Teatro: “Avenida Paulista, da Consolação ao Paraíso”, de Felipe Hirsch, é uma ode apaixonada pelas contradições de São Paulo

As três horas de duração do espetáculo parecem exageradas, porém são tão reveladoras quanto um domingo todo zanzando pela avenida aberta aos pedestres

Mar 24, 2025 - 05:02
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Teatro: “Avenida Paulista, da Consolação ao Paraíso”, de Felipe Hirsch, é uma ode apaixonada pelas contradições de São Paulo

 

texto de Renan Guerra

As cidades, os territórios e seus espaços geográficos são importantes espaços de criação e inspiração para a arte: a Paris dos autores da Nouvelle Vague, a Hong Kong de Wong Kar-Wai, a Nova York de Woody Allen, a Bahia de Jorge Amado, o Leblon de Manoel Carlos ou os subúrbios de Nelson Rodrigues. Os espaços dialogam com as obras. E São Paulo também é espaço desse universo artístico: a cidade das canções de Itamar Assumpção, as ruas dos filmes de Ugo Giorgetti, a diversidade das novelas de Silvio de Abreu e o cenário fértil dos outros mundos de Zé Celso Martinez Corrêa. E mais que isso, São Paulo ainda é o campo de experimentação e vivência de muitos não paulistas. É cidade de migrantes, de refugiados, de quem não é daqui e aqui se encontra. Felipe Hirsch, por exemplo, nasceu no Rio de Janeiro, cresceu e se desenvolveu em Curitiba, mas encontrou outros rumos em São Paulo – uma cidade que segue cativando os outsiders, os esquisitos, os que não se encaixam e que aqui se acham. Com isso, Hirsch apresenta seu espetáculo mais paulistano, sua ode à São Paulo, sua alegoria poética sobre as dicotomias dessa cidade.

“Avenida Paulista, da Consolação ao Paraíso” é uma expressão sincera do que há de belo e de horrível numa das espinhas dorsais de SP, a avenida que movimenta a arte, a cultura, a economia e a política da região. E tudo isso é apresentado bem no centro da avenida, no Centro Cultural FIESP, no Teatro do SESI-SP, que celebra 60 anos de história, e que há 20 anos foi palco do espetáculo “Avenida Dropsie”, “Nostalgia” e “A Vida é Cheia de Som e Fúria”, todos de Hirsch. (A FIESP é também espaço que ficou marcado pela presença de um amplo pato inflável, símbolo de muitas manifestações da direita; pato, inclusive, que é alvo de uma das piadas do espetáculo de Hirsch). Enfim, um casamento interessante de uma obra e de seu ponto de referência. Como sacramentou o DJ Zé Pedro na saída do espetáculo, esta é uma peça cartão-postal, que segundo ele deveria ficar fixa em exibição na avenida, tal qual algumas peças da Broadway. O espetáculo de Hirsch é a mais múltipla representação da Paulista hoje – e, a partir disso, funciona como espécie de microcosmo da cidade de São Paulo.

As três horas de duração do espetáculo parecem exageradas, porém são tão reveladoras quanto um domingo todo zanzando pela avenida aberta aos pedestres. Isso se dá pelo fato de que o mais sublime do espetáculo é sua humanidade, é sua forma de olhar para as sutilezas do outro e observar com interesse suas particularidades. Esse resultado deixa claro que essa é uma obra construída por artistas que realmente vivem a cidade. É comum que alguns artistas, em determinado ponto de suas carreiras, acabem restritos ao universo de circulação do mundinho das artes, fechados em vernissages, estreias e festas em apartamentos bem mobiliados; isso cria um afastamento do cotidiano e do real. “Avenida Paulista, da Consolação ao Paraíso” é um espetáculo de quem vive São Paulo de verdade, de quem anda na rua, de quem pega metrô e fica atento aos trombadinhas nas escadarias de acesso; alguém que anda pelo vão do MASP em diferentes dias; alguém que entra a esmo no Parque Trianon; alguém que sabe a luta que é trafegar com guarda-chuvas pela avenida em dias de chuva; alguém que entende a diversidade que habita aquelas múltiplas janelas.

