Cocaína, álcool, bingo e… bets

Quando o médico Hermano Tavares começou a estudar o vício em jogos, nos anos 1990, o problema da vez eram os bingos. Em São Paulo, jogadores compulsivos que perdiam até o salário do mês de olho nas cartelas buscavam ajuda no Hospital de Clínicas, onde Tavares concluía sua residência em psiquiatria. O bingo seria proibido em 2004. Hoje, porém, o acesso a apostas rápidas está literalmente na palma da mão: o celular permite que se coloque dinheiro em partidas de futebol e em jogos como o Fortune Tiger, o popular Tigrinho. Coordenador e fundador do Programa Ambulatorial do Jogo (Pro-Amjo) do Hospital de Clínicas, uma referência nacional no tratamento especializado para distúrbios de jogos no Brasil, Tavares nunca esteve tão preocupado com o afluxo de novos pacientes. A demanda triplicou desde 2023. A equipe do Pro-Amjo é composta de aproximadamente sessenta profissionais, entre psicólogos, psiquiatras e médicos que fazem residência em psiquiatria, além de uma educadora física, um terapeuta ocupacional e uma enfermeira. Eles trabalham em um regime de voluntariado: são funcionários do Hospital de Clínicas, mas não ganham adicional algum pelas horas extras dedicadas a ajudar quem tem dificuldade em largar o jogo. Tem sido assim desde que o programa começou suas atividades, em 1998. “Os recursos são do nosso bolso e da nossa generosidade”, diz Tavares. Nas atuais condições, o programa só consegue acolher dez pacientes novos por mês – admitir mais pessoas comprometeria o seguimento dos tratamentos em curso. Tavares prefere não informar o número de pessoas que hoje estão na fila. The post Cocaína, álcool, bingo e… bets first appeared on revista piauí.

Abr 28, 2025 - 15:49
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Cocaína, álcool, bingo e… bets

Quando o médico Hermano Tavares começou a estudar o vício em jogos, nos anos 1990, o problema da vez eram os bingos. Em São Paulo, jogadores compulsivos que perdiam até o salário do mês de olho nas cartelas buscavam ajuda no Hospital de Clínicas, onde Tavares concluía sua residência em psiquiatria. O bingo seria proibido em 2004. Hoje, porém, o acesso a apostas rápidas está literalmente na palma da mão: o celular permite que se coloque dinheiro em partidas de futebol e em jogos como o Fortune Tiger, o popular Tigrinho. Coordenador e fundador do Programa Ambulatorial do Jogo (Pro-Amjo) do Hospital de Clínicas, uma referência nacional no tratamento especializado para distúrbios de jogos no Brasil, Tavares nunca esteve tão preocupado com o afluxo de novos pacientes. A demanda triplicou desde 2023.

A equipe do Pro-Amjo é composta de aproximadamente sessenta profissionais, entre psicólogos, psiquiatras e médicos que fazem residência em psiquiatria, além de uma educadora física, um terapeuta ocupacional e uma enfermeira. Eles trabalham em um regime de voluntariado: são funcionários do Hospital de Clínicas, mas não ganham adicional algum pelas horas extras dedicadas a ajudar quem tem dificuldade em largar o jogo. Tem sido assim desde que o programa começou suas atividades, em 1998. “Os recursos são do nosso bolso e da nossa generosidade”, diz Tavares. Nas atuais condições, o programa só consegue acolher dez pacientes novos por mês – admitir mais pessoas comprometeria o seguimento dos tratamentos em curso. Tavares prefere não informar o número de pessoas que hoje estão na fila.

Em outubro do ano passado, o Pro-Amjo retomou uma estratégia empregada no auge dos bingos: sessões coletivas. Tavares lembra que, no fim dos anos 1990, ele falava para grupos de 40 ou 50 jogadores, respondendo suas dúvidas e angústias. Cada um desses encontros era uma “intervenção psicoeducacional”, que também servia como triagem. A equipe observava as pessoas que pareciam mais fragilizadas ou choravam mais. “A gente já tentava eventualmente dar prioridade para o avanço delas para o tratamento”, lembra o psiquiatra.

 

Maior autoridade do Brasil em distúrbios dos jogos – um campo de estudo médico que começou a avançar nos últimos trinta anos –, Tavares há décadas alerta para a vulnerabilidade do país nessa área. Mas questões de saúde pública sequer foram consideradas nas discussões governamentais sobre a regularização das bets, no ano passado. A agência Fiquem Sabendo, especializada no acesso a informações públicas, levantou que o governo promoveu 209 reuniões sobre o tema entre março e setembro de 2024 – e só em duas delas representantes do Ministério da Saúde estiveram presentes.

