamento desrespeitoso, abusivo, negligente ou de negação de tratamento, durante a gravidez e a fase anterior, durante o parto ou pós-parto, em centros de saúde pública ou privada. Esta violência pode se manifestar em qualquer momento durante a prestação de serviços de saúde materna a uma mulher”. 

Alguns exemplos de práticas abusivas são: negar informações à gestante ou parturiente sobre seu estado de saúde; negar tratamento adequado; negar o alívio da dor; uso desnecessário de medicações, etc. No caso da mulher de Três Lagoas, a desembargadora entendeu que a vítima não foi monitorada corretamente antes da alta hospitalar, não recebeu apoio físico e emocional adequado e nem recebeu informação adequada sobre possibilidade de alívio da dor. 

Siga o canal do Correio no WhatsApp e receba as principais notícias do dia no seu celular

“Em decorrência da alta hospitalar sem as devidas cautelas, a autora ainda sofreu violação de seu direito humano e fundamental de receber a assistência adequada no momento (expulsivo) do parto [...] Apesar dos riscos envolvidos na falta de assistência ao parto, a saúde do recém nascido e da autora não foi comprometida, o que indica que a violência obstétrica não repercutiu em danos graves e irreversíveis”, descreve a sentença. 

Ao Correio, a desembargadora do Desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro e professora e líder do Núcleo de Pesquisa em Gênero, Raça e Etnia da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro Adriana Ramos de Mello ressalta que a violência obstétrica gera “um contexto de muita tristeza sobre o parto”. 

“O momento que deveria ser sublime, que deveria ser de alegria para essa mulher, mas muitas vezes se transforma num verdadeiro calvário, numa tortura de tanto sofrimento que as mulheres, sobretudo as mulheres pobres, periféricas, negras, indígenas, sofrem quando precisam ter o seu bebê numa maternidade pública”, declara. 

Adriana delineia que esses casos também podem ocorrer em ambientes com mais recursos, como aconteceu com a influenciadora digital Shantal Verdelho, que ganhou repercussão midiática em 2022. Assim como o caso de um anestesista que estuprou uma paciente instantes após o parto dela, em 2023. 

“As mulheres são submetidas a práticas que desumanizam seus corpos e durante o parto os profissionais de saúde podem exercer esse controle do corpo em detrimento da autonomia, dos desejos, das reais necessidades dessa mulher”, completa a profissional. 

No caso de Três Lagoas foi adotado o protocolo, levando em consideração as violências de gênero as quais a vítima foi submetida, ainda mais como gestante. De acordo com Adriana Ramos de Mello, a ferramenta é essencial para garantir o direito de acesso à Justiça pelas mulheres. 

"Quando existe, por exemplo, sempre uma mulher como autora ou como vítima, a Justiça precisa analisar em que contexto essa mulher vive. Como a questão racial, observamos que as mulheres negras, inclusive são mais prejudicadas, pois existem estereótipos muito negativos em relação ao fato de a mulher negra aguentar mais a dor, portanto elas recebem menos anestesia. Isso tudo impacta na vida e na saúde dessas mulheres", finaliza a desembargadora.