Isso possibilita a construção de personagens absolutamente reais e quase palpáveis: quem circula pela Paulista conhece aquelas pessoas, já conversou com elas no ponto de ônibus, já as encontrou descendo a Augusta, já esbarrou na feirinha do Parque Trianon e já fugiu delas na frente do shopping Cidade São Paulo. E isso obviamente é expandido pela criação coletiva ao lado do elenco, composto por atores de diferentes idades e backgrounds – destaque para Aretha Sadick e Verónica Valenttino, dois talentos incríveis que vale ficar de olho. Além disso, destaca-se a parceria de Hirsch com diferentes músicos. Alzira E., Arnaldo Antunes, DJ K, Kiko Dinucci, Jéssica Caitano, Juçara Marçal, Maria Beraldo, Maria Esmeralda, Maurício Pereira, Negro Leo, Nuno Ramos, Rodrigo Campos, Rodrigo Ogi, Romulo Fróes e Tulipa Ruiz criaram canções inéditas para o espetáculo, indo dos sons da vanguarda paulista ao ritmo frenético do funk bruxaria – tudo amarrado pela trilha sonora original, de Arthur de Faria, com a direção musical e os arranjos de Maria Beraldo.

A ficha técnica é gigante, mas merece destaque, pois marca realmente a coletividade desse projeto. Por exemplo, a direção de arte e cenografia é de Daniela Thomas e Felipe Tassara, e o design de luz, de Beto Bruel, profissionais que são parceiros de Hirsch há mais de 25 anos. A dramaturgia da peça é assinada por Caetano Galindo, Felipe Hirsch, Guilherme Gontijo Flores e Juuar, numa criação coletiva com o elenco de atores. E Juuar ainda assina a codireção da peça junto a Felipe Hirsch.

Todas essas cabeças pensantes criam um imagético urbano que acaba evocando muitas outras imagens, algumas referências diretas do diretor e da equipe, outras apenas correlações que propomos por aqui. Na avenida Paulista do espetáculo cabe a avenida alegórica do Teatro Oficina de Zé Celso Martinez Corrêa; as linhas brutas, mas convidativas de Lina Bo Bardi; o olhar poético de cronista urbano de Maurício Pereira; o humor musical do Premeditando o Breque; os cenários possíveis dos sons de Itamar Assumpção; os personagens comuns de Ugo Giorgetti; as figuras noturnas de Wilson Barros em seu “Anjos da Noite” (Marília Pêra dançando no vão do MASP é uma cena que poderia estar na peça de Hirsch); e a cidade quase surrealista de Isay Weinfeld e Marcio Kogan em “Fogo e Paixão”. Isso tudo cria uma narrativa completamente direta sobre a Avenida Paulista, ao mesmo tempo em que constrói alegorias de toda São Paulo e, ainda assim, bastante caras aos grandes centros urbanos.

Na mesma medida em que há universalidade no espetáculo de Hirsch, há também a busca por uma construção de identidade completamente local, criando um imaginário possível entre as dicotomias que habitam SP: seu caos, sua liberdade, seus exageros e suas necessidades. “Avenida Paulista, da Consolação ao Paraíso” é um convite para que você deixe seu carro na garagem e bata perna pela paulista, indo de seus vãos e galerias aos seus prédios de muitos corredores, tudo numa descoberta única da ríspida beleza de São Paulo.

O espetáculo tá em cartaz no teatro do SESI-SP, no Centro Cultural FIESP, e ficará em cartaz até 29 de junho, com apresentações gratuitas de quinta a sábado, às 20h, e aos domingos, às 19h. É preciso reservar o ingresso no site!

– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Faz parte do Podcast Vamos Falar Sobre Música e colabora com o Monkeybuzz e a Revista Balaclava