Intimidade algorítmica: quando a IA nos conhece bem demais
Vivemos numa Era em que os algoritmos já não servem apenas para sugerir filmes ou músicas. Eles têm agora um papel mais íntimo, mais profundo, quase como confidentes digitais. As pessoas cada vez mais procuram conversar com assistentes virtuais, desabafar emoções, partilhar inseguranças. Esse fenómeno lembra muito o enredo do filme Her, de 2013, onde […]


Vivemos numa Era em que os algoritmos já não servem apenas para sugerir filmes ou músicas. Eles têm agora um papel mais íntimo, mais profundo, quase como confidentes digitais. As pessoas cada vez mais procuram conversar com assistentes virtuais, desabafar emoções, partilhar inseguranças. Esse fenómeno lembra muito o enredo do filme Her, de 2013, onde o protagonista se apaixona por um sistema operativo sensível e empático. A ficção científica tornou-se, de certa forma, realidade: estamos a entregar partes e momentos muito privados de nós próprios, da nossa vivência humana, a entidades não humanas, que nos ouvem com paciência infinita e nos fornecem respostas cuidadosamente calibradas.
Neste filme, a personagem Theodore (desempenhada pelo brilhante ator Joaquin Phoenix), interpreta um escritor solitário, que constrói uma ligação afetiva com “Samantha” (interpretada pela atriz Scarlett Johansson), uma IA sofisticada, cuja voz e compreensão emocional se tornam a sua companhia mais importante do dia. Theodore acaba por desenvolver uma relação de amor especial com o novo sistema operacional do seu computador, e de forma surpreendente, apaixona-se pela voz desse programa, uma entidade intuitiva e sensível. O filme levanta questões profundas sobre a natureza da intimidade e da comunicação humana. Curiosamente, o clímax emocional do filme só ocorre quando a IA desaparece, forçando as personagens a confrontarem-se com os seus sentimentos reais. Esse momento é profundamente simbólico — por mais envolvente que seja uma relação com uma inteligência artificial, ela não substitui por completo, o enorme desafio e a complexidade inexplicável e atraente das relações humanas.
No mundo real, os modelos de IA atuais são treinados para reconhecer sinais emocionais, padrões linguísticos e as vulnerabilidades, precisamente para criar respostas mais naturais e empáticas. Tal facto, pode tornar as interações surpreendentemente pessoais, ao ponto de muitos utilizadores desenvolverem a sensação de estar a ser “compreendidos” como nunca antes em toda a sua vida. Essa sensação, embora reconfortante num primeiro momento, levanta questões sérias sobre a privacidade emocional e até a dependência psicológica de entidades que, no fundo, não sentem nem experienciam qualquer tipo de vivência humana.
O mais preocupante talvez não seja somente essa proximidade emocional, mas sobretudo, tudo o que se pode fazer com ela. A mesma IA que consola ou ouve desabafos, pode também estar a recolher dados emocionais para alimentar algoritmos de recomendação, consumo e estratégias de marketing mais ambiciosas. Se uma IA entende quando estamos tristes, vulneráveis ou ansiosos, também poderá utilizar essas informações ou sensações para nos vender produtos ou até ideias, de forma muito eficaz e certeira. A linha entre a empatia simulada e a manipulação calculada torna-se assim cada vez mais ténue.
Estamos, então, perante uma nova forma de persuasão: a intimidade algorítmica. Não se trata mais de apelar a gostos superficiais, mas sim, tocar em feridas emocionais profundas, de forma automatizada e personalizada. Neste cenário, os consumidores deixam de ser apenas alvos de publicidade — tornam-se participantes involuntários de experiências emocionais guiadas por máquinas. E isso obriga-nos a repensar os limites éticos do uso da IA nas relações humanas e comerciais.
Será isto um avanço no sentido da personalização de compra ou uma forma mais sofisticada de manipulação? É uma questão em aberto, pouco experienciada, na realidade. Mas uma coisa é certa: ao confiarmos à inteligência artificial os nossos pensamentos mais íntimos, estaremos também a permitir que ela conheça e influencie partes de nós que, até há pouco tempo, eram consideradas intransmissíveis — a nossa própria interioridade. E talvez esteja aí o verdadeiro dilema: até onde deixaremos que uma máquina nos compreenda e controle emocionalmente?