 

Com dados de 68 países, uma revisão global de pesquisas sobre o jogo publicada no ano passado pela revista médica Lancet concluiu que, nos territórios abrangidos, 46% dos adultos e 18% dos adolescentes fizeram alguma aposta nos últimos doze meses. Conduzida por uma equipe internacional de cientistas, essa meta-análise de dados mundiais recolhidos entre 2010 e 2024 dividiu os adictos em duas categorias principais. O grupo dos jogadores adultos problemáticos, cujo vício em  jogo começa a causar problemas profissionais e pessoais, são 8,7% da população global. Os patológicos, que já não conseguem parar e se endividam seriamente para continuar fazendo apostas, representam 1,4%.

Estima-se que os jogos de azar, em diferentes modalidades, são legais em 80% dos países do mundo – e mesmo nos lugares onde são proibidos há penetração das bets online, observa o estudo da Lancet. Os autores do artigo observam que há uma escassez de dados sobre os efeitos da legalização: “Esse problema representa uma lacuna substancial na compreensão de tendências globais do jogo e na habilidade para identificar tendências emergentes.”

 

Entre os mais de trezentos levantamentos de dados cujos resultados foram consolidados no artigo da revista, está um estudo realizado em 2010 por uma equipe coordenada por Hermano Tavares. Os pesquisadores visitaram 325 áreas do censo, inclusive zonas rurais, para ouvir pessoas com mais de 14 anos, de ambos os gêneros. Nessa amostra, 12% disseram que jogam todos os meses. Com base em critérios do DSM-IV, o manual internacional de diagnóstico psiquiátrico, o paper identificou que entre 1% e 1,3% da população brasileira desenvolveu alguma relação patológica ou problemática com o jogo. Também concluiu que jogadores sociais podem gastar até 5,4% de sua renda com apostas, percentual que chega a 20% entre jogadores patológicos.

Esse é o único estudo epidemiológico abrangente do jogo no Brasil – e já tem quinze anos. Em 2014, Tavares publicaria ainda um artigo intitulado Gambling in Brazil: a call for an open debate (apostas no Brasil: um chamado para um debate aberto), na revista científica Addiction, editada desde 1903 pela Sociedade Britânica para o Estudo do Vício – uma das mais longevas e respeitadas instituições que produzem conhecimento científico sobre o problema. O texto afirmava que “o jogo tem raízes profundas na história e na cultura brasileiras”, com uma legislação que alterna períodos de proibição e de legalização.

O atual período de legalização foi aberto oficialmente em 2018, quando o presidente Michel Temer liberou as bets. A epidemia, diz Tavares, já estava anunciada. Em 2020, presos em casa durante a pandemia, mais brasileiros conheceram a tentação das bets. “E aí o Brasil passou de um mercado incipiente para um dos maiores mercados de apostas online do mundo”, diz. “Foi pandemia, Copa do Mundo e pronto, aí a gente se perdeu.”

 

Uma reportagem publicada na edição de janeiro da piauí mostrou como a máquina de propaganda das bets, que inclui patrocínios vultosos e influenciadores com cachês multimilionários (nunca antes pagos no mercado publicitário brasileiro), impulsiona o vício na jogatina. 

 

Um punhado dos brasileiros que se perderam nas bets estava na reunião virtual de um grupo de Jogadores Anônimos, que a piauí acompanhou em uma manhã de sábado, em outubro do ano passado. Conduzido do Rio de Janeiro por um jogador que está há vinte anos em recuperação, o encontro juntou pessoas de vários estados brasileiros. A maioria deixou a câmera fechada.

Fundada em 1957 em São Francisco, nos Estados Unidos, a Associação dos Jogadores Anônimos começou suas atividades no Brasil em 1993. O modelo é muito parecido com o dos Alcoólicos Anônimos, com um programa de doze passos para a recuperação. Compartilhar a experiência da recuperação é uma prática recomendada – e conceder entrevistas ajuda nesse ponto, segundo os jogadores anônimos ouvidos pela reportagem. Entre eles, estava um jovem economista que acumulou uma dívida de 80 mil reais jogando pelo celular. Na teoria, ele compreendia que as apostas eram um investimento irracional, que sempre levaria à perda do capital – mas a compulsão era mais forte: havia sempre a crença de que o próximo jogo traria a salvação. A mulher do economista só soube do poço de dívidas em que o marido se afundara quando a eletricidade da casa deles foi cortada.

Nem sempre comportamentos como esse foram entendidos como sintomas de um transtorno psiquiátrico. Foi só em 2013 que a Sociedade Americana de Psiquiatria incluiu a dependência em jogos como um possível transtorno psiquiátrico no apêndice de seu manual de problemas mentais. “Isso trouxe um primeiro boom de muitos estudos de outras dependências comportamentais”, diz o médico Rodrigo Machado, do Instituto de Psiquiatria do Hospital de Clínicas de São Paulo.

Machado atua no Programa Ambulatorial Integrado de Transtornos do Impulso (Pro-Amiti), um irmão do Pro-Amjo. O psiquiatra começou a se interessar por transtornos comportamentais porque ele próprio era um jogador – de videogames. “Quando estava na residência, em 2013, começou a se falar sobre a dependência em games”, lembra. “Me interessei e aí eu comecei a entender mais sobre as dependências comportamentais.”

“Apesar da gente ter o jogo de azar incrustado na nossa sociedade há muito tempo, há relativamente pouco tempo a gente estuda isso como fenômeno no cérebro, fenômeno de adoecimento”, diz Machado. A ideia de adicção ou vício costumava ser vinculada apenas à dependência química. Hoje, entende-se que certos comportamentos impulsivos – como tirar o celular do bolso no meio de um jogo de futebol para apostar no número de cartões amarelos até o fim da partida – também causam dependência.

Esses comportamentos estão associados ao mecanismo de recompensa instantânea do cérebro, regulado pela dopamina, um neurotransmissor que costuma ser chamado de “hormônio do prazer”. Esse epíteto, porém, é um tanto enganoso. Em estudos de laboratório feitos com ratos, esclarece Machado, a dopamina é liberada antes ou logo no início do ato prazeroso: “Mesmo que o ato prazeroso continue, ela começa a cair”, complementa o psiquiatra. O jogo estimula esse ciclo de antecipação e frustração.

O jogo do Tigrinho é o exemplo perfeito dessa hiperestimulação do cérebro. “Ele proporciona justamente isso, cliques atrás de cliques, aposta atrás de aposta, num espaçamento muito menor”, diz Machado. A rapidez dos estímulos é o que torna as apostas online mais perigosas do que os jogos convencionais. O resultado da Mega Sena pode sair horas ou dias depois da aposta. Em um jogo de roleta no celular, são apenas segundos.

Quando se aposta no futebol, o resultado só sai no fim do jogo. Mas as bets exploram bem esses 90 minutos: o jogador pode apostar não só no resultado, mas no número de cartões, ou em quem vai fazer o gol. Acresce a isso o poder da publicidade, com bets patrocinando campeonatos brasileiros. “Um absurdo”, indigna-se Hermano Tavares, que defende que as bets sejam proibidas de veicular publicidade na tevê, como já acontece com os cigarros.

 

O jogo mudou, dizem os especialistas. Acessíveis, fáceis de usar, divulgadas pela publicidade convencional e por influenciadores de rede social, as bets atingem com força devastadora os mais vulneráveis – jovens e crianças, pessoas solitárias e carentes, as classes mais baixas (em agosto do ano passado, quando o Banco Central soou o alarme para o impacto das bets no endividamento das famílias, 3 bilhões de reais dos 14,1 bilhões distribuídos naquele mês pelo Bolsa Família foram gastos em apostas).

Essa é uma crise para a qual o país está mal preparado. “Mesmo profissionais especializados, muitas vezes, não têm treino para esse tipo de atendimento”, alerta Carla Bicca, Coordenadora da Comissão de Psiquiatria das Adicções da Associação Brasileira de Psiquiatria. “São pacientes que requerem conhecimento importante e habilidade para lidar com isso. É muita especificidade.”

Com trinta anos de experiência no tratamento da adicção em drogas e em jogo, Bicca coordena, em Porto Alegre, uma comunidade terapêutica que atende adictos de alto poder aquisitivo, na qual quatro psiquiatras atendem no máximo oito pacientes, em tratamentos que podem durar de duas semanas a alguns meses. O vício em jogo, diz ela, tem suas particularidades para esse grupo: como o paciente conta com recursos para queimar, os familiares demoram mais a notar que ele está perdendo dinheiro. “E o buraco é muito maior, né? E aí a pessoa está muito mais envolvida”.

No tratamento do adicto em jogos, seja qual for sua classe social, Bicca defende que ele seja completamente afastado do jogo. Há uma linha contrária, que defende o uso controlado. “Na minha experiência clínica, isso não se mantém a longo prazo”, afirma Bicca. Mas ainda faltam, diz, estudos com acompanhamento de longo prazo desses pacientes.

É um tratamento delicado, adverte Bicca: pacientes que se afundam em dívidas muitas vezes têm ideações suicidas. Hermano Tavares lembra que a possibilidade de perder alguém na fila de espera para tratamento no Pro-Amjo o assombrava no tempo dos bingos. Jogadores com dependência patológica representam um risco considerável. Pesquisas realizadas em diferentes países revelam uma porcentagem acima de 15% de tentativas de suicídio entre essas pessoas. Um estudo norueguês publicado pela Lancet no mês passado revelou que o suicídio foi a principal causa de morte entre pessoas que têm problemas com jogo.  Tavares diz que é difícil dormir com esses dados em mente.

Há ainda uma dificuldade estrutural para combater a adicção nas bets: o mundo digital em que boa parte da população vive hoje traz embutidos os mecanismos de gratificação rápida que turbinam os apps. “A gente está vivendo uma sociedade que naturalmente tem hiperestimulado o cérebro por meio de redes sociais”, diz Rodrigo Machado. “Esses mecanismos foram ganhar essa roupagem nova do jogo de azar, possibilitando que a gente tivesse um cassino ao alcance de cada mão.” 

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